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Momentos para inventar o amor

Terça-feira, 07.04.20

 

 

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D - Lágrimas

 

 

Por essa altura terei catorze, não, quinze anos, e ele o cabelo crespo. A pele muito morena, quase para o negro, a mãe desolada, na soleira da porta, encomendar-lhe-á que vá pelo dinheiro ao irmão mais velho. Já não há pão para a noite. Há muito terá perdido o viço. Gastou-o com homens de curta duração. Receberá, em troca, algo sempre demais para eles, nunca o suficiente para ela. Dois filhos com dezoito anos de diferença. O primeiro, o do casamento, ficará com o pai. Fará a sua vida. O segundo, de cabelos mais que tristes, a quem, sabe-se lá porquê, chamarão o Ruivo, fruto de azares, esconderá a humilhação, ao contar-se filho de um príncipe negro de passagem por Lisboa, enquanto a mãe meteria empenhos para o encaixar na Casa Pia e recomendava: não te esqueças de pedir dinheiro ao teu irmão. Serei seu companheiro nesta breve jornada. Com ele aprenderei a dependurar-me nos elétricos, a viajar sem pagar. Emprestar-me-á os jornais sobrantes da venda. Para todos os efeitos é no cais que morará, ainda que possa dormir noutras paragens. Ficarei à porta da vivenda do irmão, na entrada de serviço, por onde ele passará. Irmão ausente, lépida, a cunhada enxotá-lo-á. Não há cá dinheiro para ninguém. Façam pela vida, trabalhem. A moto, na garagem, junto ao lugar do carro desafia-o. Cuidadoso, Ruivo tira-a do descanso, sairá empurrando-a com cautela. Vamos, dir-me-á. A medo sentar-me-ei agarrando-o pelo torso. O estrondo do motor impelirá a moto na via. Terei receio, quase pavor, mas o Ruivo, mal se vendo, deitado sobre o volante, correrá pelas ruas. Desafiará o polícia de trânsito que o mandará parar. Acelera, corre as avenidas, polícia atrás de sirene aberta, limpando-nos paradoxalmente as ruas para maior celeridade. Cada vez mais veloz embica para o Bairro Alto. Cruza as ruas estreitas com ligeireza estonteante. Continuarei assustado a ver as esquinas prolongarem-se contra nós, o polícia a perder terreno até desaparecer e só se ouvir atenuado o estrépito da sirene. Sem perseguidor sairá do bairro. Parará numa cabine telefónica. Bate na caixa, introduz um arame pela ranhura, caem moedas no aparador. Para o pão já chega. Há muitas caixas em Lisboa. Sobra para telefonar ao irmão.

Larguei a mota junto ao quiosque de S. Paulo. Vai buscá-la se quiseres. Nunca mais precisarei do teu dinheiro.

 

- Seria necessário juntar a história desse tal Ruivo? Ele voltará a aparecer na narrativa?

 

- Penso que não, Oblata. Apenas me foi necessário para insinuar o sentimento de estranheza que quero instalado em Cursino. Permito-lhe perder-se pelas memórias que lhe instilo. Descobrirá a diferença e o aviltamento. Faço com que nele cresça uma ideia de contraponto às experiências pessoais. Será levado a perceber como outros vivem, a sentir o gosto das emoções amargas; as lembranças, mesmo se de indiferença, dos próximos; a conhecer a inconformidade. Preciso que escreva a revolta, ou, pelo menos, denuncie as hipocrisias.

- Pensava que esta história seria sobre o amor.

- E não é? O amor e o ódio existem na mesma linha. Um em cada ponta. Fazem, porém, parte do mesmo contínuo. Cada um existe em relação ao outro.

- Queres então dizer que, porque me amas, me odeias? Parece-me absurdo demais para levar a sério.

- Estás a ser demasiado literal. Não te odeio porque te amo, mas porque te amo na nossa relação assoma, por vezes, a presença do ódio. Que é o ciúme mais que um pouco de raiva a deslizar para a afeição?

- Defendes não haver amor sem ciúme?

- Claramente. Se te quero não posso deixar de ter receio de te perder. Por isso odeio tudo quanto pareça poder afastar-te de mim. Não será razoável?

- Nem por sombras. Acredito mais na confiança e no afeto. Não se me afigura que possas fundar a tua narrativa nessa linha.

- Um dia falaremos melhor sobre isso. Agora, o importante é a abertura para aquilo  que passa ao lado, mal nos toca, porque só acontece aos outros. É preciso olhar para fora! Quer creias quer não, até o amor é, em parte, convenção social. É um embuste, um constructo cultural. Não o desejo, pois esse é animal sem freio a quebrar conveniências; nem o afeto, doce orvalho de suaves manhãs. Falo-te do amor como estratégia subterrânea, inconsciente talvez, mas noção férrea da forma correta de nos escolhermos, num lugar e num tempo, acreditando na força da paixão, apenas para nos submetermos aos interesses de uma filiação, de um grupo, e vê lá, sempre com olhos na sucessão e aumento de bens. Olha à tua volta ,Oblata e vai pensando na encenação desta história onde Cursino irá descobrir o outro lado das coisas.

- Ah! Voltamos à profundidade?

-Nem por sombras, apenas roçamos a superfície das águas…

 

Pretensiosamente pretendi chamar a esta história o meu barbeiro. Meditando um pouco perante o ecrã vazio - onde vai o desespero da folha de papel branco à espera da escrita e dos furiosos riscos que inutilizavam início e papel - tive de chegar à conclusão de que:

 

  1. a) não tinha, nem nunca tive um barbeiro fixo, coisa que passarei a explicar mais para diante (se me apetecer ou se o decorrer da história não me levar por outros caminhos) e,

 

  1. b) era demasiada pretensão chamar de minha a qualquer pessoa, ainda que fosse um barbeiro pobre, de revolta suave, a atingir o raiar das lágrimas.

 

Assim, vai a história chamar-se lágrimas, não porque as houvesse na conversa, mas porque, de forma vária, estavam subentendidas numa vida de esforço sem glória nem perspetivas. Há, no entanto, para ajuntar que a culpa desta conversa é da Câmara Municipal, por acaso socialista, partido em que votou o meu barbeiro e agora, com desespero, se arrenega prometendo nunca mais votar em ninguém.

 

É claro que esta prosa corre o risco de transformar-se numa lamúria fora de moda, onde o portuga escrevente – e será só ele? – se desforra da sua consciência infeliz, enforma-a de confissão e nela procura ultrapassar problemas que, por inépcia ou falta de oportunidade, não consegue resolver de outro modo.

 

Dizia o barbeiro, dentro de e voltado para um amplo estaleiro de obras em funcionamento pleno, que a Câmara lhe estava a rebentar com a vida. E ao seu patrão também. Estranha esta preocupação do servente com o dono do estabelecimento. Marx não havia de gostar desta aproximação de classes, embora, se passasse pela barbearia e ao cortar o desgrenhado cabelo, ou a aparar a furiosa barba, ouvisse a história que eu ouvi, pudesse pensar em alterar qualquer coisita na sua obra monumental. Ou, quem sabe, talvez não modificasse nada, porque uma coisa é a mudança encarada do ponto de vista sociológico, outra bem diferente é o drama do indivíduo apanhado nas teias dos volte-faces sociais.

 

Pois é verdade, o patrão da barbearia ficou estarrecido quando, numa segunda-feira, vai para abrir o seu estabelecimento e verifica que todo o largo tinha sido, durante o fim de semana, cercado por imponente paliçada, cheia de anúncios de empresas de construção pedindo desculpas pelo incómodo, clamando que iriam ser breves, que trabalhavam para o bem-estar de todos e ali, do seu esforço e engenho, iria nascer um magnífico parque subterrâneo para automóveis para, de vez, resolver todos os problemas de trânsito daquela muito importante zona da cidade. No entanto, o problema para o dono da barbearia é que não só não tinha qualquer acesso à sua loja, como nem sequer a avistava, tapada que estava com proteções e andaimes. Em desespero balbuciava:

 

- ... mas nunca me disseram nada...

 

e ao pretender entrar teve que dar uma enorme volta para descobrir uma porta, onde foi esbarrar num serventuário negro, interposto à sua frente, mal falante do português, o qual, obstrutivo e repetidor, dizia: -sinhor non. Empresa e Câmara não querer ninguém de fora dentro...

 

 Estupefação transformada em raiva. O sentimento de impotência a subir pelo corpo todo, começando nas mãos, estendendo-se pelos braços, ocupando o peito e um berro a sair e a explodir dentro do coração. Tudo vermelho por fora e por dentro como a ambulância onde o transportaram para o hospital, com um ataque cardíaco, conquistado naquele preciso momento e local.

 

Dizia-me o barbeiro que, ao tomar conhecimento deste triste evento, a Câmara fora companheira impecável. Acorreu em peso em visita ao hospital, acompanhada dos órgãos de informação, para pedir desculpas ao patrão, o qual por acaso não tinha morrido, apenas ficara tolhido dos braços - o que não é de somenos para um barbeiro - prometendo-lhe passagem livre, quando quisesse, para a sua loja, desde que, evidentemente, o estaleiro estivesse aberto, porque como sabe, por causa do ruído não se pode trabalhar à noite, e as máquinas existentes, de valiosas, não podem ficar abandonadas ao sabor das malquerenças de algum energúmeno, além do perigo acrescido ao atravessar um local de obras para alguém desabituado de tais andanças. O senhor bem sabe como são estas coisas dos acidentes na Construção Civil…

 

…O que se tinha passado é que todos os Bancos e Empresas da zona tinham sido avisadas com tempo e a Câmara, que não é descuidada, tivera mesmo reuniões com representantes dessas firmas e quantos problemas -meu Deus!! - não foram resolvidos. Só a questão da garagem do Banco Enfisema fora uma dor de cabeça...mas felizmente tudo se resolvera. Agora, a questão é que no meio de tanto afã, passou despercebida a questão da barbearia. Também, o senhor sabe, é só você e o seu empregado. Aquilo está para ali esquecido a um canto, tem pouco movimento, vocês não se atualizaram e assim, não é que sirva de desculpa, ninguém se lembrou de vos avisar desta coisa...

 

Mas como é que eu vou viver? Tartamudeou, em espanto, o patrão.

 

Pois, pois!  É complicado, disse o Sr. Presidente. Agora não temos solução nenhuma. As coisas estão muito em cima do acontecimento. Teremos de estudar o caso. Mas não se preocupe, dê tempo ao tempo,...algo se há de conseguir...

 

E conseguiu mesmo. Logo ali o patrão teve uma recaída - também quem é que espera que um patrão tenha um tão delicado coração - obrigando à rápida evacuação dos meios de comunicação social, para não perturbar o doente. A câmara de uma televisão independente, a cirandar atrás do presidente, dada ao desplante de filmar despudoradamente todo o episódio, teve o azar de chocar de frente com um homem da segurança, ido a correr chamar o médico - já à cabeceira do doente - ficou toda partidinha no chão. No entanto, como o segurança era homem de boa índole, parou de imediato para ajudar o operador a levantar-se e a recuperar a câmara. O que o desgraçado nunca recuperou foi a cassete sumida ninguém sabe para onde. Coisas....

 

Assim o meu barbeiro refletia em voz alta, dando curso à sua mansa indignação, utilizando-me para psicoterapia.

 

Pois é - dizia ele - por causa destas obras vou agora de férias. O senhor já viu o que é ir de férias no pico do inverno?

 

Tentando amenizar as coisas lá lhe fui dizendo, as férias de inverno têm os seus encantos e méritos. Por exemplo, não se perdia tempo a esperar por um lugar nos restaurantes, era-se mais bem tratado nos hotéis e, para quem gostasse de neve, umas férias na montanha era o que era.

 

Pois sim, ripostou-me. Para mim férias são sempre no mesmo local. Em casa! Como é que quer que eu passe férias noutro lado? Repare, ganho apenas o mínimo nacional, fora as gorjetas, evidentemente,

 

-Já te percebi meu marau.- pensei eu! Estás-te a fazer ao piso...

 

e com isso tenho de pagar a renda do barraco, os remédios da mulher que é doente como o caraças, os transportes, a alimentação e a pouca roupa que vestimos.

 

A raiva desta situação infeliz fez-se sentir na minha nuca. Zás! A navalha a entrar fina, dolorosamente, na minha carne.

 

-Cuidado homem! Ainda me tira um bife do pescoço.

 

- Peço-lhe desculpas...mas quando penso na minha vida dá-me cá uma raiva!

 

Não é que eu não percebesse a razão da sua fúria. Com sessenta anos, sem dinheiro, sem nunca ter sabido o que era um gozo real de férias, dava para rebentar com tudo. No entanto eu não tinha, objetivamente culpa nenhuma desta situação e a navalha, quase tão velha como ele, já tinha com certeza cortado centenas de pescoços (à superfície, é claro) e, valha-me Deus, se algum pertencesse a alguém contaminado com sida? Estremeci. Solícito pergunta-me o barbeiro:

 

- Tem frio? Eu fecho já a porta. Como isto está nem se tem ganho para comprar uma garrafa de gás para o esquentador, quanto mais para o aquecedor.

 

Isso já tinha notado. Levara um duche de água fria ao lavar da cabeça. Como sou pacato e não gosto de levantar questões, nem disse nada. Pensei que o esquentador não tivesse ainda aquecido, no entanto disse-lhe:

 

-Podia ter-me avisado antes. Assim evitaria o frio que passei.

 

Pois é, objetou, o serviço já é tão pouco! Se eu avisar, o cliente não lava a cabeça. E são uns euritos a irem-se à vida. A verdade fica muito cara. Não me posso dar ao luxo de ser verdadeiro. Se agora lhe falo nisto é porque já lavou a cabeça e é o meu último cliente. Quando acabar este cabelo vou fechar as portas, entro de férias e já não volto. Não tenho dinheiro para ser patrão, o dono da barbearia nunca voltará ao ofício e consegui a reforma por causa da artrite. O dinheiro não é muito. Mas com as economias em transportes e roupas, mais umas cabeças que arranje lá pelo bairro, cá me hei de governar.

 

Chegado o serviço ao fim escovou-me as costas, recebeu o dinheiro e a gorjeta, fez-me um sorriso e mal saí, fechou, para sempre, as portas da barbearia.

 

 

Vivia-se ao tempo a euforia construtiva do Sr. Presidente. Pelo sorriso permanente, de alvos dentes em riste, pela mania de mandar azulejar de branco tudo quanto fosse de retretes a estações de metro ou comboios tinha sido Sua Excelência apodado - claro, pela oposição - de Brancolejo.

 

Dizia-se que as sessões na Câmara eram tumultuosas e inúteis. Discutisse-se o que quer que se discutisse, tomassem-se quais decisões fossem, era certo e sabido apenas vingarem aquelas que o Sr. Presidente já trouxesse encasquetadas no bestunto. Era um homem de grande inteireza - diziam os apoiantes - era um burro teimoso - contestavam os outros. O certo porém é o seu mandato ir de vento em popa, assim, como de vento em popa foi o dia da inauguração do parqueamento.

 

O que parecia não ter remédio era a desgraçada barbearia. Para além da disfunção obtida pelo patrão, da compelida reforma do empregado, erguera-se agora, comemorativamente, mesmo em frente da portada, um imponente monumento, a ocultá-la completamente aos passantes, destruindo qualquer possibilidade de o patrão obter trespasse que merecesse a pena. Saído do hospital,  confrontada a Câmara com a possibilidade de um processo em tribunal, a cair mesmo em cheio no período eleitoral, foram convocados sábios consultantes.

 

Arranjassem uma solução – clamou o Sr. Presidente.

 

Assim, no dia da inauguração do parque, entre bombeiros de retoque e desfile, meninas de flor e beijinho, fitas cortadas, discursos como o deveriam ser, tudo ao jeito do antigo regime só com mais populares na corrida, o patrão - agora tetraplégico, de cadeirinha de rodas empurrada por zeloso funcionário da Câmara -, engrossava a fila de convidados importantes e, pasmem, ele que nunca tivera carro, nem poderia agora pretender conduzir, receberia, de modo estatutário, o direito a um lugar de parqueamento vitalício e não endossável…

 

Mas, dir-me-ão, que foi feito do empregado?

 

E perguntam bem porquanto, como todos somos iguais, detentores dos mesmos direitos, não poderemos cometer o feio pecado de falar de presidentes, de bancos, mesmo de barbearias e abandonar, como coisa sem interesse, o destino desse anónimo fazedor das coisas reais.

 

Pois bem, não deixem de ter em conta que falamos de um município, de presidência consabidamente democrática e socialista, onde o povo miúdo é sempre tido na devida conta. Foi assim que no dia da inauguração, impante, garbosamente fardado, dentro de um cubículo de vidro, o meu barbeiro recebera a importante missão de cobrar os pagamentos e passar talões aos utentes do novíssimo parque.

 

A história poderia ficar por aqui, com honra, glória e proveito para todos se, no meio da felicidade do meu barbeiro, não caísse a dúvida cruel de um futuro ameaçado. Não nos podemos esquecer vivermos numa época de grandes, progressivas mudanças e o nosso presidente ser dinâmico, homem de larga visão do futuro. Sobretudo muito viajado. Assim, dissertando sobre melhorias e desenvolvimento, por mero descuido, próximo ao recém-reciclado barbeiro, comentou, para a sua comitiva, que um parque assim tão moderno, dentro de todas as convenções das normas europeias, não ficaria completo sem um atualizado sistema de cobranças e controlos automáticos. Como se fazia lá fora...

 

- “Vocês bem veem, isto de ter uns velhotes caquéticos nas portagens de instalações tão modernas não dá lá muito bom aspeto...”

 

Por isto ter ouvido é que o meu barbeiro, quando lhe fui dar os parabéns pela resolução do problema de emprego, esboçou um esforçado sorriso e disse:

 

- Não sei bem... não sei bem...

 

...deixando que duas pequeninas lágrimas ensombrassem a luz daquele grande dia.

 

 

 

 

 

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 12:29


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