Isto sou eu a dizer…! Textos decetivos - 1
Propalava-se, nos idos de sessenta e oito, “Deus não existe, Marx está morto e eu não me sinto lá muito bem”!
E, na verdade, cada vez me sinto pior.
Tudo na vida é precário, sabemos, mas há coisas mais precárias que outras, as quais, pelos efeitos de instabilidade aportada, se fazem sentir com maior penosidade no nosso quotidiano.
Na vulgata marxista as sociedades confrontavam-se com duas grandes classes: os detentores dos meios de produção, os capitalista, e os proletários, seres despossuídos de tudo, a quem apenas restava morrer de fome ou alienar a sua força de trabalho, isto é, dispensar tempo de vida, aos primeiros. A lógica da coisa parece inatacável. Se eu tenho meios e preciso de alguma coisa, a qual não sei, não posso ou não curo produzir, parece lícito recorrer a alguém capaz de fazê-la, a troco de um qualquer outro valor. Sem problemas! Estamos perante uma troca. Dou trabalho, recebo bens. É uma equivalência.
O problema que Marx levanta é o de tal ser mentira. Ou por outra, defrontamos uma não reciprocidade substancial. Em qualquer altura, por variados motivos, a troca foi desequilibrada. Os meios de produção tornaram-se mais poderosos que o produzido, isto é, o resultado de um fazer ou de um conhecimento. Estava revelado o âmago das desigualdades sociais: existia, surdo, presente em toda a parte, um sistema que as perpetuava, justificava e procurava, continuamente, aprofundar. A forma era simples. Os recursos eram escassos e talvez não fossem suficientemente abundantes para todos requererem o quinhão apetecido. Era pois preciso repartir. Alguém, ou algum grupo, exigia o direito de ser o repartidor. Podia fazê-lo por convencimento dos outros ou pela força. O resultado seria o mesmo. Os repartidores ficariam com a parte de leão, deixando para a maioria apenas os resíduos. Parece monstruoso, desonesto, mas é assim que tem sido e continua a ser, pois, como diz o povo, em bovina aceitação, “quem parte e reparte e não fica com a maior parte, ou é tolo, ou não tem arte”.
O termo luta de classes foi criando anticorpos e, mesmo a lógica das sociedades democráticas parece não lhe deixar muito espaço, preferindo conceitos como colaboração para fins comuns, interesse nacional, redistribuição parcelada, etc.. No fim, se analisarmos bem a coisa, trata-se sempre de manter a troca desigual, com a subordinação de um grupo a outro que, com legitimidades diversas, o explora, guardando os frutos do seu labor, distribuindo uma parte, sempre a menor possível, apenas suficiente para o manter produtivo e reprodutor da força de trabalho, isto é, trabalhar e fazer filhos que o venha substituir na cadeia de produção..
E assim, desigualmente viveríamos na paz dos anjos, entre pobres e ricos, contribuindo todos, a seu modo, para a riqueza das nações, como diria Adam Smith e as leis e religiões, a seu modo, consubstanciavam.
Porém, o sistema, contém em si o gérmen da sua destruição. A imparável ganância! Não chega ter mais. É preciso aumentar sempre esse mais, é necessário que símbolos externos demonstrem tal poder e que, os insuficientemente providos, acreditem ser possível passar ao grupo dominante, ainda que a realidade crua das suas vidas lhe grite, a todos os segundos, o caminho minado a percorrer e a quase impossibilidade de chegarem vivos ao fim do percurso. Algum conseguem, atiram-me aos olhos os plenos de esperanças. Claro! O sistema deverá ser demonstrativo de tal possibilidade. Assim como o Euromilhões! Quem é que pensa, quando mete o boletim, que as probabilidades de ganhar são de um para cento e quarenta milhões? Qual quê! Então não há sempre alguém que ganha? O que impede que me calhe a mim? Nada, evidentemente, a não ser a parva da estatística que, corroendo o sonho, demonstra ser mais fácil morrermos atingidos por um raio numa trovoada, do que sermos beneficiados por essa lotaria. A esperança é a última coisa a morrer, não é?!
Pois, pois, mas o Marxismo está morto e enterrado, entre outras coisas, pela União Soviética. Os tempos são outros. Essa coisa de patrões e proletários é história passada. Hoje vivemos em Democracia, temos acesso a muitos meios de produção, todos poderemos ser donos de qualquer coisa e, a informática mudou muito as forma de relação com os poderes. Verdade, não é? Claro que sim! Temos tanto poder e informação que até sabemos quem foram os causadores da crise, quem a mantém e quem com ela ganhou ou ganha. Até conseguimos saber que são os mesmos que a criaram a ser, na maioria, quem continua a beneficiar do sistema. O problema, com outros conceitos e designações, prossegue o mesmo. A maior parte das pessoas engorda, de muitas formas, um pequeno grupo detentor dos meios de valorizar as coisas. Mudam as moscas…
O problema desta ganância infinita é, como já se disse, a sua insanidade. Na ânsia de engolir tudo, irá, mais tarde ou mais cedo, engasgar-se e pode não haver socorro à mão. Por isso voltamos à precariedade. É precária a vida, é precária a riqueza, é precário o poder, é mesmo, cada vez mais precário o planeta em que viajamos. O resultado de toda esta precariedade, aumentada pelo monstruoso aumento de rapacidade dos dominantes, é que, de forma ínvia, a sociedade começa a responder a esta situação. As levas de migrantes, a recusa, por impossibilidade económica e sentimento de insegurança, dos jovens a procriarem, está a levar-nos, em caminho de não retorno, para precipícios inimagináveis. Ninguém nasce revoltado. A revolta é a consequência das injustiças e do desespero. Senhores mandadores, é para aí que estão a empurrar as sociedades. Têm a certeza de quererem mesmo isto, ou se, acontecendo o desastre, irão, como pensam, escapar incólumes? Quem semeia ventos colhe tempestades e a meteorologia social está, há bastante tempo, a difundir avisos urgentes.
Cá para mim, sem qualquer velada ameaça, penso que seria melhor dar-lhe, enquanto é tempo, ouvidos e soluções.
Isto sou eu a dizer…!
Publicado in “Rostos Online”