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Fronteiras

Terça-feira, 08.11.22

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Nunca me esqueço de duas afirmações de Carl Sagan sobre a Terra. A primeira é que, vista do espaço, a terra é um pálido (e frágil) ponto azul. A segunda e neste contexto mais importante, é que do espaço não se vêm fronteiras. E ainda, parafraseando António Sérgio – cito de cabeça – uma fronteira é o lugar mais distante a que um estado consegue levar as suas forças armadas.

 

Por isso, qualquer fronteira, é uma linha imaginária político-económica, mais ou menos estável, traçada segundo a força e os interesses de potências temporariamente dominantes. Recorde-se que na conferência de Berlim, decorrida entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885, foi dividida, a lápis e régua, a África pelas potências, na sua maior parte Ocidentais. Como é sabido não se tiveram em conta a geografia, as tribos e clãs locais e seculares, nem tão pouco as famílias divididas por tais traçados. Esqueceram, ou não quiseram lembrar-se, um conhecimento primordial: o mapa não é o terreno. Assim se criou a confusão, que ainda hoje reina em África, porque o traçado feito em Berlim não respeitou, de forma alguma, as realidades culturais e sociais existentes no terreno. O resultado foram a discórdia e confusões fomentadas entre povos unos, artificialmente separados. Como seria de esperar, dada a mentalidade da época, os mais prejudicados por tal repartição - os residentes nessas regiões ou colónias - nem foram ouvidos, nem tiveram um único representante na conferência.

 

Portanto, idealmente, as fronteiras deveriam ser inexistentes e a Terra seria posse ininterrupta da espécie humana (deixo em aberto a discussão sobre esse direito em relação à restante vida animal). Claro, tal só seria possível se a espécie humana se permitisse elidir o papel de chefias, hierarquias, domínios e sucessões a estabelecerem continuadamente interesses, limites e separações.

 

Chegamos, deste modo, aos problemas atuais das alterações climáticas,  dos refugiados, da guerra da Rússia contra a Ucrânia, do crescimento das extremas direitas nacionalistas, de algum fascínio das massas – que não conheceram as ditaduras imperiais – pelos homens fortes, salvadores de pátrias e sempre, autoritários, a pôr em causa os avanços humanitários e democráticos, numa tendência para a barbárie  a crescer quando os esforços, para fundir voluntariamente os limites territoriais dos países em confederações, mais aptas a defenderem o bem-estar das populações, pareciam estar a ganhar terreno.

 

E isto deixa-me perplexo.

 

Não vivo apaixonado por esta União Europeia, mas acredito que precisamos dela para sobreviver. Quanto a mim - embora de união tenha por vezes muito pouco e só por vezes se lembre daquilo que pretende ser, por se deixar subordinar a valores egoístas das nações mais poderosas ou de oligarquias locais – penso que, no mundo atual, as nações já não serão unidades integradoras suficientes para a geopolítica que se desenha. A traço grosseiro estamos a caminho da criação de blocos alargados, mais consentâneos com os problemas da época em que vivemos, tal como no século XIX se caminhava para a criação de nações, unindo regiões contíguas ou com desígnios socioculturais semelhantes. Estas modificações não surgem do nada, mas são consequências das alterações tecnológicas em crescimento a transformarem possibilidades, necessidades, comunicações e aceleramento nos modos de vida das sociedades humanas.

 

No entanto estes blocos podem ser tão antagonistas entre si, como as nações o foram, dando, no século passado, origem a duas tremendas carnificinas que nunca deveriam ser esquecidas, mas que parecem agora não lembrar a muitos nos comandos das políticas internacionais.

 

É aqui que se me afigura o maquiavelismo das ações de alguns centros aglutinadores dos blocos. A traço grosseiro apontaria para um bloco Sino-Soviético (talvez com a Índia à mistura); para o Ocidental (incluindo a Europa sob gestão dos Estados Unidos) e, finalmente para o religioso/ideológico dos islamismos radicais. Ora estes blocos que visam aglutinar a si diversos povos, procuram incentivar nos outros a divisão através de nacionalismos extremos, como forma de desagregação, a permitir-lhes o domínio da Nova Ordem Mundial. O problema é que qualquer deste blocos propõem modos de vida muito diferenciados. Por isso não é indiferente, embora algumas vezes a escolha amargue, a qual ofereceremos a nossa simpatia ou adesão.

 

Sou ocidental, lutei pela democracia e é assim que quero viver. Não me servindo esta Europa completamente, entre outras coisas pelas ideias de vencedores e falhados, provenientes do nosso antigo cérebro retilíneo, disfarçadas de livre empreendedorismo, de contínua competição neoliberal, do aumento de desigualdades sociais, não me vejo a voltar a regimes autoritários como o chinês, nem a teocracias como as islâmicas. Deste modo, exorto todos a perceberem o que está por detrás de muitos discursos nacionalistas, a não se deixarem levar no simplismo de soluções que aparentam resolver de uma penada os problemas sociais, apontando as culpas a um ou mais grupos profissionais ou de crenças, e percebam que a Democracia tem um custo e um tempo. Se a autocracia apresenta soluções imediatas, a médio prazo transforma cada cidadão em súbdito, cada direito em favor e aprofunda as injustiças através da centralização de poder e atribuição de privilégios apenas aos comparsas.

 

Dirão alguns: isto é o que se passa nas Democracias. Aceito que em grande parte terão razão. No entanto podem denunciá-las e, de formas várias, lutarem modificando o que é considerado como nocivo, melhorando no médio prazo. Já nas ditaduras… traçam-se fronteiras pessoais e de grupo intransponíveis, inaceitáveis e de uma rigidez que apenas, a muito longo prazo poderão ser quebradas, com muito sofrimento, sangue e revolução.

 

Porque as fronteiras que existem na terra partem das fronteiras criadas nos nossos cérebros e todas são limitações indevidas de algo, sou, claramente, anti-fronteiras, sabendo-me, por enquanto utópico, mas acreditando que a utopia é o lugar do futuro.

 

 

Publicado in “Rostos On-line”

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publicado por Carlos Alberto Correia às 17:03


1 comentário

De Domingos P. a 08.11.2022 às 19:43

Um 1º parágrafo, normalmente, ajuda-me a ajuizar ´pelo todo´!
Assim sendo. muitos parabéns pela tua memória.
Domingos P.

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