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Momentos para inventar o amor

Sexta-feira, 03.04.20

 

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C  - O bife

 

Encontrarei Valéria, por acaso, no bar. Acompanhada por amigas, sozinha de Elísio. Sentar-me-ei ao balcão, longe dela e do cantor esforçando-se para ser ouvido no meio do ruído dos copos, do vozear a meio tom volvido, por adição, em ensurdecedor contínuo. Pedirei uma cerveja. Sem copo. Por defesa e paranoia beber-se-á pela garrafa para evitar adições mal-intencionadas de drogas ou quaisquer outras causas artificiais de corrosões do espírito. No intervalo das cantigas, revigorar-se-ão as vozes até então mal contidas. E também os movimentos. Essa vaga transportará Valéria. Encalhará um pé na trave do meu banco, oferendo a face ao beijo de proximidade. Dirá gostei do teu conto, mas não entendi porque é que o Bruno teria de se afastar de Líria. É confuso. Percebo que se abandone alguém quando o amor acaba. É natural. Não entendo porque se há de deixar alguém enquanto se ama. À tentativa de explicar-lhe a necessidade de acentuar o efeito dramático responderá com um bocejo de incredulidade. Tal não me parece necessário, dirá, enquanto, apanhada de novo pela corrente, se deixará descair para os lados das casas de banho. Ficará perplexa quando regressar e não me encontrar no bar. Terei descido do balcão decidido a respirar um pouco de ar, livre de fumo. Resolverei não retornar. Saberei que não é tempo de esperar Valéria. Fujo ao encontro. Para mim continuará a ser a mulher de Elísio.

 

Oblata, muito séria, pergunta porque terá o Elísio de afogar-se em vinho?

- Não consegue aceitar a vida sem Valéria.

- Tretas! Romantismo obsoleto. De quantas mulheres poderá ele dispor?

- Para tal teria de estar livre para as aceitar. Não tem, no momento, espaço para tal. A ausência de Valéria atravanca-lhe o horizonte. Não consegue ver mais nada.

- É um completo exagero, Kismet. Podes muito bem aliviar-lhe os traços da depressão.

- Não é depressão. É obsessão. Depressão é aquilo de que Valéria sofre. São praticamente inúteis os seus encontros com o psiquiatra. Ausência de prazer é o veredicto. Algures, no seu cérebro, uma qualquer substância terá deixado de existir ou será produzida em tão pequenas doses que será incapaz de ligar os neurónios adequados. Não acredita que é bela e desejável. Deseja mas não consegue obter satisfação no adquirido. Está sempre à procura de algo que lhe escapa, que parecendo estar aqui, já não está mais e se deslocou para outro lado. Por isso não para. Por tal a inconstância parece ser a sua casa.

- De que cor mais negra pintas a personagem. Por isso te foge o público. Toda a gente está farta de desgraças. Procuram um pouco da felicidade que a vida lhes nega e tu, em lugar de lha proporcionares descarregas-lhe mais neurastenia em cima. És mesmo um caso perdido.

- Ainda não viste nada. Defendo a validade da minha tese. Paixão é diferente de amor. As pessoas confundem tudo. Querem estar eternamente enamoradas. Não percebem que o gasto emocional desse estado é de tal intensidade que, a durar, queimaria a vida de qualquer ser. É preciso um pouco de racionalidade. Convenhamos que a paixão é necessária como primeira aproximação. É preciso que todo o mundo se converta à presença dos amantes. Que nada mais interesse além da proximidade dos dois. Mas, continuasse isto eternamente e onde chegaríamos? Tudo seria delírios e caos. Nem sociedade haveria. Por isso é tão importante matar a paixão.

- E o que fica? O sentimento do dever? O ficamos juntos porque nos comprometemos? Onde é que está o sol que surgia quanto tu chegavas? Não achas troca muito desigual? Retirar a paixão do amor, é isso possível?

 

Elísio telefonar-me-á num momento de sobriedade

Vou deixar esta cidade. Concorri para uma escola na província. Quero afastar-me da vida de Valéria. Sinto que enlouquecerei se o não fizer.

A tua decisão será definitiva?

 Podes crer. Não posso continuar a alimentar este naufrágio. Vou para longe. Para onde o pensamento possa repousar sem o delíquio do que farei se a encontrar, ou o que acontecerá se a vir com outro.

Fugirá da ideia ou será mesmo o ponto final na relação? Não conseguirei dilucidar uma coisa da outra.

Parto definitivamente desta relação. Nem sei mesmo se quererei outra. Para as necessidades chegam as putas. Não dão preocupações. O que queres? Quanto levas? Pagas, desandas e oito dias depois nem te lembras da cara dela.

Tu saberás. Não me parece que a fuga resolva qualquer coisa. No fundo apenas foges de ti e isso, meu amigo, é coisa que nunca conseguirás.

 Vamos ver. De qualquer modo liguei-te para te dizer que não precisarás de ter mais escrúpulos a qualquer relação com Valéria. Eu saio do campo. Entra se quiseres.

 

Sentirei um incómodo terrível. Não saberei como responder a Elísio. Assim, procurando perscrutar os sentimentos de esperança e deceção, sentar-me-ei, ao sol-pôr na esplanada e, de rajada, no modo de esquecer o que me atormenta, escreverei:

 

 

 

Quis-me o autor católico e tímido. Por esses factos, aqui estou, hoje como sempre, sentado na terceira mesa da segunda fila desta esplanada, olhando o pipilar da fonte e os miúdos desnudados, em banhos mais de sol que na contida água.

 

Serei, também, no decorrer do conto, o quanto baste de ingénuo e sonhador. Adequa-se-me a ingenuidade porque, com ela, poderei correr certos riscos e aceitar alguns jogos que de outro modo poderiam passar por estultícia. Calha-me o sonhador em comple­mento desse atributo. Quem se navega pelos fumos da lógica dos sonhos e os antepõe ao que a maioria denomina de real terá toda a conveniência na estruturação de um universo à medida do romântico, que se pretende heroico e não consegue, no seu ser, força bastante.

 

Volto à água. Tomba, por enquanto, entre salpicos de relva. Logo mais, quando a noite quase de surpresa chegar, as luzes do lago acender-se-ão e tornarão mais distantes e imprecisas as árvores do outro lado. Equidistantes do meu ponto de observação ficam as duas esquinas, estas sem nenhumas árvores. Só casas, sem esses breves prenúncios de floresta que resistem no largo, do outro lado. Aquele onde nunca estou.

 

Nas casas das esquinas habitam pessoas e sei de histórias de outras que gostariam de habitar em casas e não o podem fazer. Mas isso são outros contos e, neste o autor não me deixa entrar por esses caminhos. Aliás, como se sabe, é de boa norma delimitar os assuntos e esta é uma narrativa mais ou menos romântica pelo que não deverá perder-se em desinteressantes críticas sociais.

 

Retomemos o rumo certo. A poucos metros, do meu lado direito, fica a Primeira Esquina. Ao centro, comigo dentro, está a esplanada. Alguns metros, para além do meu braço esquerdo, queda-se a Segunda Esquina.

 

Para lá das esquinas nada conheço. Todos quantos as ultrapassam saem do meu ângulo de visão e deixam de ter história. Inexistem. Quem vem da Primeira Esquina aparece sem aviso. A sua presença é impensável até que dobre a esquina e se corporize no súbito de um bico de pé, num passo inacabado obrigando a presumir o anterior, numa sequência posterior de outros que se dirigem ao presente do café, ou até à inexistência, por dobragem da outra esquina. Tudo isto resumindo-se num nada de corpo, numa existência precária, mais movimento ou fulguração que realidade.

 

Eu estou aqui, à espera. No meu estar existe certamente um objetivo, uma necessidade. Aguardo que ela dobre a Primeira Esquina, surja a emoção e se cumpra o determinado.

 

Por isso aqui me encontro, instalado no verão, sentado na terceira mesa da segunda fila da esplanada.

 

 Pelo ardor do corpo e pelo amarfanhado da pele suponho ter voltado da praia. Saboreio a imperial que poderia ter sido mais bem tirada se estivesse colocado na cervejaria. Mas a cervejaria fica lá mais em cima, a meio da avenida, enorme e plana, estendida sem surpresas e sem possibilidade de duas esquinas suficientemente distanciadas para permitir o espaço do cenário e suficientemente próximas para a passagem dela poder ser o campo entre a esperança e aquilo que, não sendo desespero nem frustração, fica no magoado da alma como música melancólica.

 

Não me desagrada, na verdade, ter vindo da praia. Se me fosse possível passaria a maior parte do meu tempo nessa fusão de sal e luz. Que tardes! Quando o saboroso cansaço nos leva a rumar para casa na busca do duche, deixar a salmoura e, antes que o sol se ponha, correr para a esplanada, procurar a mesa conveniente, sentar-me e, bebericando a cerveja, esperar, sem falta, a partir da Primeira Esquina, pedaço a pedaço, o cumprimento da promessa da sua presença.

 

Aparecerá, primeiro, uma das suas pernas, seguida de um braço. Depois a saia leve tendida pelo passo e pela brisa. Num repente solar surgirá de corpo inteiro. As mãos, os cabelos, o peito num balanço cálido de ondas dentro de ondas.

 

Muitas vezes pergunto-me o que será ela para além da esquina. Que fará na vida, fora deste caminho onde cruza o meu olhar? Como nada sei espero o seu avanço até à esplanada e tento adivinhar. Por momentos parece-me saber tudo e desejo que venha sentar-se à minha mesa. Reparo depois que nem sequer sei o seu nome, embora lhe adivinhe os passos e saiba que nunca, por si só, virá sentar-se aqui. Talvez nem sequer pare no café para tomar uma bebida ou fazer um telefonema. Seguir sempre em frente, até à Segunda Esquina, parece ser, imperiosamente, o seu destino.

 

Enquanto os passos a afastam, tento confortar as esperanças caídas. Pergunto-me quantas vezes esperastes por ela e a viste passar, sem um desvio, por pequeno que fosse, entre uma esquina e outra? Esperavas, insensato, que ela viesse ter contigo e sem mais começasse a falar dizendo-te todas as palavras que tu calas? Grande besta sou! Porque raio deveria tal coisa acontecer? Sou católico, mas não espero milagres. Olho para mim e desconforta-me o que vejo. Como esperar então que ela possa ter alguma vez sequer reparado em mim. Ela nem me conhece e não sou tão irresistível que possa tornar-me notado aos olhos de qualquer mulher, apenas por me ter entreolhado. Sou uma boa anedota. Isso é que sou!

 

Além disto, basta olhá-la para sentir a diferença. É perfeita! Nela nada há de destoante. É, verdadeira e meteoricamente, perfeita. O caminho que percorre, só porque o trilha, é mais altar que percurso. Como pensar compartilhar o meu espaço com ela? Tão anódino que sou! Insensatez, meu caro, insensatez. Querias, se calhar, a estrela polar fora da sua rota, mortinha por se instalar ao teu lado!? Não é a mesma coisa? Ai não, não é!! Estás tolinho se não percebes. Então a estrela polar não passa também todos os dias, entre dois limites? Sensivelmente à mesma hora e no mesmo local? E não é bela? E não é presente e inacessível? Os olhos não a seguem, porventura desejando-a? A outra é uma mulher!? Isso que tem? Não são ambas criaturas e igualmente perfeitas?

 

Peço o impossível? Não é esse, porventura, o meu direito? O que está à mão? Qual o merecimento?...

 

Voos… voos inconsequentes é o que fazes. Estás para aí com toda essa filosofia e nem sequer consegues convidá-la para a tua mesa. Aproveita agora. Daqui a pouco ultrapassará o café e atingirá a Segunda Esquina. Força. Um pouco mais e perderás a tua oportunidade. Mais ação. Menos filosofia.

 

Isso queria eu. Ter força para a fazer ficar. Para que o meu desejo fosse o dela. Pois é! Mas eu sou tímido. Nem me serão permitidas certas atuações. Por exemplo, neste momento, apesar da minha vontade e turbação, devo verificar se algum dos circundantes se apercebeu das minhas intenções; se os meus pensamentos se tornaram visíveis, se tomaram voz e gritaram, subitamente, o meu amor, na praça.

 

Olho em volta. Tudo continua como se não tivesse havido tempo. O meu vizinho mais próximo que, quando ela apareceu, começara a levar o copo aos lábios, nem sequer terminou o movimento. Toma agora o primeiro trago. Ela dá outro passo. Na praça o meu olhar é uma súplica. Eu, um desassossego.

 

Antes que outro passo se inicie e o bebedor desça, leve e lento, o copo sobre a mesa, procuro em mim aqueles olhos interiores de tudo sentir e perceber. Os mais completos e clarividentes olhos que ninguém reconhece fora de si e em si ninguém contesta. Iluminado por eles volto-me na direção da Primeira Esquina. Preocupo-me. Se os fechar continuará a haver esquina? Se os fechar continuará a existir o que não sei se existe, do outro lado da esquina? Se os fechar é possível que a esquina desapareça ou não mas quem garante que essa anulação a não arrastará a ela também?

 

De olhos bem abertos sei que nada sabendo dela terei de continuar, até tudo acontecer, aqui sentado, entre duas esquinas, à espera, no, concedo, aprazível local onde situaram a esplanada, desconcertado por me sentir pedaço de coisa nenhuma, títere de um ciclo de existência onde, um dia, acredito, ela terá de vir sentar-se na minha mesa.

 

Se me fosse permitido resolveria este caso rapidamente. Faria com que ela, finalmente, reparasse em mim. Que me olhasse e, nesse olhar, ficasse a saber da minha longa e repetida espera, suspendendo, só por isso a progressão para a Segunda Esquina. Eu avançaria para ela de molde a tolher-lhe o passo. Contar-lhe-ia a minha espera. Um sorriso de compreensão posar-lhe-ia nos lábios. Ver-lhe-ia despontar a emoção por se saber aguardada,  despertar-lhe-ia a reflexão sobre o inexorável de todos os dias passar, à mesma hora, de semelhante modo, no mesmo local, entre duas esquinas, perdendo-se sempre um pouco mais do outro lado, sem a certeza de que no dia seguinte a catástrofe não acontecesse e a Primeira Esquina se toldasse pela sua ausência.

 

Por mim sei. Estarei aqui todos os amanhãs deste verão esperando o seu aparecimento. Dia após dia verei morrer o sol incapaz de a chamar, incapaz de deixar de esperar. Continuarei parado tentando perceber o seu mistério. Além da esquina há possibilidades que me angustiam e a desconfiança de que tudo seja possível e tudo isto tenha um sentido, possua uma coerência. Porque eu sei. Estarei aqui, cada dia mais bronzeado, bebendo a minha cerveja, convicto que, lá mais acima, na cervejaria, seria melhor tirada mas, compreendendo que só neste lugar cumpro o meu papel e me será possível vê-la passar indiferente,  significativa.

 

Como antevia foi o verão passando. O Sol declinava. Ela aparecia na Primeira Esquina. Eu esperava que os seus passos a conduzissem até mim. Ela passava ignorando-me. Eu, desesperado, ansiava o novo dia para que, declinando o Sol, ela de novo aparecesse e eu continuasse a aguardar...

 

 Um dia ela apareceu. Na Esquina. Na Primeira. Trazia qualquer coisa de novo. Seria o ângulo do avanço ou uma subtil transparência de intenções refletidas na biqueira do sapato? Não sei. Apenas me foi percetível, de golpe, a diferença. O dia de hoje não seria como nenhum outro. Era este o dia total, por excelência.. Sobressaltei-me. Algo vai acontecer e não estou preparado. Não sei o que é nem se o desejo. É certo. A minha mansa rebelião tem ensombrado o desempenho do papel que me foi atribuído. É certo. Por vezes sonhei-me outro e quis-me diferente. Mas, por acaso não me esforcei? Não me adaptei e tentei cumprir como quiseram que cumprisse? Não me mantive pacientemente sentado, todo o verão, nesta esplanada, sempre ao fim da tarde? Esperando a mulher que nunca abordarei e me destinaram que aguardasse?

 

Neste momento limite todas as questões são igualmente irrespondíveis. Não há tempo nem vontade. Porque pela derradeira vez ela irá iluminar esta última tarde. Sei que, majestosa, infletirá a costumada marcha no sentido do café. Inicialmente indecisa avançará depois, seguida de olhares e de mim, para o interior. Sei ainda que, agora que posso queimar-me no fogo do seu sol, a tão desejada, a eternamente aguardada, a suma, a inatingível se sentará ao balcão do bar e, ai de mim, com estes ouvidos onde ainda ressoam os roçagares do seu hálito na atmosfera, a irei ouvir, naquela voz adivinhada de pétalas, pedir ao empregado:

 

 

- Dê-me um bife... em SANGUE, se faz favor

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publicado por Carlos Alberto Correia às 20:57