Vejam só esta tremenda coragem
Sexta-feira, 05.11.10
Pronto! Descansai corações o orçamento vai ser viabilizado. Exultai, pois portugueses, que os mercados, tendo em conta o consenso conseguido, irão atender as vossas piedosas preces e prescindirão do suave lucro a que se julgam com indubitável direito. Tudo isto porque o governo teve a formidável coragem de nos espoliar e o PSD, fazendo que tomava amargo e obrigatório remédio, de careta afivelada, pedindo desculpa aos seus maiores, num outro tipo de coragem, se irá abster, deixando assim seguir um orçamento de que ninguém parece gostar, mas a quem ninguém se ousa eximir.
Tanta coragem envergonha-me não só perante a minha evidente cobardia, como ante a impossibilidade de perceber a propalada inexistência de alternativas.
De facto, muito dificilmente eu conseguiria ser, como eles, um Robin Hood ao contrário. Falta-me o necessário valor pessoal - ou desfaçatez - para roubar os pobres para dar aos ricos. Compreendam! É uma falha de carácter que assumo. Nada posso fazer para a modificar e tenho de me habituar a viver com este peso na consciência. Nem mesmo o estrénuo exemplo do nosso primeiro, de tão aprimorado amor à verdade, consegue motivar-me para tão nobre cruzada. Sim, eu também li Giddens! Também eu tentei perceber a possibilidade de novas linhas de actuação sociopolítica. Só não entendo como, a partir dessas ideias, viemos parar neste absurdo onde as palavras mudam de sentido e o que se afirma é, por norma, o contrário do que se faz ou manda fazer. Esforço-me por compreender como é que um partido socialista, conservando algo do discurso de origem, se torna tão servil a teses neoliberais, produzindo um efeito perturbador de pessoas e conceitos, transformando em insegurança e descrédito o dia-a-dia dos cidadãos, turvando as convicções, tornando o mundo ilegível, transformando-o numa coisa, por desconhecida, ameaçadora.
Tudo isto começou, já referimos, com as generosas tentativas de Anthony Giddens de tentar uma via que não sendo o feroz neoliberalismo de Thatcher e Reagan, aproveitasse dele as ideias de liberdade e mercado o qual, com alguma regulação, deixaria sobreviver o mais importante do estado social. Se a tentativa foi generosa os efeitos deixaram muito a desejar: Clintton viu fugir-lhe o serviço nacional de saúde, uma das mais importantes bases da sua campanha; Guterres, em hora de lucidez, ao ver a que pântano tal casamento ideológico conduzia, desertou; Tony Blair caiu na guerra do Iraque, ao lado de Bush. Todos, de uma forma ou outra, acabaram dominados pelas lógicas dos mercados financeiros, pela coacção das deslocalizações, pelo menosprezo das gentes. Claro que num estado inicial eles interessaram ás forças movimentadoras dos capitais e do mundo. Aliás, em Portugal, o Partido Socialista sempre foi utilizado como arma para infiltração do inimigo no forte. A firme coerência dos mandantes mostra-nos que uma vez penetrado o reduto, por desnecessário, dispensam o servidor e procuram alguém que vista, sem rebuços, a sua cor. Eles, que leram a Bíblia, sabem que ninguém serve bem a dois senhores e lembram-se disso no momento exacto. Por cá, após o interregno tragicómico do desgoverno de Santana Lopes, lá veio Sócrates, menos informado e mais confuso, agarrar, a destempo, com os brilhantes resultados que se conhecem, o facho da terceira via. Presumo que, por mau entendimento e grande pendor tecnológico, numa analogia com os jogos de vídeo, pensou tratar-se da terceira vida. Daí a possível confusão que o leva a vangloriar-se despudoradamente da tremenda coragem necessária para coligir o triste esbulhamento que propôs à Assembleia. Dou comigo encanitado e retorcido a apelidar o governante de epítetos que nem a mãezinha, nem o padrinho, alguma vez pensaram chamar-lhe. É que acho enorme desplante e muito mau gosto vir alguém gabar-se por bater nos mais fracos. Penso mesmo que tal feito é apanágio de personalidade com baixa estrutura moral por quem só podemos sentir a máxima desconsideração. Faz-me lembrar aquele tipo que, numa roda de amigos, modestamente se gabava por ter dado uma valente surra num matulão muito maior e mais forte que ele. Ainda gozava da sua pequena glória quando um dos convivas perguntou: Mas esse tipo não é cego?
Esta pergunta inconveniente deitou por terra o mito da coragem do contador.
O segundo corajoso, de seu nome Passos Coelho caracteriza-se pelo heroísmo da responsabilidade. Tal significa para ele viabilizar o orçamento mas, para que não haja dúvidas, fazê-lo em claro repúdio pelo conteúdo daquilo que se obriga a aprovar. Sensibilizado por tão denodado sacrifício o povão vai em massa transferir o seu voto do malandro do esportulador para este novo actor de discurso tão amigo. Desenganem-se porém crédulos votantes de todos os candidatos errados. Descodifiquem-lhe o discurso e verão, por detrás da ambiguidade das palavras, que, na essência, ele defende o mesmo apertar de cinto que o governo. Apenas queria que tivesse começado antes e fosse mais fundo. Porque quando Passos Coelho se refere a cortar na despesa, não estará, porventura, a pensar na mesma despesa que nós. Para ele os cortes serão nas comparticipações patronais para a Segurança Social, debilitando-a por esta via, logrando assim a sua rápida decadência e substituição por seguradoras, apenas interessadas em utilizar o dinheiro dos pagantes para especulações financeiras, atendendo apenas aos seus lucros pessoais; quando fala em cortar despesas está a pensar em diminuir as verbas destinadas à educação, canalizando para escolas particulares - onde só terá lugar quem for pagante activo - todo o dinheiro que puder desviar do ensino público, condenando-o ao insucesso e à insignificância; visa ainda reduzir os postos de trabalho e vencimentos na função pública, cortar nas reformas, abrindo o caminho para que o desemprego resultante force as gentes do trabalho a vender a sua força por menor preço, aumentando o lucro do capital financeiro e reduzindo ao máximo, por anemia do Estado, a redistribuição de bens e valores pecuniários.
Este é o intuito salvador de Passos Coelho!
Entretanto, alegrai-vos corações que o orçamento vai ser votado e passará para execução, esperando estes nossos corajosos que os mercados, sensibilizados por tão baixo seguidismo, se condoam destas boas almas e deixem de especular com o valor dos empréstimos. Tanta ingenuidade põe-me parvo o espírito. A verdade foi reposta logo no dia da discussão do orçamento na generalidade. Aumentaram novamente os juros. E aumentaram ainda no dia a seguir atingindo de novo quase o nível máximo em que se tinham situado. Aumentarão ainda mais até atingirem os 7% indicados pelo ministro das finanças como limite para recurso ao FMI.
Ontem, numa entrevista dada pelo Primeiro-ministro à TVI, perguntado sobre a possibilidade de apelo aos bons serviços dessa instituição, com veemência e coragem, desautorizando mais uma vez o seu ministro, garantiu que nunca o FMI entraria em Portugal.
Conhecendo o valor das suas palavras já mandei limpar o fato com que irei ao aeroporto esperar a delegação que, por esta altura, já estará, certamente, a preparar as malas.
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2 comentários
De UTIBTeatro a 05.11.2010 às 20:16
Pronto!Os feridos que ainda mexem levam nas macas os moribundos!Claro que só enquanto houver macas,depois dos 7% logo se vê....
De Luciano Barata a 05.11.2010 às 20:19
Pronto!Os feridos que ainda mexem levam nas macas os moribundos!Claro que só enquanto houver macas,depois dos 7% logo se vê....