Concerto para Sanca João
Este romance está esgotado desde 2016. A segunda edição deverá vir a lume em 2024. Entretanto vejam o vídeo de divulgação.
Autoria e outros dados (tags, etc)
"A caneta Infeliz" - Crítica de Sousa Pereira - Jornal Rostos
Autoria e outros dados (tags, etc)
Esta enorme inquietação
“— Têm muita pressa, disse o principezinho. Que procuram?
— Nem o próprio maquinista sabe, disse o agulheiro.
E, em direção contrária, rugiu um segundo rápido iluminado.”
Saint-Exupéry, o Principezinho
Segundo Lévi-Strauss viajar é deslocarmo-nos não só no espaço, como também no tempo e na classe social. Já para Fernando Pessoa viajar seria perder países. Eis duas declarações que nos obrigam a pensar nesta enorme inquietação que nos constrange a mudar constantemente de lugar, a pensar estar-se melhor no local onde se não está, a procurar o sítio ideal onde o julgamos possível sabendo, de antemão, nunca ser aquele a que chegamos, mas outro a existir em qualquer lado onde esperamos um dia aportar.
Estarão os meus amigos a perguntar, o que será que o tipo pretende com esta palinódia? Passou-se de vez e sem remédio, e, muito provavelmente estarão carregadinhos de razão. Pois não é óbvio que viajar, deslocar-se de um lado para o outro é a coisa mais normal da vida? Toda a gente, todos os dias, se move para mais perto ou mais longe, consoante as suas necessidades ou vontades. O tipo está mesmo ché-ché!
E se não estiver? Se a viagem for a representação da grande busca, a inquietação primordial, ou, pelo menos a forma mais imediata (e talvez inconsequente) de procurar o outro lado da vida, aquilo que, saindo do quotidiano, é o que vale a pena viver, o que justifica a nossa curta peregrinação pela existência, e que, finalmente lhe dará sentido?
Neste momento, alguém mais pragmático atirará, mas qual sentido qual carapuça. Estamos aqui, viveremos quanto nos for permitido e da melhor maneira que pudermos ou nos consentirem e, se tal for possível, faremos umas viagenzinhas para conhecer quanto conseguirmos do mundo e quiçá, num tempo já não muito distante, até poderemos dar um saltinho a um qualquer planeta do nosso sistema. Ponto final e tudo o mais é conversa.
Pois, é! Aqui mesmo começa a inquietação. Viajar porquê e para quê? Sair do certo para o incerto, do conforto para o desconhecido? Porquê essa inquietude de símio curioso? No entanto, viajar é uma atividade que, desde que nos conhecemos, sempre atraiu a humanidade e nos levou a lançar madeiros frágeis ao mar proceloso, foguetões em direção ao infinito próximo e a mantermo-nos sempre em movimento, pêndulos eternos entre o ficar e partir, por vontade própria ou compulsão social. Especificando, viajamos por necessidade de exploração ou descoberta, com o objetivo de estabelecer contacto com pessoas de diferentes origens, de compartilhar conhecimentos e experiências e, nestes contactos, além de conhecermos o Outro, descobrirmos mais sobre quem somos e o que somos. Cada jornada pode ser, ao mesmo tempo, uma aventura quer exterior, quer interior, com a capacidade de alterar o que pensamos, tornando o que já fomos no que agora somos.
Tudo bem! Aceitemos como boas tais razões. Porém, somos assim porquê? Foi desígnio divino? Insatisfação pessoal? Necessidade de sobrevivência? Melhoria de vida? Ou tudo isto ou nada disto?
Trazidos ao lugar onde vos queria, lá vai o salto quântico para a realidade.
O “mare nostrum”, o Mediterrâneo tem milhares de cadáveres submersos de viajantes compelidos a fugir de guerras, fomes e outras violências. Os jovens da nossa terra, findos os estudos, aventuram-se, aparentemente com menos perigos, para países onde nunca pretenderam viver porque o nosso (vá se lá saber porquê), não lhes dá oportunidade de crescerem naquilo para que os formou. Num mundo com tecnologia capaz de suprir a maior parte das necessidades de todos os seres humanos cresce, cada vez mais, a desigualdade, numa época em que a ciência provou sermos todos não só primatas como primos, desencadeiam-se guerras sem mais sentido que ambições desmedidas e tresloucadas de uns quantos doidos chegados ao poder.
Deste modo viajamos, não só por prazer e trabalho, mas também por fuga e horror. Houve já cinco grandes extinções na terra e sempre a espécie dominante foi eliminada e substituída, quase de imediato, por outra menos dispendiosa para os recursos existentes, sem que no Universo tenha sido sentido grito, dor ou sobressalto. Será que procuramos, insanamente, pôr esta fraca teoria à prova e tornarmo-nos candidatos a atores da próxima extinção em massa?
Temo que para aí nos encaminhemos, alegre e despudoradamente, na inconsciência de à nossa importância de seres únicos se sobrepor a facilidade com que, por nossos atos, possamos vir a ser descartados como vírus daninhos que é necessário erradicar. Deste modo, voltando a Pessoa, viajar já não seria perder países, mas perdermo-nos a todos, por decisão de uns poucos.
Não estaremos no tempo de nós, Muitos, obrigarmos os Poucos, mandantes, a tomar juízo?
A maneira de o fazer fica ao nosso critério, evidentemente.
Publicado in Rostos On-line