O que vamos ser depois da epidemia?
A cidade está mais deserta. Cafés e restaurantes, apesar do distanciamento preventivo e das desinfeções contínuas, continuam com pouca afluência. Só nos lugares obrigatórios as filas crescem nas ruas, ao correr da parede a ladear a porta, levando os utentes ao desespero de aguardar a vez, que nunca mais chega, sob os ardores do sol. São alguns efeitos visíveis da pandemia.
Há cerca de um ano, conversando com amigos sob as perspetivas possíveis para a nossa época, considerando as parcas expectativas de alguma solução menos gravosa, previa encaminhar-se o mundo para caminho só conducente ao desastre. Perorava sobre os dois modos principais de reequilíbrio de sociedades desestruturadas por desigualdades gritantes: a peste e a guerra. Do alto do meu orgulho civilizacional apostava ser o conflito sangrento (de alta ou baixa intensidade) o regulador dos desníveis uma vez que a doença pandémica, considerados os vastos recursos médicos na posse do mundo, estaria afastada das possibilidades. Apesar dos graves problemas ambientais as nossas cidades em nada se pareciam com os insalubres burgos da idade média, ou mesmo dos séculos pós-industriais; a evolução da medicina teria, enfim, posto travão à vulnerabilidade, existente em qualquer forma de vida, da qual, por superiores, nos tínhamos afastado em definitivo.
Enganei-me! O Covid veio demonstra-lo sem margem para dúvidas. De repente vimo-nos indefesos, confinados, evitando o contacto físico com familiares e amigos, conversando, através de plataformas informáticas com pais e avós internados em lares, incapazes de perceber as ausências físicas, olhando com desconfiança e desconforto as imagens remotas através de “smartphones” e “tabletes”, privados do olhar presente, do toque, da respiração.
Factos que pareciam peças inamovíveis de granito, na ótica do sistema vigente, foram caindo, mostrando as fragilidades de cada nação, descobrindo a destruição larvar, subterrânea, desenfreada, disfarçada de crescimento enriquecedor, ostentando os vitoriosos (poucos), ocultando, na medida do possível os esmagados pelas muitas impossibilidades e decisões que permitem que os poucos sejam os que, sobre os muitos, os que mais ordenam. O que esta pandemia, longe de estar vencida veio demonstrar – embora muitos ainda o não queiram ou possam ver – foi a falência do sistema dominante incapaz de suster a voracidade viral.
Sustento esta última afirmação na ultrapassagem de quanto se disse sobre a “democraticidade do vírus”. Embora aceitando tal como mera metáfora (os vírus são uma estranha forma de vida) poderemos afirmar, com as certezas próprias das mais fundamentadas ciências, não serem portadores de conceitos de democraticidade ou tirania. Vivem simplesmente cumprido a lei básica da vida “crescei e multiplicai-vos”.
No entanto, se tal ainda fosse necessário foi um revelador cruel das desigualdades. O confinamento de quem mora numa boa casa, mesmo que não seja a vivenda com piscina, rodeada de sebes e flores, em nada foi semelhante ao da família de fracos recursos com três ou mais pessoas a viverem amontoados em pequenos apartamentos, ou, situação agravante, nos bairros de lata a circundarem a cidade. Estas circunstâncias, mascaradas enquanto durou o confinamento, rebentaram logo que o mesmo foi dado por terminado. As condições económicas de cada agregado revelaram a consonância com a morbilidade geral. A mancha dos novos surtos situa-se nos bairros limítrofes (inacabados ou mesmo clandestinos) plantados ao correr das linhas de comboios que, todos os dias, pendularmente os transportam para os empregos que restaram e a que, nem pela força de qualquer vírus, poderão faltar para que a família não venha a morrer da doença, mas sim da cura.
É claro que acontecimento desta importância, com o poder modificante inerente, não poderia deixar de ser analisado a todos os níveis: sanitário, económico, social, filosófico, etc.… Vou ressaltar aqui as questões mais filosóficas porquanto as económicas têm tido sobre elas os focos da comunicação social; para as sociológicas ainda o material está a ser recolhido nas muitas formas de resposta e superação do evento; as sanitárias galopam sofregamente sobre as questões de imunização. Porém, as filosóficas já podem e estão em campo, tentando a resposta à pergunta, o que e como vamos ser depois da epidemia?
Dois livros, saídos recentemente, “Este vírus que nos enlouquece” de Bénard-Henri Levy (Edições Guerra e Paz) e “Vírus soberano – a asfixia capitalista” de Donatella Di Cesare (Edições 70), procuram enquadrar o acontecimento. Henri-Levy, aparentando um distanciamento da loucura de Trump e Bolsonaro, na minha opinião, cai na mesma armadilha porque, ao pretender um “pensamento libertário”, acaba a negar, em nome dos direitos individuais soberanos, o dever de defesa coletivo, considerando o facto dos poderes aproveitarem os períodos de exceção para coartarem os direitos dos cidadãos de forma definitiva. Já Di Cessar, apesar da linha predominantemente filosófica, utiliza bastantes ferramentas sociológicas fazendo um enquadramento das várias situações com recurso a análises históricas e sobretudo à utilização do medo como forma, cada vez mais presente, da destruição interna das nossas democracias.
Tendo em conta que a Filosofia pretende sobretudo pensar o mundo como ele deveria ser – desculpem-me os filósofos tal simplificação – considero que ambos, Levy na perspetiva individualista, Di César mais do coletivo, produziram obras importantes para uma primeira abordagem aos tempos que ai vêm, que serão certamente diferentes e de continuidades, mas que, por enquanto, ninguém pode, com alguma certeza dizer o que e como serão.
Tempos “interessantes” nos aguardam.
Publicado in “Rostos On line”