Raivar… que este é outro jogo! Um exercício arriscado
Hesitei bastante antes de me arrojar na escrita destas linhas. Apenas a insistência dos meus colegas sobre a necessidade de uma explicação detalhada dos motivos que levaram o Projéctor, na encenação de Abílio Apolinário, a representar, nesta época, um Auto de Índia, transformado por uma apresentação e um epílogo de lavra atual, me levaram à prossecução deste atrevido exercício.
Atrevido a meu ver por duas ordens de ideias. A primeira porque estou duplamente implicado como ator e como autor dos textos acima referidos. A segunda prende-se com o injusto esquecimento de que é frequentemente alvo Gil Vicente, o pai do nosso teatro.
Em reunião coletiva do Projéctor foi tomada a decisão de encenar, pelo menos uma vez por ano, uma obra de Gil Vicente. Deliberação correta mas, incrivelmente, com alguns riscos. Se noutros países os seus dramaturgos fundadores são motivo de culto, sendo assiduamente representados, entre nós, parece existir um pudor, indiferença ou ressentimento contra os nossos maiores autores, relegando-os para o limbo dos usos insuficientes em manuais escolares ou outras práticas académicas. Representá-los, usá-los como matéria viva, raramente nos passa pela cabeça. Espanha louva Lope de Vega, Inglaterra incensa Shakespeare, em França imperam Racine e Molière – entre outros – e na Itália Goldoni, faz o pleno. E nós? Como sempre, por baixos motivos, imprecamos contra o que é nosso e, bacocamente, deslumbramo-nos com “o que vem lá de fora”. Parece envergonhar-nos aquilo que aqui se faz ou fez. Não é de agora esta pecha e, um relançar de olhos pela história, mostra-nos, sem rebuços, a permanência de tão nefasto comportamento.
Decididos a contribuir, dentro das nossas possibilidades, para ultrapassar este estado de assumida menoridade, em termos de festejo de quinze anos de vida e na primeira festa do teatro organizada pela nossa Companhia, fizemos avançar o Auto da Índia, certos da atualidade do seu conteúdo. Senão vejamos: Apertados pelas poucas possibilidades oferecidas pelo País os nossos avoengos, por necessidade ou ambição, mandam-se ao mar em busca das riquezas que por cá escasseavam. A sangria desta migração, ainda que temporária, na pequena população do país reflete-se de modo vário nos usos e viver da população, conduzindo à quebra dos costumes e mudança de moral. Pode dizer-se ser sinal dos tempos e ser sempre assim. Cada época mata a moral antiga e faz crescer uma própria, nascida das necessidades e conjunturas históricas. Nada a opor quando tal mudança aponta para um bem maior. Ora as navegações, trazendo brilho, prestígio e bens de alto valor, não permitiam – onde é que eu já vi isso? – uma redistribuição equitativa por todos os atores sociais em presença, causando um desequilíbrio civil bem maior e desgastante que o anterior. Por isso, Gil Vicente satiriza o Marido (Navegador) na ânsia de riquezas, perdendo as virtudes, apesar de tudo, ainda declaradas como válidas numa sociedade que, na prática, se ia afastando, cada vez, mais delas. Aponta também, na pesporrência do Castelhano e na sua corte a Constança, o risco, sempre presente, da opressão castelhana. Degradação interna, risco de dominação exterior, houvesse mais um pretendente a Constança e teríamos desenhado, sabem o quê, uma “troika”.
O teatro de Gil Vicente é, sobretudo, um teatro de atores. Daí a escolha do encenador por um palco onde os adereços são apenas, ao lado esquerdo a cama, ao direito um banco, marcando os espaços da casa. Entre o banco e a cama circula uma roca, símbolo do trabalho diário a cair para o desprezo (como diz a Ama, “siquer fiarei um fio”) com os olhos postos nos lucros a vir, fossem eles resultantes de comércio são ou de matanças e roubos em que, recorde-se Fernão Mendes Pinto, os nossos marinheiros eram expeditos, ganhando-se e perdendo-se fortunas – e vidas – em cada viagem.
Havia contudo dois problemas a ultrapassar. Um era a pequena duração da farsa, outro era a dificuldade de apreensão dos temas da peça por dificuldade de compreensão das falas, mantidas, por opção, no original. Muitos grupos de teatro resolveram o primeiro problema apresentando mais do que uma peça do autor; outros fizeram a junção de partes de vários autos, produzindo uma obra particular. Nós decidimo-nos por acrescentar dois textos – Apresentação e Epílogo – mantendo a métrica e musicalidade dos textos vicentinos, servindo o primeiro para explicação da farsa, ao mesmo tempo que introduzia a atualidade através da frustração sentida pelo Apresentador na distribuição de papéis, tal como acontece nas nossas vidas e no tempo presente. No Epílogo, bebendo ainda nas narrações de Fernão Mendes Pinto, ultrapassando a ambiguidade deixada por Gil Vicente na condição económica do Marido, apontamos para um regresso às Índias onde iria recuperar tesouros que deixara escondidos. Acentua-se a ambição reinante e, pela decisão do Marido, os amantes de Constança tornam-se seu protetor, o Lemos e aprovisionador, o Castelhano. Pode interrogar-se aqui o espetador sobre a ingenuidade ou esperteza do marido. Seria ele tão parvo que não entendera que o casamento ruíra por diferença de idade e ausência? Ou, pelo contrário, consciente de tudo isto e sendo seu maior interesse a recuperação das riquezas, metia, dentro de casa o diabo, para esconde-lo dos olhos da população, salvaguardando as aparências? Ao dar o seu beneplácito ao trânsito dos amantes da mulher, através do exercício de atividade reconhecida, salvava a face e poderia ir em busca de mais riquezas, único interesse de Constança nele próprio. A tudo isto assistia a Moça, ao mesmo tempo participante e distanciada julgadora, instituída voz da moral popular onde residiria ainda o repositório crítico dos valores da nação.
Apresentado, em quadro sinóptico, o enquadramento da ação está cumprida a tarefa da explicação que julgo necessária. Abstenho-me de falar da interpretação porque isso caberá ao público ajuizar. Assim, recomendo que no próximo domingo, dia 27, pelas 17 horas, vão assistir à última representação deste auto, integrado na Festa do Teatro da Associação Projéctor, nos Penicheiros.
Vão e julguem por vós próprios!
Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt