MEMÓRIAS
Nota – Decorria o ano de 1969. Regressara recentemente da guerra da Guiné. Curtia lutos de amor e estranhava o quanto tanto mudara em dois anos. Na casa da Margarida Morgado – a nossa Guida – juntávamo-nos todas as noites para ouvir música proibida, falar em revolução, dizer e fazer poesia.
No último dia em Évora, a vinda para Lisboa parecia tão sofrida como a ida para a colónia, deu-me o estro e saiu este poema:
com desacordo para a elsa
no qual tentava expressar as contradições que permeavam o grupo, assim como a tristeza de ter de o deixar.
Hoje, embora seja situação recente, já nem a Margarida, a quem foi dedicado este poema, está em Évora. Mantenho por lá, ainda, família e amigos, mas cada vez menos. É a vida!
Este poema faz parte do livro “silêncio mordido” onde foram publicados todos os poemas a que a censura proibiu a publicação.
Por isso com saudades, apesar de tudo, dessa gente e desse tempo rededicando-o à Margarida e aos amigos de então aqui vai a minha conversa com a Elsa
com desacordo para a elsa
aos amigos da casa da margarida
a burguesinha de burgos
tinha cabelos loiros tinha
olhos e voz cantantes
também as pastas de dentes
anúncios televisão
que tinhas burguesinha
sorrisos de esperança chopin calmo
a noite e os amigos
que se tinham e não tinham
se soul em soul a música se criava
em manifestas barbas por cortar
os bailarinos de cabeça para trás
com nenúfares nos ombros cegos
e mais música música com mais lendas
e beijos e lágrimas
pobre pobre margarida
a intermediar polos
revoluções as árvores sangrando vítimas
as uvas fortes das mesas antigas
que mais tinhas burguesinha
a voz que se gritava as meias caras perdidas
sapatos convicções
boas noites ao partir
sonha puro burguesinha
que este mundo suja todos
quem é que lava mais branco
todo o céu do meu país é azul ou azulado
todo o mar que se descobre é um mar já batizado
quem disse que em burgos não havia burguesinhas
os saxofones as tubas as massas alimentícias
são a cidade
e le plus grand bonheur du monde
não é o mundo que temos
ao deixá-lo
tu és a burguesinha e eu não acredito
que o queiras não ser
são tuas a música as noites a repartição
simples dos momentos
tens quase o que eu quero dar aos outros
falta-te um vietnam nas sobrancelhas
nagasaki em cada poro do rosto
creme creme creme puff
penso que gravitas no arroz fácil
acima das urtigas negras
covas de braços de prostitutas
e carnavais arrastados
deixa-me rir burguesinha que da tua rua eras
que um dia
somos só quartos sem ar
dó maior
reproduções
e horários de comboios no terreiro do paço
quem foi que disse que em burgos
não havia burguesinhas
Carlos Alberto Correia