Momentos para inventar o amor
F - Grimelinda
Eis-me aqui, Valéria de meu nome, frente a vinte crianças irrequietas, lutando para lhes prender a atenção, transmitindo saberes que poucos deles pretendem ou percebem com alguma utilidade para o futuro. Preferem brincar, curtir o sol, rebolar-se na relva, ouvir os pássaros já que de ninhos pouco sabem. Nascidos em meio urbano trazem comportamentos díspares, conceitos e preconceitos da família, do bairro, da rua onde habitam. Terei eu de, rasoira que não me quero, aplanar todas estas excrescências e levá-los ao denominador comum que nunca serão. Cobertos com a fina demão da pretensa igualdade concedida pela escola partirão, todos os fins de tarde, para as famílias. Aí o conhecimento será traduzido para a realidade própria. Tenho bons e maus alunos mas sei que tudo isto é uma enorme mentira. Basta pegar na ficha individual, verificar as moradas, as profissões, habilitações dos pais e, com surpresas mínimas posso, banalíssima pitonisa, adivinhar quais deles entrarão nas universidades, quantos ficarão pelo caminho, ocupados em profissões menores. Se esta análise falhasse bastaria fazer uma rápida estatística sobre leituras e gostos musicais ou desportivos. Ficaria em relevo o desenho das proveniências sociais de cada um, bem como se tornaria brincadeira traçar-lhes o gráfico das possibilidades de percurso. Não acredito que isto, todos os dias a saltar-me aos olhos sem grande esforço, não seja percetível para os meus colegas, para os inspetores, para o ministério. Sinto-me assim, ao falar na igualdade de oportunidades proporcionada pelo ensino, cúmplice desta grande mentira sabendo, no entanto, que terei de lutar por ela porque, apesar da relativa ineficácia, a inexistência desta escola seria ainda pior. Sei que pouco posso modificar neste destino feito pelos homens, mas sei igualmente ser-me possível estimular uma parte, mesmo diminuta, lutar contra a inevitabilidade destes decretos nunca escritos, mas omnipresentes em cada ato docente, em cada programa escolar. Somos, muitos não o querem descobrir, reprodutores credenciados de desigualdades, convencidos de possuirmos o poder de alterar substancialmente os destinos de cada um. Penso, a ideia ecoa-me no cérebro como um eco ou um “dejà vu”, ser exercício inútil procurar a profundidade das coisas. Sinto-me Cassandra ao tentar comunicar estas reflexões à maioria dos meus colegas. Estou só ou pouco acompanhada, a pregar para quem não me quer ouvir. O manto negro da deceção cobre parte dos meus dias. Isto não faz grande bem à minha neurose.
Darei a palavra de honra que vou evitar encontrar-me com Valéria. Ver-nos-emos por vezes, em círculos de amigos e situações impossibilitadoras de qualquer conversa mais profunda, quer pela quantidade de gente, quer pelo alarido, as conversas trocadas e truncadas, os risos, os apartes, a confusão. Saberei, porém, ser o encontro inevitável. Eu, contrariando-me, evito-o, ela, julgo, procura-o. A ambiguidade da posição de Elísio estará a coibir-me qualquer avanço. Pergunto-me porque não me decido. Na realidade eles já não viverão juntos. Ele terá saído para outro local, certamente encontrará novas amizades, amores, espaçará gradualmente a presença entre nós e as memórias. Fará a sua vida. Por isso não compreenderei muito bem os meus escrúpulos. Se a vida fosse o jogo de xadrez que parece ser, seria agora a altura para executar o meu movimento. Saberei que o relógio está a contar, mas não conseguirei premir o botão, avançar qualquer das minhas peças. Ficarei parado pelos escrúpulos. Uma estranha lassidão cobrir-me-á a vontade. No fundo, para não ter a má consciência de precipitar uma solução definitiva espero que seja ela a, ultrapassando as regras, desligar o relógio, avançar para o próximo movimento. Estou dividido entre a lealdade aos meus princípios e o interesse por Valéria, pensado invisível apenas por mim. Todos os outros, Elísio incluído, consideram inevitável a sua consecução. Só a tentativa de retardar o que não poderá deixar de acontecer, terá levado Elísio a contar-me o sonho. Estarei perplexo, dividido, sem saber o que fazer.
- Chegaste a um impasse narrativo Kismet?
- Nem por sombras. Sei muito bem o que vai acontecer.
- As indecisões de Elísio e Cursino?
- São parte da teia. Elísio quer retardar o inevitável. Intui que quanto mais tarde se der o encontro de Valéria e Cursino, menos profundo será o golpe a sofrer. Percebeu a inevitabilidade. Esbraceja para que o mesmo seja o mais tarde possível.
- A demora será paliativo?
- Ele assim pensa…
- Mas não o será?
- Nem lá perto. Por mais que tente habituar-se à sensação de perda, nada poderá evitar-lhe o cumprimento do luto. A identidade atual é a que criou com Valéria. Não lhe será possível começar uma vida realmente nova sem que essa identidade seja refeita. Precisará da dor, do esforço por ultrapassá-la, para preencher a falha. Enquanto o não fizer, tudo quanto lhe aconteça será conspurcado pela ausência, por esse pântano onde tudo se afunda, desaparece.
- Poderias evitar-lhe, ou, pelo menos, amenizar a passagem. É demasiado cruel tal condenação. Que fez Elísio para merecer o castigo? É certo! Carrega a culpa da agressão a Valéria. Não é aceitável. No entanto, foi a tua vontade a levá-lo a isso. Bastava rasurar essa parte. A história poderia prosseguir para outro desfecho.
- Sem dúvida, Oblata, tal seria viável. Apenas essas histórias já não seriam a minha história. Seriam outras e de outros. Se tu, por exemplo, fosses a autora principal desta peça as personagens tomariam outros rumos, seria muito diferente o desenlace e com tanta validade como o meu. Só que estarias a construir outro universo, acontecimentos, relações e escatologias. Tudo é pensável, Oblata, logo possível. Nem sequer sei se, neste momento, em qualquer outro local, não estará a ser construída uma história paralela. No entanto, mesmo começadas iguais, as diferentes escolhas feitas nas bifurcações dos caminhos, nas opções tomadas, breve as tornariam dissemelhantes…
- Sabes se não será assim? Se neste momento não estarão a prosseguir narrativas diferentes pelos caminhos que desdenhaste?
- Muito provavelmente estarão. Mas que interessa isso? Não poderei ter a certeza e, de momento, só a que escrevo me importa.
- Tanto egoísmo, Kismet. Fazes-me lembrar aqueles que defendem que na conjugação de muitos egoísmos individuais poder-se-á atingir o altruísmo…
- Longe de mim tal presunção. Por muito que somemos parcelas de qualquer coisa elas somente aumentarão em substância, nunca produzirão o seu contrário.
- Se não te importas podes esclarecer-me como irá ser superado este momento?
- Sem dúvida, ora escuta:
Como por acaso, num dos encontros de grupo, Valéria pedir-me-á para ir à sua escola contar uma história infantil. Ficarei atrapalhado. Nunca escrevi nada semelhante. Será um universo muito distinto daquele que costumo retratar. Não saberei sequer como começar, o tema a abordar, a forma de desenvolvimento. Recusará a minha escusa. Argumentará ser um novo campo, uma experiência enriquecedora tanto para mim como para as crianças. Ver-me-ei, um pouco sem saber como, comprometido e de data marcada. Não terei muito tempo. As primeiras tentativas serão um enjoo. Não conseguirei acertar no tom, na linguagem, no tema. Escrevo, leio, apago. Assim não vou lá. Em desespero recorrerei ao Zé. Contador de histórias poderá valer-me nesta aflição. Vou ter com ele, de noite, a uma livraria cheia de gente que o ouve presa da surpresa das palavras, da entoação, da postura corporal. Provoca risos, angústias, expectativas. Toda a gente estará suspensa na espera do final da história, da volta surpreendente que a narração possa vir a tomar, da conclusão inesperada, da moral a reter. No final retirar-nos-emos para local mais recatado. O facto de ser uma história para crianças, dir-me-á, não te deverá levar a diminuir o rigor da palavra. Nem tentes adotar um tom de facilidade. As crianças não são imbecis e merecem o melhor que se possa fazer. Não facilites nem entres por lucubrações excessivamente abstratas. Trata do real e procura dar-lhe um pouco de sonho, de fantasia. Deixa que a imaginação deles construa o caminho do podia bem ser assim. Dá-lhe apenas as pistas. Nem demasiado literal nem tão afastado da realidade que possa parecer inverosímil o acontecimento. Para as crianças o imaginado é real. Não saias destes parâmetros. Ah! não te esqueças do final feliz. Ficarei confuso e esclarecido. Parecerá, no momento, não ter adiantado nada a nossa conversa. Deitar-me-ei um pouco desiludido. Acordarei no dia seguinte com um nome a retinir-me na consciência: Grimelinda, Grimelinda...
Vou contar-vos uma história de beleza triste. Havia, no céu, uma ave linda de cores e canto. Tinha todos os matizes possíveis e brilhava tanto que, quando o sol a olhava, de ciúmes saía de sua casa e começava o dia. Essa ave chamava-se Grimelinda, esvoaçava pelas estrelas do firmamento, confundindo os homens, muitas vezes, o deslizar da sua cauda com os brilhantes cometas. Estava encarregada de trazer a harmonia ao mundo. Sempre, após fazer levantar o dia, esvoaçava pelo planeta, saltando de ramo em ramo, indo de floresta a floresta, iluminando mesmo as cidades. Se, ainda escuro, o menino sofria no casebre e a mãe desesperada não conseguia alívio para os seus males, sussurrava-lhe baixinho, espera um pouco mais querido pela passagem da alvorada. Não te ausentes agora, ela certamente pôr-te-á muito melhor. A criança esperava o milagre. Quando soava o pipilar da ave, as dores desapareciam, as cores voltavam ao rosto, a rua tornava-se a tentação para novos jogos. Diz a lenda mais. Habitava a orla da floresta uma jovem tomada de amores por um príncipe, passando todos os dias a caminho da caça sem sequer olhar para a pobre remendona a segui-lo com o olhar e desejo. Grimelinda fez o milagre. Transformou-lhe os andrajos em ricas vestes, fez dos animais selvagens homens de corte, metamorfoseou folhas e gravetos em ouro e pedras preciosas e diligenciou que este cortejo travasse a cavalgada do Príncipe e dos seus seguidores. Ele que era audaz na guerra e certeiro no arco viu-a pela primeira vez. Apaixonou-se por ela, casaram e edificaram um castelo nas fímbrias da floresta preferida de Grimelinda. Outro reconto diz que um homem sábio, atacado de velhice, decidiu morrer. As pessoas entraram em choros e consternações. Quem agora daria os conselhos necessários ao bom rumo da cidade? Quem, com a sabedoria reconhecida, reconciliaria as famílias, os amantes desavindos? Com quem se poderia contar quando um inimigo decidisse atacar a cidade e faltasse a sua voz profunda convencendo o adversário ser o fim último da luta não lutar? Sentiam-se órfãos e perdidos. Grimelinda ouviu as imprecações e preces. Voou em rasto de luz, primeiro sobre a cidade absorvendo desgostos, deixando cair venturas, depois sobre o corpo do sábio exposto à infelicidade de todos. Os rastos da cauda espargiam pó de luz sobre o velho inanimado. Os círculos que fazia iam-se estreitando ao momento que diminuía o espaço entre eles. Finalmente, o corpo do homem coberto da poalha das cores de Grimelinda, pousada esta suavemente na testa dele, começou a voltar à vida. Grimelinda transportou aos céus os alívios da multidão reconfortada por mais um bem conseguido. Brilhou ainda mais e, por toda a terra se fez verão.
Alisava as penas, preparada para iniciar mais um dia na terra quando, numa aragem de felicidade, Deus passou por ela. Olhou-a embevecido reconhecendo-se na beleza da obra. Sorriu-lhe por meio de poeira dourada. Como suave mão a sua aragem acariciou-lhe a delicada cabeça. O coração de Grimelinda rejubilou. Tocada pelo amor de Deus esvoaçou em alegria superior, partiu para a terra veloz a espalhar a boa-nova. Fora tocada por Deus. Resplandecia. O sol compartilhou dessa alegria e deu cores mais brilhantes às coisas moventes ou paradas. A natureza agradeceu a benesse fazendo brotar verdes, amarelos, castanhos intensos. Mesmo as próprias pedras refulgiram. Tudo espelhava a felicidade de Grimelinda. Extasiada pousou num ramo perto do castelo do Príncipe. Este saía com os companheiros para a caça. Olhou para trás, despediu-se da menina, agora mulher e princesa, com um sorriso de amor. Também estava feliz. Quase a entrar no bosque olhou para árvore onde pousara Grimelinda. Ainda tocado pela ternura pensou, que lindas penas para oferecer à minha Princesa. Tirou a flecha do carcás, mediu o vento, calculou a distância, tendeu a corda do arco. Jamais falhara um alvo. Rápida como raio de sol a seta partiu de encontro ao coração de Grimelinda. Já no chão, a plumagem ganhando um novo vermelho a empapar-lhe as penas, os olhos agora baços fixados ainda no azulão do céu, conseguiu murmurar: Porquê a mim, Senhor?
Peço-vos que atendais ao facto de, apesar de milagrosa, não ser Grimelinda perita em semântica. Por pura ingenuidade não soube manter até ao fim a sua condição de escrava de deus e naquilo que pareceu, mas não poderá ser, uma espécie de revolta, antes perturbação e incredulidade, enganou-se na palavra que lhe cabia deixando transparecer sentimentos muito diferentes dos que lhe eram permitidos. O que ela teria de dizer e só isso justificaria todas as ações seria: Logo hoje, Senhor, que me beneficiaste com o teu sopro!
Verei Valéria a aproximar-se de olhos fuzilantes. Acutilante perguntará:
que raio de coisa te passou pela cabeça para vires contar essa horrível história. Só descrença e infelicidade. Será a última vez que te convido para qualquer coisa…
Perplexo aceitarei o óbvio. Apesar de todos os esforços falhei. Não escreverei mais histórias infantis. Não saberei jamais semear a esperança. Desespero é o meu nome.