Textos decetivos – 2 Cada vez mais descartáveis
Eu sou um tipo ocupado. Olho para a minha agenda e vejo um rol de coisas a que não conseguirei responder. Vejo-me compelido a procurar alternativas. Construo uma hierarquia, forço precedências, desmarco aquilo que me parece menos importante ou me apetece menos e ganho o stress que pensava ter deixado de lado com a chegada à reforma. Procuro, com mais tempo, soluções duráveis que me permitam dispor de maior liberdade para me dedicar, além das obrigações, ao prazer, aos factos lúdicos.
Por isso, percebendo o tempo gasto na limpeza da casa, a minha mulher com a agenda tão preenchida quanto eu, a empregada assoberbada com roupas, arrumações, cozinhas e diversos, decidi atualizar-me e ganhar tempo. Comecei por comprar uma mopa elétrica. Aparelho simples. Bateria carregada, movimentos circulo-lineares, um papel aderente que atrai a pequena sujidade e eis que, num ápice, pondo o automatozinho a rodar pelo chão vejo libertos um par de horas, assim, num piscar de olhos. Gostei da experiência e cá em casa todos aplaudiram. Mas havia um senão. Sujidades maiores o R1, como lhe chamámos, não tinha capacidade de remover. Atirava-os para os lados. Mesmo tendo de recolhê-los de vassourinha e pá, já era um adiantamento. Porém, iniciado o caminho, era preciso ir mais longe. Pesquisei o mercado e comprei o R2. Este sim. Reconhecia escadas e não caía, limpava carpetes, sugava toda a sujidade, mesmo nos cantos, com o pincel rotativo, destinado a desalojar conspurcação em defensivo acantonamento, nos recortes da casa. Júbilo geral e a empregada feliz por poder dedicar mais tempo às tarefas de arranjo que mais lhe agradavam.
Devo dizer que, entretanto, para poupar tempo, adquiri, passe a publicidade, a amiga Bimby. Aquilo é uma maravilha. Um mínimo de tempo gasto para preparar acepipes culinários, dando até o conforto de, usando a imaginação, produzir pães fabulosos, diferentes de quantos, mal saborosos, carregados de fermento e humidade, os nossos supermercados nos impingem. Todos ficámos encantados e as agendas e trabalhos mais leves. Pois se, para confecionar uma refeição, pouco mais era necessário que carregar em botões e pôr na máquina ingredientes previamente preparados! Estou à espera de que, em breve, apareça um robot que possa fazer as camas, substituir lâmpadas, atender telefones e à porta. Nesse dia, para grande felicidade, a minha agenda e a da minha mulher, certamente não estarão tão carregadas e talvez possa, de vez, dispensar a empregada.
Não estavam à espera deste desfecho? Então é porque andam muito distraídos. Prestem lá um pouco de atenção. Não se recordam, aí por volta dos anos noventa, da automatização de fábricas? Eu lembro-me como fiquei maravilhado. O grande momento, já tinha havido outros de menores dimensões, mas apanharam-me distraído, foi quando, em Itália, de visita à empresa-mãe daquela em que eu trabalhava, ao visitar a fábrica e armazéns centrais, fiquei maravilhado com a limpeza, eficiência e cadência de trabalho que observava. Na linha de montagem, eficientes robots colocavam e retiravam módulos e componentes em ritmo impressionante e cronométrico. Os produtos eram, por braços robóticos, retirados do fim de linha, transportados para plataformas rolantes, descarregados em vagonetes automáticas deslizando sobre carris, as quais, mecanicamente, colocariam os produtos nos lugares de armazenamento - também em automatismo travariam de imediato se um gatito se atravessasse na sua frente - e os retirariam, feitas as encomendas, pelas respetivas datas de chegada ao armazém. Para brilhar um pouco faço-me eco do nome da tarefa dado ao trato pelos engenheiros, “first in, first out”. Bonito, não é? Rápido, fácil, limpo, sem erros. O chato é que, por todo o lugar, além do ciciar das máquinas, não havia qualquer outro ruído. Faltavam vozes! Na verdade, naquele amplo recinto, davam-se alvíssaras a quem descobrisse figura humana. Havê-las, havia! Poucas, na verdade, encobertas em gabinetes, junto ao teto da fábrica, debruçadas sobre computadores, de onde dirigiam toda a produção. E os seres humanos que aqui trabalhavam às centenas? Tornaram-se dispensáveis. As máquinas fazem melhor. Não reclamam aumentos, durações de trabalho, não entram em greve e doença, é apenas o tempo rápido de reparação, ou um pouco mais longo, mas sempre breve, de substituição. E, quando se tornam obsoletas, reciclam-se e não pedem reforma. Maravilha! Maravilha! Maravilha!
Aqui chegados já vocês estão a dizer, mais um aborrecido passadista a semear distopias. Outros ainda reafirmarão, há sempre gente pronta a entravar o progresso. Efeitos do medo da mudança!
Estão porém enganados. Não tenho dúvidas de que a automação veio para ficar. Mais, com a Inteligência Artificial, a dar, afoita, os primeiros passos, a minha empregada, e a maior parte de todos os empregados de quase todos os ramos do fazer humano, dentro de vinte a trinta anos, estarão a mais e já substituídos por máquinas limpinhas e de eficiência mais que provada. Então, perguntarão, para quê esta palinódia?
Simples! Aquando da revolução industrial, como esta, inultrapassável e, sem dúvida aceleradora de grandes benefícios para a humanidade, não foram tomadas quaisquer precauções. Em termos históricos, de um dia para o outro, milhares, milhões de seres humanos tornaram-se dispensáveis, pereceram de miséria em casebres e nas ruas. Hoje conhecemos causas e efeitos. Sabemos que o mesmo irá ocorrer dentro de breve tempo e, tanto quanto sei, deixa-se correr o marfim, arrecadam-se lucros e não se acautela o futuro. E era tão simples! Bastava que, por cada máquina assente, se pagasse, em descontos, o mesmo que pagavam os trabalhadores substituídos. Poder-se-ia assim, sem grandes sobressaltos, fazer a alteração civilizacional que se aproxima, ou onde já estamos. Era mesmo tão fácil! Só que, aposto, não vai acontecer. Vamos deixar instalar o descalabro, permitir a instalação do caos, para só então, a preço de sangue, procurar a solução, nesse momento dificílima, que sempre esteve, tão fácil, na nossa frente.
Ah! Que chatice! Tenho de pagar o subsídio de férias à empregada. Bolas! Nunca mais comercializam o robot doméstico!
Publicado in “Rosto Online”