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Gisela do quotidiano – uma estória de sempre

Sexta-feira, 09.02.07
Conto esta breve estória no papel de marido da Margarida Gentil, já falecida, que se estivesse viva militaria, com certeza, num movimento de apoio ao SIM no referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez.

A mãe de Gisela trabalhava a dias, desde há muitos anos, na nossa casa. Conhecemos a Gisela desde o nascimento e afeiçoámo-nos profundamente à menina tornando-se ela a companheira, por excelência, da nossa filha nascida dois anos depois.

Cumprindo o ritmo natural da vida a Gisela foi bebé, criança e chegou à adolescência numa fugaz passagem do tempo. A sua relação connosco foi-se mantendo e reforçando no decorrer dos anos tornando-se cada vez mais familiar.

Andava pelo 15º aniversário quando um dia, de olhos inchados e o nervosismo a rebentar por tudo o que era corpo, pediu atrapalhadamente à Margarida para falar a sós com ela.

Estava grávida do namorado, de igual idade, e também estudante. De angustiada não sabia o que fazer. Falar com a mãe, não! Nem saberia como começar. Encarar o pai? Nem pensar nisso nem na sova que levaria mal tivesse aberto a boca. O namorado ficara em pânico quando lhe contara a situação e agora evitava encontrar-se a sós com ela e mal lhe falava. Estava infeliz, desamparada e ameaçava pôr termo à vida. Toda a sua angústia expressava-se numa única interrogação:

- O que vou fazer da minha vida?

Contou-me Margarida que, tanto quanto foi possível, a tentou tranquilizar. Informou-se sobre quanto tempo pensava ter de gravidez prometendo que, no dia seguinte, voltariam a conversar sobre o assunto. Nessa noite contactou algumas pessoas e entre elas uma amiga psicóloga que se prontificou a falar com a Gisela, caso ela quisesse.

A Gisela quis.

Não conheci o teor da conversa. Sei que Margarida me pediu para, num certo dia, as acompanhar a um determinado hospital onde, sob uma qualquer denominação cirúrgica, a Gisela iria ser submetida a um aborto que oficialmente nunca o seria.

Abro um parêntesis para esclarecer que tanto eu como a Margarida sentíamos, em relação ao aborto, uma certa incomodidade. Ética e teoricamente defendíamos a sua possibilidade mas, quando em conversa transpunhamos a sua realização para um possível filho nosso, concordávamos que seria uma opção que talvez nunca fossemos capazes de tomar.

Parêntesis fechado.

Gisela ficou nessa noite, sob vigilância, em nossa casa e felizmente, como foi bem assistida, depressa de recompôs.

O tempo continuou a passar e Gisela fez uma licenciatura em Direito, casou, teve filhos, ganhou estatuto social. Esta estória só não acaba completamente bem porque, alguns dias atrás, depois de, pelas voltas da vida, passarmos muito tempo sem contactarmos, a encontrei na Baixa Lisboeta.

Eu distribuía panfletos apoiando o Sim ao referendo, ela, olhando-me um pouco comprometida, ostentava uma vistosa pancarta defendendo voluntariosamente o Não.

Sem negar à Gisela do ano 2007 o seu direito a uma opinião própria, não me foi possível deixar de reverter àquela desesperada Gisela que procurou a Margarida, no já distante ano de mil novecentos e sessenta e nove.


Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt/

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publicado por Carlos Alberto Correia às 00:05


2 comentários

De Henrique a 15.02.2007 às 00:09

Percebi tudo, menos a "estória". Não encontro a palavra em nenhum dicionário. Imaginei que a criaste tu, mas não entendi que lugar vago no léxico português exigia este neologismo.
Sou um conservador - dirás tu. Hei-de ser. Se tu o dizes é porque é verdade. Mas a "estória" atravessa-se-me no caminho e não consigo passar-lhe por cima.

De Anónimo a 15.02.2007 às 17:54

Vamos lá ver se te dou uma ajuda para retirar a "estória" do teu caminho para que possas prosseguir o teu itinerário.

A palavra "estória" não foi, infelizmente, criada por mim. Entrou no vocabulário através do Brasil e Palops e, como sabes muito bem, é uma forma de distinguir gráfica e afectivamente a História, as histórias, das "estorinhas".

Quanto à sua aparição em dicionário, não sendo para mim a coisa mais importante em escrita criativa, o melhor é dares uma voltinha pelo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa onde poderás encontar a palavra e o seu significado e, a nota "Este dicionário é publicado em Portugal, na norma portuguesa da língua, com o apoio e patrocínio a Academia de Ciências de Lisboa."

Não penso que sejas um conservador e o que não quero é que não fiques travado no caminho porque uma estória irrompeu abruptamente na tua vida.

Jocas

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