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A côncava funda

Segunda-feira, 18.06.07



Pensei chamar a esta crónica o “ovo da serpente”. O título convinha-me porque, sendo bebido no filme de Ingmar Bergman, de 1977, era ponto de partida para a ideia da criação de um monstro, o qual, de forma pretendida e dissimulada, ou apenas por mera distracção ou incapacidade governativa, haveria de levar o país a uma difícil situação social ou, no caso do filme, o mundo à quase destruição pelo ideário nazi. No entanto, uma pequena pesquisa na Internet veio mostrar-me como esta minha brilhante ideia já tinha sido tida e usado, pelo menos, por cinquenta mil e dois outros autores. Assim, lá me fui à procura de título sugestivo, menos usado e que simbolicamente remetesse para o meu objectivo.

Encontrei-o no poema do Fausto, “Por este rio acima”, que em parte transcrevo:


“Por este rio acima
Deixando para trás
A côncava funda
Da casa do fumo
Cheguei perto do sonho…”

Ora o terceiro e quarto versos da canção serviam perfeitamente para representar o local inominável onde, por ocorrências várias, no cenário nacional e internacional, me vou sentindo. Porque as questões internacionais são demasiado vastas para inscrever numa simples crónica, estreitando o campo, falarei da côncava funda da casa do fumo nacional. Para estabelecer a necessária ligação, referir-me-ei, ainda que em breves traços, à circunstância onde, na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, aparece a alegoria.

Então, lá vamos!

Andava, por essas épocas, Fernão Mendes Pinto viajando por terras do Japão. Em Fuchéu travou conhecimento com o rei a quem tratou de uma grave enfermidade, tornando-se por isso pessoa grada naquela cidade. Caçava de vez em quando rolas, pombos e codornizes com a sua espingarda, maravilha técnica que espantava os locais. O segundo filho do rei, cativado pelas possibilidades da arma insistiu, com apoio do pai, para que Fernão o industriasse no manejo da escopeta. Tentou escapar-se da tarefa o nosso autor, dados os múltiplos perigos que a utilização de tal arma representava, mesmo para o utilizador, desde que não se tivesse aprofundados conhecimentos da tecnologia e processos envolvidos na preparação e execução do tiro. No entanto, dada a insistência, decidiu treinar o príncipe na arte do disparo. No dia aprazado, ainda o português dormia, o príncipe, acompanhado de dois outros jovens, apoderou-se da arma e, macaqueando o que vira fazer a Fernão Mendes Pinto, carregou-a e disparou-a, com o resultado de a fazer rebentar, ferindo-se gravemente.

A primeira reacção dos nipónicos foi a de matar o português. Alguma ponderação levou a que se esperasse para que fosse feito um inquérito para saber se, por detrás deste acontecimento, não haveria o interesse de alguém que tivesse pago a Fernão Mendes Pinto para que fizesse acontecer tal desgraça. No interrogatório é instado a confessar pelo Bonzo nos seguintes moldes “Eu te esconjuro como o filho do Diabo, que és, e culpado neste crime tão grave como os habitadores da casa do fumo metidos na côncava funda do centro da terra, que aqui em voz alta que todos te ouçam, me digas qual foi a causa porque quiseste que a tua espingarda com feitiçarias matasse este inocente menino que todos tínhamos por cabelos da nossa cabeça?” (Peregrinação, Capítulo 136).

Onde é que eu quero chegar, com isto tudo? Perguntarão retoricamente os meus amigos, sabendo de antemão que me vou remeter para a crítica directa e clara à situação vivida em Portugal, neste ano da Graça de 2007 e no segundo ano da governação do Celeste Sócrates.

Os portugueses confiaram e concederam-lhe uma maioria absoluta. Grave erro na minha opinião. Sendo a Democracia a melhor das sempre más formas de governação, dois limites há que se lhe impõem de forma constrangedora. O primeiro é o limite temporal. Juntando-se este com a necessidade de conquistar votos, no curto prazo, tem esta servidão o efeito de dificilmente serem tomadas medidas estruturais, as quais a serem seguidas, só no longo prazo farão sentir os seus benefícios, trazendo para o curto prazo o desagrado e a perda de votos. O Governo Sócrates, inicialmente, parecia inscrever-se no tipo do governo corajoso, capaz de perder no imediato para maior colheita no futuro. Do desengano falarei posteriormente. O segundo limite é o da tão requestada maioria absoluta. Não há partido que a não deseje, nem governo que por ela se não bata denodadamente.

No entanto a maioria absoluta é uma forma subtil de corrupção dos ideais democráticos. A Democracia não é só meter o papelinho na urna e voltar para casa confiando na previdência dos deuses e na bondade dos homens. É um exercício contínuo de cidadania, crítica, propostas e contraditório. Tudo isto fica abalado quando a tão pretendida maioria absoluta é conseguida. Salvo erro, apenas duas vezes – Cavaco Silva e Sócrates – tal foi atingido. Inicialmente saudadas porque aparentemente a ultrapassagem de oposições, pelo superior número de votos no Parlamento, permite fazer a apresentar obra de imediato, traz em si, um gérmen destrutivo, chamado soberba. Era esta a doença dos Césares e Faraós que, perante o enorme poder do Império, enlouqueciam e se faziam considerar divinos, portanto acima de qualquer possibilidade de aceitarem sugestões ou chegarem a consenso com os pobres e diminutos mortais.

Concluo, portanto, que embora possível e constitucional, a maioria absoluta é uma doença da democracia que se não a nega, a debilita profundamente.

Disto temos a prova nas inconsequências e erros deste governo. Apareceu, com entradas de leão, disposto a diminuir o défice, manter os impostos, transportar o país para os níveis de prosperidade da melhor Europa, diminuir o desemprego, actualizar os conhecimentos tecnológicos dos portugueses, resolver o problema da desertificação do interior, etc.,etc. e etc.

Que vemos nós, dois anos passados das miríficas promessas?

Houve um êxito relativo no valor do défice que não compensa a morte das restantes esperanças. Desacreditou-se o Primeiro-ministro pela inversão das promessa e por episódio pouco dignificante de pesporrência social. Na educação, chave para o progresso de qualquer nação, a ministra, assertiva e inconstitucional, abre várias guerras contra os professores, esquecendo-se que não há educação sem educadores motivados e inventa titularidades – que podendo ser discutidas e abertas por soma de méritos – acabam num pântano cargo-administrativo. O ministro Lino afunda-se, com o governo atrás, no pântano da Ota e de afirmativo e prepotente, de um dia para o outro, descobre que enfim a decisão final não é assim tão final ainda. Lobbies que nalgum esconso local se firmam!

Não fica isento de culpas o ministro dos assuntos parlamentares na questão da domesticação dos media. Não era precisos que ele se esforçasse tanto e tão contra o que já foi e já escreveu. Bastava esperar que o movimento de fusões nas empresas jornalísticas e de difusão de som ou imagem prosseguissem paulatinamente o caminho já encetado. Chegaríamos na mesma à voz do dono. Só que a imagem do governo e do ministro não se degradariam tanto. Esforço desatempado e a mais para o domínio de algo que já está a ser dominado. Ah! É verdade! Falta a blogosfera…mas a essa, com algum tempo lá chegaremos também.

E a saúde como está doente! Fecham-se urgências, maternidades, hospitais antes que alternativas válidas sejam postas em campo. Depois é o burburinho que se sabe. As certezas e os recuos. A afirmação e o voltar atrás descredibilizando estudos, soluções e intenções. É o país desertificado a ficar mais deserto. São as populações jovens a fugir para o já muito desequilibrado litoral, são os velhos a ficar, sem condições à espera que a morte os liberte do isolamento. E tudo em nome de uma boa política de desenvolvimento e saúde.

Só não fico por aqui, e já seria demais, porque sinto o país a fechar-se no medo irracional se ver alguém apontado por falar mal do chefe. Voltámos ao pequeno e ignóbil reino das delações e intrigas onde o que conta é o coeficiente de dobragem de espinha e não a inteireza, livre e responsável, de um cidadão consciente e orgulhoso de ter direitos porque cumpriu cabalmente os seus deveres.

Estas são, entre muitas outras, as razões da minha vil tristeza, por sentir como me embarco e sou arrastado, contra vontade, para a côncava funda da casa do fumo.

É por isso, por longa que vá a palinódia, que não deixarei de citar António Gedeão, em excertos do seu poema Galileo, para que “quem tiver olhos que veja, quem tiver ouvidos que ouça”:

(…)“E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal e qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai, Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.(…)

(…)Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.
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publicado por Carlos Alberto Correia às 22:32


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