São contra a eutanásia, dizem eles!
Presumem-se pessoas de moralidade perfeita. Reconhecem-se bem pensantes e têm a certeza da infinita bondade das suas ideias. Predicam um mundo de amizade, compreensão e de mãos dadas. Não deixam de ser caritativos e são assíduos em algumas prestações, mais mediáticas, de ajuda aos necessitados. Sofrem com o abandono de crianças e, por vezes, correm a adotá-las salvando-as de uma vida sem apoio familiar. Têm princípios, educação e, frequentemente, são mesmo gente abastada. Prenunciam-se ativamente contra o aborto e a eutanásia. Consideram que ninguém tem completo domínio sobre o seu corpo, porque sobre a sua vontade deverá imperar um principio religioso ou legal. A morte só poderá advir de um desígnio sobrenatural ou de uma decisão de juízes. Desapossam assim, completamente, os desapossados da única coisa que ainda é sua: o seu corpo, e fazem nisto o corolário de uma imensa hipocrisia social.
Votam, claro, maioritariamente à direita. Como costumam dizer, à direita dos valores sendo que devemos entender que, na verdade, o seu voto é nos valores da direita. Isto é, possuem uma visão particular do mundo que pretendem tornar única e para toda a gente, destruindo a multiplicidade, servindo-a obrigatoriamente a quem, não a compartilhando poderá ver-se, por necessidade, forçado a partilhar os efeitos de tais ideais. A isto chamam liberdade de escolha. A isto chamo eu subjugação. Claro que os bem pensantes, aqueles que no dizer de Sophia de Mello Breyner, cito de memória, como todas as pessoas sensíveis não matam galinhas, nunca deixam, porém, de continuar a comê-las. Desde que outros, que por isso desprezarão, as matem por e para eles. Não fazem o que é sujo, mandam fazer.
Essa gente que se horrorizará com a história daquela tribo ameríndia em que os filhos, quando o pai envelhecia, perdendo as capacidades de manutenção própria, lhes davam uma manta, os levavam para o alto de um monte distante e lá os deixavam abandonados até que a fome e os elementos lhes trouxesse a morte, é a mesma que assiste impávida e até com sorrisos de aprovação às medidas assassinas que, na nossa civilizadíssima sociedade, vêm sendo tomadas para a eliminação segura e paulatina dos idosos. Aplaudem a doação da manta, o distanciamento e o abandono, entre o simbólico e o real, a que as medidas de ajustamento financeiro estão a condenar os nossos velhos. É uma atitude assassina, descomprometida, cheia da leveza da ausência de culpa. É a galinha que se come porque não a vendo matar se elide a realidade dessa morte. É, como já dito, o cúmulo da hipocrisia servida em belas atitudes assistencialistas. Todos sabemos que para haver caridade é preciso criar pobres. E tudo isto está muito bem e está muito certo enquanto bater às portas dos outros. O caso só muda de figura quando o risco lhes bate à porta. Aí, bradarão aos céus a injustiça que os vítima e, ostensivamente, fazem entrar no oblívio os quantos, antes deles viram soçobrar sem um pequeno esgar de desaprovação e pensando sempre que se a desgraça lhes batia à porta era porque o mereciam. Na maior parte das vezes a solidariedade social é uma verdadeira ficção. Sobretudo quando a iniquidade é praticada pelo partido em que essas santas almas, sempre na paz do senhor, votam e depositam toda a confiança.
Pagam aos pensionistas reformas miseráveis? Pois, é pena, mas o Estado não tem possibilidades e não pode pagar mais. Mas esse Estado não compra carros de milhares de euros? Claro, é necessário para manter a dignidade das funções! Cortam na assistência medicamentosa? O que se haveria de fazer quando as contas com os medicamentos atingem valores tão elevados? A falta de poder aquisitivo para os remédios condena as pessoas a um menor período de vida e a suportar dores e infortúnios aflitivos? Ora, ora, é da idade, o que se pode fazer? O cada vez mais difícil acesso à reforma obriga gente já sem capacidade de trabalho a arrastar-se agonicamente num posto que deveria passar para gente mais novas? Que querem? São as condições da economia que fazem regras sacrossantas para explorar até ao limite as forças vitais e, depois, descartar o ser humano que por esgotado já mais não possa? Já ouvimos, em prédicas de Estado, afluir, por desastrados comentários, à superfície do discurso, o quanto o reformado é egoísta por, não morrendo rapidamente, estar a expurgar o tesouro de valores que bem podiam ser empregues em mais rendosos negócios. Claro, quem assim fala nunca se lembra de que não dão nada a ninguém, apenas devolvem parte do valor que a pessoa, ao longo do tempo de trabalho, descontou, como um seguro, para auferir na velhice de uma vida mais calma e digna. Também se esquecem que o tempo passa e que aquilo que estão a preparar para os outros virá, um dia, a cair-lhes sobre a cabeça. Só a ilusão e uma menoridade mental lhe obnubilam essa certeza. São distraídos e cúmplices de um enorme assassinato coletivo dos idosos e das esperanças dos mais novos. Continuam no entanto, bondosos e bem pensantes a defender os valores da vida, abominando o aborto e a eutanásia mas participando, mais ativamente que o que querem reconhecer, no crime de eliminação dos idosos que vale, agora, como lei económica, na nossa bela e pútrida sociedade.
Volto a recordar: as pessoas sensíveis não matam galinhas!
Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt