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elogio dos estúpidos

Terça-feira, 09.02.21

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I

 

vejo-os passar no seu ar alheado

parecem-me felizes

 

meus olhos longos e doces de trabalhar mágoas

recordam paisagens onde habitava a tua companhia

 

era nesse tempo suficiente e completo

tomava por verdade o que os olhos vêem

e a razão do momento pelo momento da razão

 

II

 

como é pesada a vida quando tudo é desconhecido

e nada do que temos é suficiente

e as saudades nos assaltam até às lágrimas

ficando agarrados à possível dignidade

noção vaga inoportuna irreal indemonstrável mas

de tal forma necessária que nos desgarra em contínuas escolhas

 

atacados da mansa loucura da solidão

procuramos o rosto amigo o peito amante

que venha reaquecer o nosso sol

 

ninguém entende quanto estamos sós

ninguém entende como esta injustiça universal

cai sobre o fogo sagrado que ardendo em nós

nos faz maiores mais vulneráveis solitários e noturnos

 

 

III

 

há nesta obsessão da noite neste sentimento de falta

um resto de desejo da tua presença que não quero

 

tudo está de rastos

 

terramoto interior que nada poupou

deixou-me sobrevivente de mim

violento e teimoso de pé sobre os

escombros a reconstruir

 

por isso escrevo para ti estas palavras que não lerás

compor-te-ei ainda versos e não serão teus

habitar-te-ei das minhas palavras fazendo-te bela e

amante como nunca conseguiste e forte da força que não possuis

 

no entanto tudo isto é insubstancial

a tua imagem descrita nunca

poderá ser molhada pela chuva de outono

ou beijada nas horas em que o fogo anima o coração

 

dentro de mim é que serás real e estrangeira

dentro de mim continuarei a procurar-te e a banir-te

por plainos longos e monótonos onde apenas

um estático ribeiro chora

 

 

 

 

IV

 

o que dizer mais de mim

coração magoado que espera

 

ó céus que coisa grande é a dor que conseguimos

que pena tenho de nós

não só de mim que sou náufrago

mas também de quem afundou o meu navio

 

é que tu canhoneira dos meus hábitos

és algoz e vítima deste jogo cósmico que ninguém criou

mas onde todos somos à uma caça e caçador

e nada nos é poupado e a nada somos estranhos

 

V

 

é isso sou um erro crasso

apareci na vida pela porta errada

compareci no mundo quando não era a minha vez

 

p'ró raio que as parta as filosofias requintadas

quero ser estúpido e viver o dia-a-dia cumprindo

a leve obrigação de estar vivo somente porque como

ou ejaculo

 

quem me dera que eu fosse estúpido

e conhecesse a vida através dos programas de televisão

e pudesse ser feliz por ser o melhor dançarino da "boite"

estar bem visto no emprego

cumprir ordens sem as discutir

ter uma mulher certa matronal estúpida

distantemente carinhosa e de horizontes limitados

à ancestralidade da família

 

quem me dera puder ser feliz assim

 

ser o perfeito pai de família dominador

circunspecto que ao domingo sai apascentando as filhas

que ocupa os sábados a dar lustro ao carro

e que tem encontros clandestinos com uma colega

e pensam por isso ter descoberto os limites da aventura

a fronteira onde os homens assumem a divindade

e acabam molhados e langorosos numa ressaca de remorsos

citadina e poluída dizendo foi tão bom e mentindo

por dentro como se mente por fora ímpios enganadores

da morte com máscaras de cartão

 

quem me dera ser tudo isto que não sou

 

VI

 

em vez disso procuro conhecer

as razões de sentir tudo íntima e analiticamente

para com este conhecimento fazer

coisa nenhuma

 

por isso a mim tudo me dói mais tudo tem a crueza de ser aquilo que é

e não haver razões nem desculpas para ser outra coisa

 

sim eu que não enjeito culpas

nem atiro às costas do destino

as causas dos meus efeitos

sei que seria mais feliz sendo estúpido

 

por isso é tão urgente fazer o elogio dos cretinos

daqueles a quem todas as coisas passam mais ao lado

ou reagem instintivamente com violência ou crueldade

e ficam limpos e nada lhes acerta com jeito de ficar

porque se estão nas tintas para todas as culturas

vivendo tão naturalmente como uma glândula

segrega os seus humores

 

VII

 

após este elogio aos estúpidos

descarreguei a minha bílis contra

esta ocasião de vida

 

sinto-me mais aliviado

um pouco mais reconciliado

quase agradecido à pequenez da memória

e à doçura das ondas contornando a praia

 

mas faço um esforço de vontade

quebro o adormecimento que me embala

e a realidade esmurra-me nas ventas

 

porque na verdade estou fundamentalmente só

porque na verdade me sinto defraudado

e a vida que eu vivo não é melhor que a dos estúpidos

e aquilo que eu sinto não justifica coisa nenhuma

e o esquecimento que procuro é igual ao de toda a gente

 

por isso num pôr-de-sol repleto de cansaços

acabo o poema deixo cair os braços

 

 

in "Urbi - poemas datados"

Edição - KDP-AMAZON

 

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 20:37