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Momentos para inventar o amor

Terça-feira, 28.04.20

 

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I - Vólia

 

Como Sérvulo me explicou, havia quatro níveis de engraxadores. O primeiro, constituindo uma aristocracia olhava, como todas, com superioridade e desprezo para os restantes. Eram os graxas dos cafés. Para eles não havia mudanças climatéricas nem dias em que não pudessem trabalhar. A clientela era fixa. Chamavam-nos pelos nomes. Conheciam a maioria dos clientes. Recebiam boas gorjetas e chegavam mesmo a desprezar qualquer par de sapatos, de passagem fortuita, a solicitar-lhe os serviços. Muitas vezes nem se davam ao trabalho de os atender. Diziam, venho assim que servir os cinco clientes que estão à frente. Por norma o putativo freguês desistia. Vinham depois os que trabalhavam nas ruas, mas com poiso certo. Pagavam a contribuição à Câmara. Alguém, nas imediações, guardava-lhe o banco do ofício e, mais importante, o estrado e a imponente cadeira de braços, qual trono, onde o cliente se sentia, por momentos, um rei a ver passar, em nível inferior, os apressados súbditos. Alguns deles mantinham-se, na verdade, sujeitos às carrancas do tempo. Outros, porém, não eram afetados. Trabalhavam em átrios de prédios ou protegidos pelas arcadas. O terceiro nível, aquele onde Sérvulo se situava, vivia à mercê da sorte. Que o tempo permitisse o trabalho, que o cliente o procurasse, que o polícia não viesse enxotá-lo ou, muito mais grave, confiscar-lhe o material de trabalho, constituído pelo mínimo de tralha, de molde a poder bazar, com perdas materiais diminuídas, mal a farda surgisse no horizonte. Urgia sobretudo salvar a caixa onde, além de guardar os humilíssimos fatores de produção, também se sentava. O banquinho leve, de equilíbrio instável sobre o pavimento irregular, onde colocava o cliente era muitas vezes abandonado no local da debandada. Vozes diziam ser conveniente deixá-lo no sítio porque, muitas cozinhas e casas de banho dos respeitáveis servidores das leis, enfeitavam-se com a utilidade desses banquinhos. Como era evidente, preocupado em não deixar o assento a atravancar a via pública o polícia, no melhor sentido do resguardo do bem e decidido a não permitir qualquer acidente a peão menos cuidadoso a tropeçar no obstáculo, desistia da perseguição e levava o objeto. Mas disto Sérvulo não tinha a certeza. Eram dizeres do povo. Porém, pelo sim pelo não, quando lhe calhava a sorte de ser distinguido por algum zeloso servidor da lei, nunca se preocupava em levar o banco. É melhor prevenir… dizia. Finalmente o último degrau desta hierarquia, mal apercebida pelo utente ou passante, constituía-se pelos ultra proletários da engraxadoria. Não dispunham dos meios imprescindíveis à execução dos trabalhos. Por isso recorriam ao aluguer. Podiam pagar uma verba fixa por dia ou uma percentagem sobre o trabalho efetuado. Era deles a escolha. Sabiam, no entanto, que fosse qual fosse a opção tomada, ficariam sempre com menos dinheiro que o alugador de meios. Para além do risco de, se a força pública os despojasse da caixa, terem de remir, fosse como fosse, até ao último tostão o prejuízo do dono do material. Era por tal, lamentava-se Sérvulo, que muitos, para não pagarem com o corpo a desgraçada sina, recorriam ao assalto por esticão ou ao arrombamento de carros estacionados em locais de parca visibilidade.

Neste momento estão vocês a interrogar-se, como diabo sabe este tipo estas coisas? Será mentiroso ou omnisciente? Tranquilizem-se, nada disto está certo. Acontece que sendo embora Sérvulo engraxador de posto incerto, entre o Terreiro do Paço e a Praça da Figueira, nem estando muito perto de ser engraxador de excelência, sobressaía, de entre a concorrência, pela delicadeza de modos e propriedade de linguagem. Servia com a tinta, a pomada, as escovas e o pano lustroso com que punha a brilhar os sapatos, os mais diversos e acertados comentários sobre uma multitude de acontecimentos e problemas. Juízo afinado, capacidade crítica, clareza na exposição. Deixava-me perplexo. Não era como a maioria dos seus companheiros de profissão. Por isso, por aqueles momentos de são relaxamento, enquanto o cheiro dos produtos me inundavam as narinas, as escovas faziam piruetas sobre os sapatos e a pano guinchava e estalava fazendo ressaltar brilhos insuspeitos, perdia passos a procurá-lo. Mesmo passando por outros engraxadores mais à mão, não desistia até o encontrar. A nossa relação aprofundou-se numa manhã a ameaçar chuva, quase a desistir da busca e a guardar para outro dia o brilho dos sapatos. Encontrei-o naquela rua pequena, a seguir à Suíça, que liga o Rossio à Praça da Figueira. Saudou-me nervoso. Percebia estar a prepara-se para arrumar o estojo. Pode engraxar? Perguntei-lhe. Após ligeira hesitação, sabendo-me fiel cliente, recolocou todo o aparato em ordem. Faz favor de sentar-se. Percebia-se querer despachar-se. Os gestos, de habitual expressivos, eram sacudidos, pouco controlados. Não tarda vai cair uma abada de água, preveniu-me. Depois, este sítio é perigoso. Já vi rondar o bófia. Está não está, vai cair-me em cima. Mas não podia deixar de servir um cliente certo. Percebi-lhe o dilema. Porém já batia com o gargalo do frasco, a aproveitar as últimas gotas, sobre o sapato direito. Não foi suficiente. Vou ter de abrir outro vidro. Mandando para os lados as portas horizontais da frente do estojo, procurou um ainda não encetado. A demora punha-o mais agitado. Tão nervoso que ao forçar a tampa renitente o frasco lhe escapou das mãos. Esgargalado, largou a tinta sobre a minha maleta de couro cru, pousada ao lado do banco. A mancha castanha gritou forte sobre o desmaiado da pele. Aflito sacou de um pano encardido e esfregou a mancha. A intenção era boa mas, quanto mais friccionava, mais a mácula alastrava. Ai a minha vida, choramingou. Como vou puder pagar-lhe o prejuízo. Dinheiro não tenho. Aceita um ano de graxa sem pagar? Passados os primeiros minutos de irritação, o estado aflitivo do homem levou-me à compreensão. Deixe estar, não tem importância. Foi um acidente, você não teve culpa. É a porca da vida a voltar-se contra mim, tudo me corre mal. Olhe, tenho aqui um vigésimo de lotaria. Gastei nele o dinheiro do dia, mas é cá uma fezada! Faça-me o favor, aceite-o. Oh! Homem, e se a sua expectativa se concretizar? Quero lá o bilhete para alguma coisa. Não me sentirei bem se não o aceitar, respondeu-me. Certo, disse-lhe. Aceito-o numa condição. Se sair alguma coisa dividimos o prémio ao meio. Apertou-me a mão nem se lembrando como estavam sujas. Diabo, exclamou, hoje é mesmo o meu dia de desastre.

 

Não nos saiu nada na lotaria, a convicção era mesmo só fé. Encolheu os ombros. Pobre é só pobre e mais nada. Rico só em sonhos e desejos. Ganhei porém, com estes episódios a sua confiança. Ficámos amigos? Vá lá, nada de exageros. Apenas passámos a conversar mais, a prolongar a sessão de limpeza dos sapatos. Nessas conversas foi-me desvendando a vida. Nada tinha de seu, era pobre entre os mais pobres, mas já tivera. Vida atribulada, senhor, não encontro outra como a minha. Órfão de mãe, falecida em trabalho de parto, o pai não descansara enquanto não o colocara numa instituição. Não podia mantê-lo, não tinha com quem o deixar para ir trabalhar, não havia jeito que lhe chegasse para tratar daquela minúscula e perturbante vida. Alguma razão havia de ter porque lá o recolheram numa instituição para adoção. Pelos visto não deveria ser criança de encantar. Os anos foram passando e ninguém o quis resgatar. Já na idade da razão transferiram-no para a Casa Pia. Nem me lembro da cara do meu pai. Se o vi cinco vezes foram muitas. Nunca me deu um beijo ou me presenteou com qualquer prenda. Eu via e invejava os meninos a quem os pais procuravam, mimavam e, por vezes, levavam nos fins de semana. Nunca me aconteceu. Nasci azarado. Penso-me como criança dócil, amiga de aprender. Tanto assim que após a instrução primária me mandaram para a Escola Comercial. Sim senhor, fiz o quinto ano com boas notas. Não era como o desgraçado do Ferrel, meu companheiro de Casa Pia e escola. Não gostava de aprender. Queria fazer coisas com as mãos. Carpinteiro, serralheiro, qualquer empreendimento em que pudesse mexer em materiais, transformá-los, fazer nascer novos objetos ou serventias. A escolha não nos pertencia. Por mais que pedisse mudança para a Escola Industrial tal não lhe foi permitido. A decisão fora tomada por quem de direito. Era irrevogável. Não tenho dúvidas de que era inteligente. Só estava no local errado. Lembro-me como causava o desespero do mestre de contabilidade. Achava e dizia-o claramente, a contabilização de partidas dobradas como uma enorme palermice. Não estava para aqueles jogos. Quem recebe deve, quem paga tem a haver? Que imbecilidade era esta? A uma invetiva mais agreste do mestre, vaticinando nunca serás nada em contabilidade, serás sempre um zero à esquerda, replicou, entre agastado e divertido, nada haver para saber na contabilidade. Classifica-se o documento, lança-se a débito ou a crédito, se estiver mal estorna-se! Sem palavras para replicar, o mestre riscou-o completamente das suas preocupações. Só deixei a Casa quando fui para a tropa. Um luxo! Pelas habilitações fui mandado para o curso de Sargentos Milicianos. Outro luxo! Mas sentia-me isolado. Todos se revoltavam contra os sargentos e oficiais, o rancho, a instrução. Eu senti-me a descobrir um outro universo. A disciplina não me era estranha. Sempre vivera com ela. A alimentação era melhor que a que tivera durante toda a vida. A liberdade de mandar em mim nunca, como ali, conhecera maior. Além disso, passados aqueles meses, seria promovido e eu, que sempre obedecera, poderia, pela primeira vez, mandar em alguém ou nalguma coisa. Não exagero se disser que me aproximava da felicidade. Ensombrava-me essa ventura duas coisas. Os colegas não simpatizavam comigo. Achavam-me estranho, deslocado. Chamavam-me lateiro. O ar de contentamento, o apetite com que devorava as refeições, comunicavam-lhe que não crescera como eles. Não era da sua igualha. Sofri grande isolamento, não obstante não ser o suficiente para apagar o brilho da vida que descobria. A outra era a ausência de uma namorada. De meu tinha o miserável pré pago ao fim do mês. Não chegava para o tabaco e, no entanto, não deixava de sobre ele serem feitos descontos. Veja que até as fotografias para o cadastro fui obrigado a pagar. Nesse mês apenas me deu para comprar um maço de cigarros. Com enorme esforço de vontade fui-o fumando, meio cigarro por dia, para chegar até ao novo pré. Por isso não os podia acompanhar em fins de semana e farras. Isolava-me ou isolaram-me. Saía sozinho, passeava pelas ruas. Via os camaradas sentados em cafés, bebendo com as namoradas de ocasião, afastando-me por desgosto e receio de possível chacota. A vida mudou com a ida para África. Soube então o que era ter dinheiro. Gastei como um doido. Experimentei tudo o que até aí me tinha sido vedado. Gostei mas, no fundo, um ratinho roía. Não conhecia o que era ter família. Estava obcecado por isso. Claro, nas colónias não o poderia saber. Não era bom partido. Não recebia convites para bailes e convívios. Deveria ostentar qualquer marca, a avisar pais e filhas, este não tem bens para dar uma boa vida ao teu rebento. Contentava-me com as mulheres que poderia pagar.

No regresso tive sorte. Ainda não gastara todo o dinheiro da desmobilização quando fui chamado para uma entrevista. Empresa média de export-import, agradável, apetecia ficar. Apesar do número de inscrições escolheram-me. Secção de Contabilidade. Sabe trabalhar com máquinas mecanográficas? Não sabia. Não faz mal, esse nem será o seu trabalho, o importante é que sabe contabilidade, pode classificar documentos, vigiar os lançamentos feitos pelas escriturárias e preparar os balanços para o revisor de contas. O trabalho com as máquinas aprenderá depois. Recebemos boas informações do seu Batalhão. Sabemos que toda a contabilidade era de sua responsabilidade e sempre cumpriu bem. Venha amanhã. Vou apresentar-lhe as suas colegas.

Não há fome que não dê em fartura. Quatro mulheres, eu, o único homem. Fiquei baralhado. Ouvi-lhes o nome, não consegui fixá-los. Há tempo para isso, pensei. Tens de tomar atenção é ao trabalho. A tua vida depende da boa prestação. Foram correndo os tempos, passámos da inibição inicial para relações de companheirismo ou, como acontecia com Lália, de profundo desagrado e evitação. Sentia-se deslocada naquele escritório. Sonhava com o teatro. A sua vida começava à noite, no ensaio de grupo amador, quando podia representar as existências que achava ser seu direito pertencerem-lhe. Olhava-nos com desdém, como se olha para as coisas rasca com as quais somos, em desprazer e revolta, obrigados a conviver. Mal nos falava e saía, ao fim da tarde, altaneira, direita à rua escusa onde, no automóvel, a esperava o filho do patrão. Vestida de preto carregado pelo luto da mãe, também era esperada, na rua da frente, pelo namorado, obeso, bovino, a palidez da pele de Sónia.Com os cabelos escuros, apanhados atrás, avançavam oficialmente para o casamento que se podia prever oficial, chato, rotineiro. Por sua vez Anerva, mal soada a campainha de fim de jornada, largava tudo como estava, pegava nos livros, corria para o externato onde se preparava para o exame final do complementar. Hei de ir para a faculdade. Não passarei a vida toda em espeluncas como esta. Terei um destino maior. Finalmente Vólia! O meu encanto. Mal fizera dezoito anos. Vestida como para festa, cabelos quase palha, esguios, parecia desadequada no ambiente. Vivia com os avós. Pais falecidos num desastre, ficara-lhe um ar dorido, ausente. Ria pouco, sorria docemente, possuía o mais lindo par de pernas que me fora dado ver. Perdi-me de desejos. Timidamente correspondeu aos meus pedidos. Vólia mostra-me os joelhos. Corava, eximia-se ao pedido. As colegas reforçava-nos. Anda lá, o que é bom é para se ver. Não resistindo à pressão, exercida mesmo pela distante Lália, com ambas as mão de cada lado, elevava a saia até ao logo acima dos joelhos. Extasiado dizia-lhe, és muito bonita. As colegas riam e tudo era galhofa. Vá. Só mais um bocadinho. Não era eu quem o pedia mas a insossa Sónia, saindo, por momentos da apática placidez das suas horas. Nem pensem nisso, recusava-se. Olha a pudica! Até parece que não usas biquíni na praia. É outra coisa, desculpava-se, não sendo capaz de alinhar razões, mas sentindo serem diferentes as cargas eróticas entre as duas situações. Não desisti dos rogos para levantar um pouco mais a saia. Quando estávamos sozinhos era mais pronta a aceitar as minhas solicitações, mais generosa no pedaço de corpo mostrado. Começámos a procurar menos companhia. Ao almoço, comido rapidamente o conteúdo das lancheiras, esgueirávamo-nos para um café ou jardim onde presumíssemos não ser encontrados. Falávamos, sentíamo-nos ecos um do outro. Permitiu que as suas mãos fossem acariciadas pelas minhas. Quando o esconso de sebes e a ausência de gente o permitiam oferecia-me os lábios, franqueava-me, com leves suspiros, o corpo. O que fomos de descoberta um para o outro! Por qualquer estranha razão quanto mais me ligava a Vólia, mais as nossas colegas, apoiantes iniciais dos meus avanços, pareciam ficar irritadas com as nossas escapadelas. Não entendia. Nenhuma delas teria qualquer interesse em mim. Vólia era não só a mais jovem como a mais descomprometida de todas elas. Porquê aquela raivinha surda a germinar naquele pequeno grupo? Até Lália, descendo à terra, foi fazer queixa ao patrão. Era indecente, um namoro pegado no local de trabalho. Talvez porque o patrão não gostasse das escapadelas do filho com a empregada ou temesse ter uma nora que não queria, talvez para mostrar que quem mandava era ele, despediu Lália – não queria intriguistas a estragar o ambiente de camaradagem no escritório – e promoveu-me a chefe da secção de Contabilidade. Olhando-me fixamente confidenciou-me, acredito que todos os homens nascem iguais, que são as condições de vida a criarem o destino que parece caber-lhes. Em cada um de nós há uma força que pode opor-se àquela que o quer obrigar a seguir o destino traçado pelo seu nascimento e enculturação. Leio muito Bourdieu. Talvez você não saiba quem é, mas, neste momento, por meu intermédio, ele está a dar-lhe trunfos para fugir da sua condição. Já me demonstrou sobejamente a sua inteligência e capacidade. Falta-lhe a legitimação. Inscreva-se no Instituo Comercial. Estude, melhor os conhecimentos, a cultura. A firma suportará os gastos.

Vólia nem queria acreditar. O patrão disse-te mesmo isso? Ora que diabo, tinha necessidade de mentir-te? Tu verás quando começarem as aulas. No segundo ano do Instituto casei com Vólia. Ninguém se admirou. Parecia predestinado. Tinha finalmente o que desejava. Uma mulher, mais um pouco e seríamos uma família, um emprego estável com boa remuneração, a previsão de um futuro, senão brilhante, muito aconchegante.

Na família de Vólia gostei sobretudo do avô. De aparência rude e mãos grossas, mesmo parecendo impossível, tocava violino numa orquestra sinfónica. Viera das serranias beirãs, muito novo. Sobrevivera trabalhando nos estaleiros navais. Assim que lhe foi possível dedicou-se à grande paixão: a música. Provas feitas no conservatório passara por um triz. Aquelas mãos eram demasiados grosseiras. Faltar-lhe-ia certamente sensibilidade para premir com subtileza as cordas no local exato. Os movimentos eram pouco suaves para o deslizar do arco… e não fora o examinador, por causas ficadas para todo o sempre desconhecidas, apesar de lhe dizer: - meu filho, entre as notas dadas e as que falhastes, fazia-se outra partitura, mas há qualquer coisa em ti que me leva a apostar. Admito-te!

Treinara-se também nas habilidades do jogo do pau. A culpa foi da leitura do Malhadinhas, contou-me. A mulher, ao seu lado, iluminou os olhos e confiou –me, foi assim que o conheci. Tinha ido ao baile, acompanhada pela minha mãe e avó. Dancei uma vez com o avô. Senti que não me era indiferente. No entanto as coisas só se definiram quando, quase no fim do baile, um grupo de estroinas entrou a desrespeitar toda a gente. Eram mais de meia dúzia. Quando um deles tentou levar-me à força para o meio da sala, o avô saiu de onde estava, agarrou o meliante pelo casaco, perguntou-lhe se não percebia o que queria dizer não. Acobardado o faia nem respondeu. Só tomou coragem quando viu avançar o resto da matilha. O teu avô ficou sozinho. O resto da rapaziada, sentido o perigo, desandou como se não visse nada. Estava aflitinha. Não sabia como poderia o avô desenvencilhar-se daquilo. De repente saiu em correria à frente do grupo. Confesso que fiquei mais descansada, mas um pouco desiludida. Correu em direção à casa dos arrumos. Tirou uma vassoura de piaçaba. Retirou-lhe a escova ficando apenas com o pau. Voltou-se para eles. Em menos tempo que levo a contar-te, paulada nas canelas, golpe na cabeça, meia-volta rápida, pau entre duas pernas galopantes a fazerem-nas estatelar, tinha o grupo de farsantes caído no chão ou a desaparecerem a boa velocidade. Desde aí foi o meu herói e nunca me desiludiu.

Conto isto porque, ainda antes de casar-me com Vólia, o avô, numa madrugada, adoeceu. A família levou-o ao hospital. Diagnosticaram-lhe cólica renal. Consideraram ser melhor passar lá a noite para uma observação mais cuidada. No dia seguinte levassem roupa e fossem-no buscar. Aproveitando a minha disponibilidade e posse de meio de transporte, pediram-me que o trouxesse para casa. Chegado ao hospital, dirigi-me à receção. Espere um pouco. O médico já vem falar consigo. Alguma complicação? O médico já vem.

É familiar do senhor? Quase, esclareci. Caso-me brevemente com a neta que vive com ele. Ah! Está bem. Parecia um pouco incomodado. Passa-se alguma coisa? Sabe, nunca vi homem como aquele. Durante a noite voltou a ter uma recaída. Fomos buscá-lo de maca para fazer novos exames. Recusou-se a ir na maca. Vou a pé, afirmou. Dada a urgência do caso e a firme determinação acompanhei-o. Perto da sala de radiologia apoiou-se a mim, estremeceu e disse-me: - Já lá vou…, morreu-me ali nos braços. Ainda estou impressionado com a força moral daquele homem.

Olhei para a trouxa de roupa que trouxera. Já não fazia falta. Perguntei ao médico se a podia deixar ali. Teria de dar a novidade à família. Se me vissem chegar de roupa devolvida a verdade cairia como raio. Era preciso preparar as pessoas. Tem razão, disse o médico. Senhora enfermeira guarde os pertences do senhor até virem buscar o corpo.

Daquilo que lembro, penso não ser muito distante da verdade, procurei com mil cautelas, sobretudo à avó, dar a notícia o mais suave possível. No entanto, as interpretações variam completamente. A primeira pessoa a quem me dirigi foi, como não podia deixar de ser, a Vólia. Contei-lhe o sucedido. Rebentou em choro. Durante muito tempo, soluçou abraçada a mim, molhando-me a cara com as lágrimas. Combinámos sermos os dois a falar, primeiro com a tia, depois com a avó. Afirmava a tia, a quem a queria ouvir, ele chegou num estado desesperado. A cara banhada de lágrimas, um desespero na voz. Até parecia que fora o pai que lhe morrera. Eram muito amigos. A avó, após recobrar do desmaio surgido a meio da revelação por antecipação do resto, comentava, sem que ninguém alguma vez lho tivesse contado, que, tal como ela, ao ter conhecimento do falecimento do marido através do médico, eu tinha caído redondo no chão. Valera-me estar no hospital e ter sido prontamente socorrido. Estava de tal modo que precisara que Vólia viesse a amparar-me para lhe dar a notícia. Por sua vez Vólia dizia-me foste muito sóbrio e sensível a contar a morte do avô à família. Quero-te mais por isso. Alheio a tudo isto, vestido de fato preto, o morto lá estava, na capela, entre orações, círios e choros, entregue, completamente  sozinho, à sua própria morte.

Fora este contratempo vivíamos completamente entre nuvens de algodão. Claro, como se está mesmo a prever, tanta felicidade não podia durar muito. No terceiro ano do curso, assoberbados por trabalho na empresa, provas, exames para o término da graduação, deixei de ter tempo para dedicar a Vólia. Bem lhe sentia o desagrado. Chamava-a à razão. É tudo por nosso bem. Passamos agora um bocado desagradável em nome daquilo que virá, será melhor e perene. Parecendo não acreditar muito, nem dar grande valor aos esforços dolorosos que me assoberbavam, respondia com um monossílabo e parecia-me terem as palavras resvalado pela parede de vidro que entre nós se erguia. Isto durou até ao dia em que, por falta do professor, aflito com o trabalho atrasado na firma, em vez de voltar a casa me dirigi para o emprego. Levava-me o caminho pela rua esconsa onde o filho do patrão se encontrava com Lália. O carro estava, de novo, lá estacionado. Ao lado do condutor, em estreito abraço e beijo delirante, Vólia esquecia-se de mim, da nossa vida, do projeto de um filho quando, nesse ano, acabasse o curso. Perdi as estribeiras. Urrando, espumando saliva e raiva, com força que me desconhecia, retirei-os do carro. Bati, mais com ódio de que com pés e punhos no gajo. Vólia tentou defendê-lo o que mais me acirrou a raiva. Agredia-a enquanto o fulano, meio desmaiado se rojava no solo. Quando ela gritou, para besta, matas o homem que amo, perdi-me por completo. Já nem me lembro se a estrangulei primeiro que a ele. No alvoroço os vizinhos chamaram a polícia. Algemaram-me. Tudo se passava como se não fosse comigo. No fundo do meu cérebro só um pensamento rodava obscurecendo todos os outros: ainda bem que o patrão não me viu matar-lhe o filho.

Foi assim que perdi o filho que não tive, a mulher que amava, a casa e a liberdade. Quando cumpri a pena, atenuada pelas circunstância e falta de premeditação, nada me restava ou apetecia. Ninguém daria trabalho de responsabilidade e  confiança a um cadastrado. Também não percebia para que raio me serviria ter esperança em qualquer coisa. Vivo, estava já mais que morto. Nada de esperanças. Sobrevive enquanto as coisas durarem. Nada esperes. Aprendi e agora já não quero  nada. Sou até capaz de, na recusa, ter descoberto algum tipo de felicidade.

 

Vólia atirará o manuscrito para longe, na mesa.

Não serás capaz de escrever uma história com um final feliz?

Final feliz? Interrogar-me-ei mais a mim que a ela. Tudo quanto via, sentia ou acontecia, nada mais era que o avanço da entropia. Uma interminável, inútil luta contra a segunda lei da termodinâmica. Sentiria isto dentro de mim como uma verdade irrefutável. No entanto, se o ousava dizer, a densidade do conhecimento diluía-se, restando apenas uma banalidade enfática a fazer torcer o nariz de qualquer arguente. Não tinha dúvidas de que um princípio de destruição grassava em nós continuada e progressivamente. Como dizia começamos a morrer logo que nascemos. Só conseguiria gargalhadas e gracejos para este pessimismo que eu sabia, era a mais consumada verdade. Como poderia supor qualquer final feliz? Tudo tende para a desagregação, dir-lhe-ei.

Condenas então o nosso amor à morte?

Não exatamente como pensarás, direi para mim, mas não poderá ter outro destino. Decidirás não querer perder tempo com pensamentos negativos, abanarás a cabeça, procurarás a minha boca e levar-me-ás para a cama. Satisfeita dirás entre humores e suores, a vida é mais forte que todo o pessimismo. Sou o princípio criador. Ao enunciares isto, por dentro e por fora de ti, sem que de tal te apercebas, as células estarão a morrer, o teu corpo subtilmente a mudar. Lá fora o sol anunciará o ocaso. Perguntarás:

-  onde vamos jantar?

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 11:45

Momentos para inventar o amor

Quinta-feira, 23.04.20

 

 

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H- Yahveh

 

Dévolo era um ser desagradável. Adorava dar más notícias. Procurava com afã todos os factos desprazíveis para ser o primeiro a contá-los. Devorava tabloides e alistara-se nos bombeiros para poder contactar, em primeira mão, com as mais terríveis tragédias. Tornara-se uma autoridade na comunicação da desgraça. Kismet não gostava de o introduzir nos seus dramas. Oblata detestava-o. Chegara mesmo, em algumas representações, ela que não era de amuos, a recusar-se a interpretar tal personagem.

- É abjeto, soprava.

- Nem tudo na vida tem o perfume de rosas.

- Mas este cheira por demais a esgoto.

- Já pensaste como ele se imaginará no seu papel?

- Lá vens tu com a história das personagens ativas…

- Dévolo pode gostar ou não do seu ofício.

- Nunca me pareceu desgostoso…

- Agora és tu quem lhe atribui sentimentos próprios.

- Por vezes caio no teu engodo. Não creio, porém, nisso.

Pensava na altura em que babando-se do que parecia puro gozo, levara para a roda de amigos a notícia do suicídio de dois adolescentes. Eram vizinhos e colegas de escola. Parece que os pais tinham um contencioso antigo. Coisa de marcas de terras. Quando perceberam que ambos se procuravam a todos os momentos, que cada um vivia na vida do outro, proibiram-nos de se encontrarem. Eles não respeitavam o acordo e perante as sucessivas desobediências e respetivos castigos, sem que nenhum desistisse do outro, o pai dele decidiu mudar de bairro, mandar o filho para escola diferente. Apesar de não ser muito longa a distância sentiram-se, cada um, relegados para galáxias distantes. Entraram em desespero. Eu estava de serviço quando fomos chamados. Fui o primeiro a chegar ao pé deles. Deitados debaixo de uma laranjeira florida, estavam já mortos. Beberam inseticida ou veneno para ratos. O cheiro era ainda tão forte que nem a fragrância da laranjeira o conseguia disfarçar. No bolso da camisa do rapaz estava uma nota com a mesma frase, escrita à vez, por cada um, ninguém nos poderá separar agora. Apesar de provavelmente querem morrer ligados não o conseguiram. Devem ter-se retorcido com dores. Estavam encolhidos e demasiado apartados para quem decidira matar-se para ficar juntos.

- Lembras-te Kismet, como todo ele era gozo no esmero do reconto do acontecido?

- Má vontade tua. O prazer não lhe provinha do episódio, mas do facto de o ter presenciado, de ser o dianteiro a chegar ao local e à notícia. Para ele, poder ser o primeiro e a testemunha mais credível era a fonte de gozo. Não o acontecimento em si. É como um repórter que consegue a notícia para a sua cadeia de média antes de todos os outros.

- Insensível, alcoviteiro, corvo que bica nos mortos, é o que ele é.

- Tanta animosidade, Oblata. Um pouco de misericórdia. No fundo queres matar o mensageiro porque te desagrada o recado.

- Mensageiro, mensageiro! Cusco a rebolar-se nas desgraças dos outros é o que ele é.

- Verás que não. És injusta! Que culpa tem o portador de que as notícias sejam horríveis? Ele não as produziu. Só as transmite.

- Pois sim, mas o modo como as difunde não nos diz nada? Nunca o vi triste ou compungido ao transmitir desgraça. Apenas observei prazer e euforia. Esse Dévolo é uma peste. Mas a que propósito o foste buscar? Não precisamos desse porco nesta história.

- O caso dos adolescentes vai servir para Cursino pensar a morte e a vida.

- Vai adoecer ou vai matar alguém?

- Calma, nem tanto ou mar nem tanto à terra. Deixa o Cursino lavrar o seu terreno. Depois verás.

 

Ficarei angustiado com o suicídio dos jovens. Percebia-o e não o queria entender. Naquela idade todos os sentimentos fervem. Os fracassos parecerão ser eternos embora se procure desesperadamente a parte que nos falta e curemos descobri-la, mantê-la por toda a vida. Procura-se o Andrógino inicial. Receberei, nessa altura, a excitação de Dévolo, a correr nas palavras, a tropeçar no discurso, procurando-me. Faltar-lhe-á gritar alvíssaras, alvíssaras! Porá os olhos em mim. Disparará, está no hospital em risco de vida. Quem é que está no hospital? Valéria, despejará. Tomou uma mão cheia de comprimidos. Li a carta que deixou. Contava do desespero da vida. Tudo lhe corria mal. A depressão, os amores e, gota de água a fazer transbordar a taça, fora preterida nas aulas aos invisuais. Ficarei estarrecido perante a possibilidade da perda iminente de Valéria. Raivoso de pânico decidirei não a visitar. Se sobreviver, resolverei, nunca mais lhe irei falar. No medo da decisão procurarei abafá-lo no desvario da escrita.

 

Uma hora após terminar o sétimo dia, Yahweh reuniu o resto das energias que lhe conduziram o ser por todos os universos onde deixara o seu selo e num último esforço criou a Estranheza. A seguir, esgotado, morreu.

Então tudo o que vivia por sopro e palavra tomou corpo, submeteu-se a leis. Quem primeiro deu por isso foram os anjos. Afastados das asas, sofredores do desejo inatingível de voar, desenvolveram o voo interior o que lhes permitiu atingir, ainda em entropia, algumas partes do enorme corpo de Yahweh de onde, a energia em fuga, era apanhada como forma e conhecimento.

Alguns anjos corporizaram-se no planeta Éden, antigo nome que designava a Terra. Aqui choraram com amargura a morte do Grande Pai e se entreolharam, órfãos completos, na descoberta da missão de fazerem permanecer a memória daquele que sobre as águas nos sonhara e perecera na ânsia de se superar na sua criação. Por homenagem passaram os anjos a chamarem-se Criaturas e a Yahweh – o Ser Radiante - passaram a chamar Criador.

Destas nomeações nasceu a primeira lei para reger as Criaturas: - toda a causa produz, pelo menos, um efeito e todos os efeitos pressupõem uma causa.

Outras leis se seguiram, físicas umas, químicas ou biológicas outras, todas plenas de utilidade, todas agindo de modo a tornarem suportável a permanência em Éden.

Cerca de 1545, no Concílio de Trento, cansados da longa orfandade, os Sabedores tentaram, a golpes de ficção boca-a-boca, trazer de novo vida ao dilacerado corpo da divindade, desfeito em estrelas de uma ponta a outra do universo concebível. Desse tão grande esforço apenas resultou um códice, a manutenção de vários protestantismos e a aceitação definitiva de uma má compilação de memórias que alguns se deram ao trabalho de ir juntando nos longos tempos da queda nos corpos.

Lá muito para trás as criaturas iniciais tinham passado a chamar-se Humanidade e punham a si próprios os mais variados e despropositados problemas. Conceberam, por exemplo, a palavra Fé que queria dizer Inquisição, a qual, por sua vez significava morte ou privação de deslocação nos espaços sociais. Tudo se complicou. O Homem descobriu a loucura e a solidão. Quer dizer, começara a inventar-se enquanto homem, isto é, principiara a criar densidade.

Dizem lendas muito velhas ser a densidade o que melhor define o homem. Ora tal não deixa de ser um fenómeno interessante Se permite ao corpo possuir a massa que o faz jogo da força de gravidade – logo permitindo-lhe a vida em cima da terra – é, por outro lado impeditiva do voo. Como bem sabem todos os que adormecem em busca do conhecimento, o qual, como dizia Platão, reside no fundo da memória, era a falta de densidade que permitia voar. Ao pôr-se esta opção as criaturas – como viria a ser apanágio ao longo dos tempos – dividiram-se em dois grupos e mais uma lei. Os grupos foram: os seres humanos (os densos) e os nefelibatas (os leves). A lei rezava não se poder servir bem dois senhores, por isso, todos os pesados cairão para o interior da Terra. Além desta lei um outro conhecimento foi ainda ganho pela espécie. Qualquer opção divide o grupo. Tome-se lá o partido que se tomar ficará sempre a dúvida sobre o que aconteceria – ou mesmo se não seria melhor – ter-se tomado o partido oposto.

De qualquer modo, a densidade conquistada permitindo ao ser humano caminhar pela terra com certo conforto, instalou, sem réstia de dúvida, o princípio da solidão. Porém os Nefelibatas, seres etéreos sem tempo e sem espaço – onde eu estava tu existias – não tiveram mais consciência além da resultante de ser pertença luminosa de um todo. Homens densos, utilizadores canhestros daquela coisa algo incómoda e agradável chamada corpo, passaram a vítimas do tempo e do espaço. Onde o meu corpo se colocava apenas ele podia estar e mais nenhum. Mesmo que a minha necessidade gritasse em sangue pelo teu nome, todo o meu espaço, por mais que o quisesse, continuaria irredutível ao teu. Éramos, sem dúvida, singulares e sozinhos. Conquistáramos, sem o perceber, a bendita maldição da individualidade.

Com leves memórias desses tempos os antepassados, na incomodidade de relembrar parcialmente o esquecido, criaram o Andrógino. O filho de Hermes e Afrodite, de seu compósito nome Hermafrodito, amou, de amor-paixão, a bela ninfa Salmácis. Tanto amor ofuscou, por ciúmes, os risos de Júpiter. Ameaçado por aquela ligação, por perfeita poderia vir a destronar a sua perfeição, decidiu separá-los. Disto sabendo os amantes recorreram aos poderes dos pais de Hermafrodito, que os fundiram num ser único na semelhança do espaço sem espaço que as criaturas primordiais ocupavam. Mas Júpiter levado na insânia que frequentemente atinge os poderosos ao sentirem em perigo os poderes, perseguiu-os pelo vasto Universo tendo-os, ao que parece, encontrado adormecidos num desconhecido planeta da décima sétima galáxia no setor de Zabulon.

Aí lhes separou o corpo e raptou Salmácis. Para onde a levou nunca o confiou a ninguém. Por tanto, ainda hoje, pelo vasto universo, montado numa nave parecendo, à vista desarmada, uma estrela cadente das doces noites de agosto, Hermafrodito percorre os grandes espaços buscando, desesperado, aquela que por direito lhe pertence por ser a sua metade.

Consta que ainda a não encontrou.

 

Eu encontrarei Valéria algum tempo após sair do Hospital. Não reverberarei a tentativa de suicídio como pensara. Ela ignorou a propositada ausência no Hospital. Sem palavras abraçámo-nos. Verteu algumas lágrimas celebrando a fortuna de ter sobrevivido. Não quero voltar a deixar-te, sussurrou. Nunca mais estaremos longe, prometi. Já, nessa noite, dormiu na minha casa.

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 17:06

Momentos para inventar o amor

Sexta-feira, 17.04.20

 

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G - Ai de quem

 

Chegará o momento de apresentar Andina. Tê-la-ei conhecido ao mesmo tempo de Valéria. Fará parte do grupo inicial. Distingue-a os piquinhos nos olhos, uma mordacidade latente, o feminismo militante. É gira, mas chata. Ao contrário de Valéria será ave solta. Advoga sem grande reconhecimento. Trata de pequenos casos. Divórcios, partilhas, alguma querela entre sócios de estabelecimentos comerciais. Vai dando para se sustentar e ao filho de seis anos. Apesar do discurso pressente-se que procura um pai e uma ajuda na partilha de despesas. Tal evidência afastará muitos dos possíveis pretendentes. Tal como me pôs em vigilante guarda.

Um dia virá mais picante de olhar. Pedir-me-á para irmos a minha casa. Pretende consultar a enciclopédia. Estranharei vê-la pedir a Valéria para ficar com a criança, que nunca abandona. Aceito o repto. Preparo-me para o jogo. No chão, onde será subitamente largado, repousa o volume pretendido da enciclopédia nem sequer aberto. Depois do duche pergunta-me se a acompanho no sábado ao cinema. Responderei que sim e não minto. Não saberei ainda que Valéria me virá pedir para a levar a uma ação de formação, para a qual não terá transporte. Pretende dar aulas a invisuais. Prepara-se para tal. Não mais me lembrarei do compromisso com Andina. Regressaremos muito perto da hora de jantar. No café, furiosa, Andina pergunta-me se é um pedaço de merda. Tentarei, canhestramente, a desculpa. Não terei argumentos para rebater os seus. Os factos são mais fortes. Finalmente faz-me um ultimato. Tens de te decidir. Ou pensas beneficiar dos favores das duas? Se responder não te prometi nada, levá-la-ei ao rubro da fúria. Desesperada pegará na imperial e entornando-a sobre a minha cabeça deixará a mesa e o grupo. Nunca mais saberei nada dela.

 

- Saiu boa prenda o teu Cursino.

- Não vejo porque o julgas tão duramente. Será que te sentes cúmplice de Andina pelo discurso no feminino?

- Nada disso. No entanto ela tem razão. Não existira tal discurso se esta sociedade não fosse dominada pelos homens. Não há igualdade de oportunidades entre os géneros. Vê como Andina se esforça e nada de verdadeiramente grande lhe vem parar às mãos. Quantos advogados, bem piores que ela, recebem, só por serem homens, casos bem maiores que eles e que nela caberiam a contento.

- Não contesto as tuas razões. É verdade. Isso acontece. No entanto é uma questão de tempo. Há mais universitárias, mais licenciadas, mais doutoradas. Um dia as coisas mudam.

- Não podemos esperar a mudança das coisas por si próprias. Temos que forçar os acontecimentos.

- Como?

- Através das quotas…

- Para aí. Subir por mérito próprio eu entendo. Agora assumir um lugar por se ser mulher, sem prestar provas de mérito, vai mais devagar. Definitivamente não aceito tal.

- Machismo militante…

- Qual quê! Se alguém chega a uma posição sem dar provas de tê-la alcançado pelo seu esforço, cedo ou tarde será cobrado o preço da benesse…

- Dizes benesse? Porque não direito? Se não forçarmos as coisas elas nunca mais acontecem. As quotas são um instrumento a usar.

- Instrumento perigoso. Por esse caminho um dia teremos quotas para tudo e para todos. Para brancos, para pretos, amarelos, homossexuais, heterossexuais, canhotos e dextros, cristãos, islâmicos, judeus ou adventistas, até onde se esgote a lista de diferenças e minorias.

- Não queiras comparar. As mulheres não são uma minoria.

- Pois não, mas pertencem ao género humano e deverão ter os mesmo direitos e deveres dos homens e alcançar os objetivos pelo esforço e competência.

- Isto se as deixarem, o que não é verdadeiramente o caso nos nossos tempos.

- Nada é perfeito…

- Não te escondas atrás de palavras. Se refletires bem acabas a dar-me razão.

- E se repartíssemos a razão por quotas?

- Se não queres falar a sério o melhor é mudarmos de assunto.

- Certamente, não te exaltes. Deixemos partir Andina e tornemos a Valéria e Cursino. Reparaste que citei Valéria em primeiro lugar?

- Nunca te acusei de não seres um cavalheiro. Só de seres demasiado conservador sobre a situação da mulher.

- Voltamos ao caso…

- Não, foi apenas desabafo, conta-me o que vamos fazer.

- Pois bem! Valéria é obcecada. Como já mostrámos quer ensinar invisuais. Pretende saber como é o mundo deles. Vai pedir auxílio a Cursino.

 

Quero saber como se sente um cego na rua e em casa...

Comunicar-me-á Valéria. O que pensas fazer? Olhando-me como se tivera dito o maior disparate de todos os tempos dir-me-á: pois não é óbvio? Não saberei como dizer-lhe ser-me completamente impossível perceber onde queria chegar.

 Precisarei da tua ajuda.

 Somarei perplexidade a perplexidade.

Farei o seguinte. Durante uma semana não verei nada. Na rua andarei de olhos fechados. Em casa colocarei uma venda. É para me guiares nessa noite que te necessito.

Serei apanhado de surpresa. Tal empenho obrigar-nos-ia a coabitar. Saberia que me iria sentir mal em sua casa. Para mim continuava a ser a casa deles. Todos os recantos, móveis, superfícies, estariam habitados dos seus cheiros, dos seus usos. Não estaria confortável. Impossível! Deixarei sair.

Impossível porquê?

Porque será ainda a casa de Elísio…

Não podes deixar de ser pateta? Há quanto tempo não habita lá? Não sou eu que pago a renda? Aquela casa já era minha antes de viver com ele. Em nada do que lá está comparticipou. Todos os móveis e loiças me foram oferecido pela minha mãe. Elísio, para esse efeito, foi apenas um hóspede.

Não gostarei das palavras dela. Pensarei se num dia, caso alguma vez vivêssemos juntos, diria a qualquer outro as mesmas palavras: Cursino? Foi apenas um hóspede!

Não respondes ao meu pedido?

Responderei com condições.

Quais?

Será apenas uma ajuda que te vou dar. Ficarei em tua casa, mas nada de maior proximidade que pegar-te na mão para te guiar, se passará entre nós.

És esquisito…

É pegar ou largar…

Está bem, aceito.

Habitarei a estranheza daquela situação. Apagados os relevos pela venda negra andará, nos dois primeiros dias, agarrada à minha mão. Depois, mais afoita, conhecedora da casa deslocar-se-á sozinha, primeiro cautelosa, mãos à frente tateando possíveis obstáculos, a seguir adquirindo segurança tentará, não sem alguns percalços, deslocar-se de forma normal. Perceberemos como o não ver modifica o espaço e a perceção. Descobriremos ter o simples mudar de uma cadeira para outro lado um efeito devastador na mobilidade. Até nos habituarmos cai algumas vezes, fere-se ligeiramente. Perguntar-lhe-ei se será mesmo necessária experiência tão radical. Não responderá e irá para a cozinha onde pretende fazer o almoço com um mínimo de ajuda. As facas são o meu receio. Procura-as, passa os dedos pela lâmina, descobre o fio, vai buscar uma batata. Cautelosa consegue fazer o almoço sem ajuda e sem tirar a venda. Dir-me-á ao café que me terá deixado fazer:

É misterioso o mundo sem luz!

Ao terceiro dia decidirá ser o momento de enfrentar o exterior. Troca a venda por óculos escuros. Mantém os olhos cerrados. Vai buscar a bengala sinalizadora e dirá:

Segue-me. Não me tentes ajudar senão em caso de grande dificuldade ou perigo.

Percorreremos os passeios de Lisboa sendo, muitas vezes, obrigada a sair para a zona de circulação de tráfego por obstáculos vários nos passeios. É uma manobra perigosa. Perguntar-me-ei quando não conseguirá manter os olhos fechados. Não darei por uma única mostra de fraqueza ou desistência. Mesmo quando no Largo da Misericórdia – que tem outro nome apenas conhecidos pelos taxistas – a deixo junto á berma para comprar uma cautela da lotaria, verei uma idosa, frágil na dignidade, pegar-lhe no braço, trocar umas palavras e a seguir conduzi-la ao outro lado da rua. Correrei assustado para a encontrar tranquila. Dir-me-á:

Estou a conseguir superar a prova. Faltam apenas quatro dias.

Regressaremos a casa sabendo que não aguentarei mais a situação. Sentir-me-ei preso e agoniado naquela casa. A experiência rasga-me o sistema nervoso. A proximidade, o toque sem mais consequências está a deixar-me louco.

Queres-te ir embora? De certeza? Posso chamar uma amiga para me acompanhar.

Sentir-me-ei fraco ao concordar. Inventarei a desculpa de precisar de tempo para escrever e não me ser possível concentrar ali. Deixarei a casa dela quando a amiga chegar. Para não me sentir mentiroso não sairei de minha casa até terminar a história que só passou a existir depois de lhe ter dito que a queria escrever. Pensarei então no egoísmo, nos papéis sociais, procurarei dar-lhe voz e pela noite fora, vencendo o sono a chávenas de café, num golpe de urgência começarei:

 

Sentado na varanda do seu desejo o poeta trabalha no poema. O mar em frente penetra-o pelo olhar. Ausente vai modelando no seu íntimo a mais sublime peça poética que o mundo poderá saborear. As palavras saem do arquivo da memória, passam no coador do gosto, juntam-se na epiderme da sensibilidade, prontas quase à recusa ou ao conceito do conhecimento.

Já a este poeta foram tecidas, nas praças das letras, hagiografias intocáveis. É homem de cultura e nome feitos. Fala-se dele nos jornais e outros meios de comunicação titulando-o de enorme, monstro das letras, talentoso, inspirado, um que sei mais de qualificativos em extremo. Quase se pode ficar esmagado debaixo do peso de tal fama.

Mas o nosso poeta gosta. E mais, pensa que é de menos. Considera como insuficiente a glória tida. Tal como o oceano que o contempla, ele aspira à sem razão da medida. Um infinito será talvez suficiente, mas o grande que tem é ainda pequeno. Quer muito de mais. Por tal se pende sobre o mar. Ele busca, ele constrói. Por isso, lentamente, o poema toma forma, vai crescendo. E, no mirar-se, fazendo-se poema, não pode ouvir, queixando-se solitária, a mulher que quis ser a companheira e está sozinha, atrás do poeta, atrás do mar, muito aquém da varanda do desejo, onde se busca, onde se perde, onde a memória recusa qualquer coisa que não seja o poema em escrita.

O mundo rola. Na cidade perto do mar a vida das pessoas flui. É comummente atroz e agradável. Nas marítimas ruas dessa cidade perpassam gaivotas e aromas salinos entremeados de vozes. Um mundo de gente, de barcos, de irmãos e inimigos. Nesta cidade edifica-se a glória do poeta. São aquelas mãos dadas que o leem, o fazem grande, o mitificam. Dele sabem apenas os versos. Do homem nada sabem. O poeta é uma forma de leitura. Por isso o idealizam puro como um intenção, por isso ele se pensa plano e sereno tal grande planície levemente soprada pela brisa, onde toda a calma permanece estável há séculos sem conto.

De mansinho, como entrando numa igreja sem ninguém, os medrosos dedos tateiam os ombros do poeta. Volta-se de rompão, desabrido. Malcriado grita à mulher a estupidez do momento em que lhe perturbou os sentidos quando a rede da imaginação, quase-quase, aprisionara a fúlgida borboleta da inspiração.

 

Perante o pavor expresso nos olhos da companheira ao aceitar, passiva, o sacrilégio cometido, cresce-lhe no peito o gozo do poder. Desencarnando largo gesto, olímpico na fala, teatral no todo, berra desaustinado o manso poeta dos versos tocantes e oficiais para namorados de acordo com a ordem vigente, aceite, recomendável. À companheira diz da grandeza de que está investido. Aumenta-se diminuindo-a. Ela, transida e crédula, sente a desgraça no olhar irado do deus. Amachuca-se, pede perdão. O poeta-deus, terrível, aponta no acusador índex, a saída do paraíso.

A mulher, derrotada, em vão implora a graça de um olhar, de uma palavra amiga, de um pouco da compreensão que ele esbanja por página e páginas de romances e poemas elevados à celebridade dos compêndios escolares. Nada demove a granítica vontade. A mulher desaparece da sua vida deixando o cenário um pouco mais vazio.

Intemporal o poeta continua a criação do grande poema, do último, do definitivo. Com ele encerrará a sua obra e todas as outras ainda por escrever. Será o último e o único. Ele poema. Ele poeta.

Ao que parece, na cidade junto ao mar, passou a fome, a guerra, a doença. Nada tocou o poeta. De nada se apercebeu. A Obra enche-o por completo. É o trabalho mais importante do mundo. É a esperança de toda a gente. Ele dirá tudo, ele resolverá todos os problemas. No princípio, tal como no fim, será o Verbo…

Na varanda do seu desejo o poeta, contemplando o mar, envelheceu e morreu. O último poema, unanimemente considerado obra de génio, programa de vida e o retrato daquele homem amável, humano, começava assim:

Ai de quem vive a vida instalado

na varanda do desejo virado ao mar…

 

Ai de quem egoísta e santificado

não deu de si aos outros mais que simulação

 

Ai de quem, Ai de quem, Ai de quem

estragou a vida na contemplação…

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 11:52

Momentos para inventar o amor

Terça-feira, 14.04.20

 

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F - Grimelinda

 

Eis-me aqui, Valéria de meu nome, frente a vinte crianças irrequietas, lutando para lhes prender a atenção, transmitindo saberes que poucos deles pretendem ou percebem com alguma utilidade para o futuro. Preferem brincar, curtir o sol, rebolar-se na relva, ouvir os pássaros já que de ninhos pouco sabem. Nascidos em meio urbano trazem comportamentos díspares, conceitos e preconceitos da família, do bairro, da rua onde habitam. Terei eu de, rasoira que não me quero, aplanar todas estas excrescências e levá-los ao denominador comum que nunca serão. Cobertos com a fina demão da pretensa igualdade concedida pela escola partirão, todos os fins de tarde, para as famílias. Aí o conhecimento será traduzido para a realidade própria. Tenho bons e maus alunos mas sei que tudo isto é uma enorme mentira. Basta pegar na ficha individual, verificar as moradas, as profissões, habilitações dos pais e, com surpresas mínimas posso, banalíssima pitonisa, adivinhar quais deles entrarão nas universidades, quantos ficarão pelo caminho, ocupados em profissões menores. Se esta análise falhasse bastaria fazer uma rápida estatística sobre leituras e gostos musicais ou desportivos. Ficaria em relevo o desenho das proveniências sociais de cada um, bem como se tornaria brincadeira traçar-lhes o gráfico das possibilidades de percurso. Não acredito que isto, todos os dias a saltar-me aos olhos sem grande esforço, não seja percetível para os meus colegas, para os inspetores, para o ministério. Sinto-me assim, ao falar na igualdade de oportunidades proporcionada pelo ensino, cúmplice desta grande mentira sabendo, no entanto, que terei de lutar por ela porque, apesar da relativa ineficácia, a inexistência desta escola seria ainda pior. Sei que pouco posso modificar neste destino feito pelos homens, mas sei igualmente ser-me possível estimular uma parte, mesmo diminuta, lutar contra a inevitabilidade destes decretos nunca escritos, mas omnipresentes em cada ato docente, em cada programa escolar. Somos, muitos não o querem descobrir, reprodutores credenciados de desigualdades, convencidos de possuirmos o poder de alterar substancialmente os destinos de cada um. Penso, a ideia ecoa-me no cérebro como um eco ou um “dejà vu”, ser exercício inútil procurar a profundidade das coisas. Sinto-me Cassandra ao tentar comunicar estas reflexões à maioria dos meus colegas. Estou só ou pouco acompanhada, a pregar para quem não me quer ouvir. O manto negro da deceção cobre parte dos meus dias. Isto não faz grande bem à minha neurose.

 

Darei a palavra de honra que vou evitar encontrar-me com Valéria. Ver-nos-emos por vezes, em círculos de amigos e situações impossibilitadoras de qualquer conversa mais profunda, quer pela quantidade de gente, quer pelo alarido, as conversas trocadas e truncadas, os risos, os apartes, a confusão. Saberei, porém, ser o encontro inevitável. Eu, contrariando-me, evito-o, ela, julgo, procura-o. A ambiguidade da posição de Elísio estará a coibir-me qualquer avanço. Pergunto-me porque não me decido. Na realidade eles já não viverão juntos. Ele terá saído para outro local, certamente encontrará novas amizades, amores, espaçará gradualmente a presença entre nós e as memórias. Fará a sua vida. Por isso não compreenderei muito bem os meus escrúpulos. Se a vida fosse o jogo de xadrez que parece ser, seria agora a altura para executar o meu movimento. Saberei que o relógio está a contar, mas não conseguirei premir o botão, avançar qualquer das minhas peças. Ficarei parado pelos escrúpulos. Uma estranha lassidão cobrir-me-á a vontade. No fundo, para não ter a má consciência de precipitar uma solução definitiva espero que seja ela a, ultrapassando as regras, desligar o relógio, avançar para o próximo movimento. Estou dividido entre a lealdade aos meus princípios e o interesse por Valéria, pensado invisível apenas por mim. Todos os outros, Elísio incluído, consideram inevitável a sua consecução. Só a tentativa de retardar o que não poderá deixar de acontecer, terá levado Elísio a contar-me o sonho. Estarei perplexo, dividido, sem saber o que fazer.

 

- Chegaste a um impasse narrativo Kismet?

- Nem por sombras. Sei muito bem o que vai acontecer.

- As indecisões de Elísio e Cursino?

- São parte da teia. Elísio quer retardar o inevitável. Intui que quanto mais tarde se der o encontro de Valéria e Cursino, menos profundo será o golpe a sofrer. Percebeu a inevitabilidade. Esbraceja para que o mesmo seja o mais tarde possível.

- A demora será paliativo?

- Ele assim pensa…

- Mas não o será?

- Nem lá perto. Por mais que tente habituar-se à sensação de perda, nada poderá evitar-lhe o cumprimento do luto. A identidade atual é a que criou com Valéria. Não lhe será possível começar uma vida realmente nova sem que essa identidade seja refeita. Precisará da dor, do esforço por ultrapassá-la, para preencher a falha. Enquanto o não fizer, tudo quanto lhe aconteça será conspurcado pela ausência, por esse pântano onde tudo se afunda, desaparece.

 

- Poderias evitar-lhe, ou, pelo menos, amenizar a passagem. É demasiado cruel tal condenação. Que fez Elísio para merecer o castigo? É certo! Carrega a culpa da agressão a Valéria. Não é aceitável. No entanto, foi a tua vontade a levá-lo a isso. Bastava rasurar essa parte. A história poderia prosseguir para outro desfecho.

- Sem dúvida, Oblata, tal seria viável. Apenas essas histórias já não seriam a minha história. Seriam outras e de outros. Se tu, por exemplo, fosses a autora principal desta peça as personagens tomariam outros rumos, seria muito diferente o desenlace e com tanta validade como o meu. Só que estarias a construir outro universo, acontecimentos, relações e escatologias. Tudo é pensável, Oblata, logo possível. Nem sequer sei se, neste momento, em qualquer outro local, não estará a ser construída uma história paralela. No entanto, mesmo começadas iguais, as diferentes escolhas feitas nas bifurcações dos caminhos, nas opções tomadas, breve as tornariam dissemelhantes…

- Sabes se não será assim? Se neste momento não estarão a prosseguir narrativas diferentes pelos caminhos que desdenhaste?

- Muito provavelmente estarão. Mas que interessa isso? Não poderei ter a certeza e, de momento, só a que escrevo me importa.

- Tanto egoísmo, Kismet. Fazes-me lembrar aqueles que defendem que na conjugação de muitos egoísmos individuais poder-se-á atingir o altruísmo…

- Longe de mim tal presunção. Por muito que somemos parcelas de qualquer coisa elas somente aumentarão em substância, nunca produzirão o seu contrário.

- Se não te importas podes esclarecer-me como irá ser superado este momento?

- Sem dúvida, ora escuta:

 

Como por acaso, num dos encontros de grupo, Valéria pedir-me-á para ir à sua escola contar uma história infantil. Ficarei atrapalhado. Nunca escrevi nada semelhante. Será um universo muito distinto daquele que costumo retratar. Não saberei sequer como começar, o tema a abordar, a forma de desenvolvimento. Recusará a minha escusa. Argumentará ser um novo campo, uma experiência enriquecedora tanto para mim como para as crianças. Ver-me-ei, um pouco sem saber como, comprometido e de data marcada. Não terei muito tempo. As primeiras tentativas serão um enjoo. Não conseguirei acertar no tom, na linguagem, no tema. Escrevo, leio, apago. Assim não vou lá. Em desespero recorrerei ao Zé. Contador de histórias poderá valer-me nesta aflição. Vou ter com ele, de noite, a uma livraria cheia de gente que o ouve presa da surpresa das palavras, da entoação, da postura corporal. Provoca risos, angústias, expectativas. Toda a gente estará suspensa na espera do final da história, da volta surpreendente que a narração possa vir a tomar, da conclusão inesperada, da moral a reter. No final retirar-nos-emos para local mais recatado. O facto de ser uma história para crianças, dir-me-á, não te deverá levar a diminuir o rigor da palavra. Nem tentes adotar um tom de facilidade. As crianças não são imbecis e merecem o melhor que se possa fazer. Não facilites nem entres por lucubrações excessivamente abstratas. Trata do real e procura dar-lhe um pouco de sonho, de fantasia. Deixa que a imaginação deles construa o caminho do podia bem ser assim. Dá-lhe apenas as pistas. Nem demasiado literal nem tão afastado da realidade que possa parecer inverosímil o acontecimento. Para as crianças o imaginado é real. Não saias destes parâmetros. Ah! não te esqueças do final feliz. Ficarei confuso e esclarecido. Parecerá, no momento, não ter adiantado nada a nossa conversa. Deitar-me-ei um pouco desiludido. Acordarei no dia seguinte com um nome a retinir-me na consciência: Grimelinda, Grimelinda...

 

Vou contar-vos uma história de beleza triste. Havia, no céu, uma ave linda de cores e canto. Tinha todos os matizes possíveis e brilhava tanto que, quando o sol a olhava, de ciúmes saía de sua casa e começava o dia. Essa ave chamava-se Grimelinda, esvoaçava pelas estrelas do firmamento, confundindo os homens, muitas vezes, o deslizar da sua cauda com os brilhantes cometas. Estava encarregada de trazer a harmonia ao mundo. Sempre, após fazer levantar o dia, esvoaçava pelo planeta, saltando de ramo em ramo, indo de floresta a floresta, iluminando mesmo as cidades. Se, ainda escuro, o menino sofria no casebre e a mãe desesperada não conseguia alívio para os seus males, sussurrava-lhe baixinho, espera um pouco mais querido pela passagem da alvorada. Não te ausentes agora, ela certamente pôr-te-á muito melhor. A criança esperava o milagre. Quando soava o pipilar da ave, as dores desapareciam, as cores voltavam ao rosto, a rua tornava-se a tentação para novos jogos. Diz a lenda mais. Habitava a orla da floresta uma jovem tomada de amores por um príncipe, passando todos os dias a caminho da caça sem sequer olhar para a pobre remendona a segui-lo com o olhar e desejo. Grimelinda fez o milagre. Transformou-lhe os andrajos em ricas vestes, fez dos animais selvagens homens de corte, metamorfoseou folhas e gravetos em ouro e pedras preciosas e diligenciou que este cortejo travasse a cavalgada do Príncipe e dos seus seguidores. Ele que era audaz na guerra e certeiro no arco viu-a pela primeira vez. Apaixonou-se por ela, casaram e edificaram um castelo nas fímbrias da floresta preferida de Grimelinda. Outro reconto diz que um homem sábio, atacado de velhice, decidiu morrer. As pessoas entraram em choros e consternações. Quem agora daria os conselhos necessários ao bom rumo da cidade? Quem, com a sabedoria reconhecida, reconciliaria as famílias, os amantes desavindos? Com quem se poderia contar quando um inimigo decidisse atacar a cidade e faltasse a sua voz profunda convencendo o adversário ser o fim último da luta não lutar? Sentiam-se órfãos e perdidos. Grimelinda ouviu as imprecações e preces. Voou em rasto de luz, primeiro sobre a cidade absorvendo desgostos, deixando cair venturas, depois sobre o corpo do sábio exposto à infelicidade de todos. Os rastos da cauda espargiam pó de luz sobre o velho inanimado. Os círculos que fazia iam-se estreitando ao momento que diminuía o espaço entre eles. Finalmente, o corpo do homem coberto da poalha das cores de Grimelinda, pousada esta suavemente na testa dele, começou a voltar à vida. Grimelinda transportou aos céus os alívios da multidão reconfortada por mais um bem conseguido. Brilhou ainda mais e, por toda a terra se fez verão.

Alisava as penas, preparada para iniciar mais um dia na terra quando, numa aragem de felicidade, Deus passou por ela. Olhou-a embevecido reconhecendo-se na beleza da obra. Sorriu-lhe por meio de poeira dourada. Como suave mão a sua aragem acariciou-lhe a delicada cabeça. O coração de Grimelinda rejubilou. Tocada pelo amor de Deus esvoaçou em alegria superior, partiu para a terra veloz a espalhar a boa-nova. Fora tocada por Deus. Resplandecia. O sol compartilhou dessa alegria e deu cores mais brilhantes às coisas moventes ou paradas. A natureza agradeceu a benesse fazendo brotar verdes, amarelos, castanhos intensos. Mesmo as próprias pedras refulgiram. Tudo espelhava a felicidade de Grimelinda. Extasiada pousou num ramo perto do castelo do Príncipe. Este saía com os companheiros para a caça. Olhou para trás, despediu-se da menina, agora mulher e princesa, com um sorriso de amor. Também estava feliz. Quase a entrar no bosque olhou para árvore onde pousara Grimelinda. Ainda tocado pela ternura pensou, que lindas penas para oferecer à minha Princesa. Tirou a flecha do carcás, mediu o vento, calculou a distância, tendeu a corda do arco. Jamais falhara um alvo. Rápida como raio de sol a seta partiu de encontro ao coração de Grimelinda. Já no chão, a plumagem ganhando um novo vermelho a empapar-lhe as penas, os olhos agora baços fixados ainda no azulão do céu, conseguiu murmurar: Porquê a mim, Senhor?

Peço-vos que atendais ao facto de, apesar de milagrosa, não ser Grimelinda perita em semântica. Por pura ingenuidade não soube manter até ao fim a sua condição de escrava de deus e naquilo que pareceu, mas não poderá ser, uma espécie de revolta, antes perturbação e incredulidade, enganou-se na palavra que lhe cabia deixando transparecer sentimentos muito diferentes dos que lhe eram permitidos. O que ela teria de dizer e só isso justificaria todas as ações seria: Logo hoje, Senhor, que me beneficiaste com o teu sopro!

 

Verei Valéria a aproximar-se de olhos fuzilantes. Acutilante perguntará:

 que raio de coisa te passou pela cabeça para vires contar essa horrível história. Só descrença e infelicidade. Será a última vez que te convido para qualquer coisa…

 

Perplexo aceitarei o óbvio. Apesar de todos os esforços falhei. Não escreverei mais histórias infantis. Não saberei jamais semear a esperança. Desespero é o meu nome.

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publicado por Carlos Alberto Correia às 11:49

Momentos para inventar o amor

Sexta-feira, 10.04.20

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E - Por vezes o drama

 

- Faz deitar o Elísio, Oblata.

- Pensei que, com a colocação na nova escola, tivesse saído de cena.

- Pensaste bem. Essa foi a primeira ideia. No entanto, necessito dele para manter o espetador interessado, retardar o momento das decisões e dos atos cruciais que, ele sabe, deverão ser tomados, embora fique na expectativa de quando e como o serão. Um desfecho demasiado precoce, ou o prolongamento excessivo do mesmo levam ao desinteresse, ao fastio. Há que saber jogar com as emoções e esperanças.

- Por isso fazes reentrar Elísio?

- Precisamente.

- O que vais fazer com ele?

- Pô-lo a sonhar, ou melhor a ter um pesadelo.

- Isso para quê?

- Para que ele volte a contactar Cursino. Um pretexto para adensar o drama, criar ambiguidades nas relações, nos sentimentos. Empurrar, como não pode deixar de ser, as personagens para os seus destinos.

- Parece-me estares em contradição com o que defendeste sobre a vontade dos personagens, na alteração do curso dos acontecimentos.

- Nenhuma contradição. Como vês eu tinha decidido terminar o seu papel na intriga, mas aí está ele de novo, a exigir uma reentrada a dizer-me não te livras tão facilmente de mim. Sou eu a querê-lo de volta ou é ele que se impõe?

- Só tu, Kismet poderás responder a tal questão.

- Na verdade só sei que se aconselha o seu regresso ao drama. O resto fica para mais profundas interrogações, quando tivermos tempo e o propósito das personagens for cumprido.

- Que faço com Elísio, Kismet?

- Fá-lo apenas deitar. Cursino relatará o acontecido.

 

Elísio, transtornado, telefonar-me-á. Estarei com pouca paciência. A história, em escrita, não estará a correr-me bem. Precisará de um fim viável, que surpreenda o leitor. Tudo quanto virá a ocorrer-me será banal. Estarei irritadíssimo comigo e com o mundo. Tentarei esquivar-me ao continuado do telefonema. A voz de Elísio será intromissão, ambiguidade desagradável no rumo dos meus sentimentos. Quero decidir a minha relação com Valéria. Se Elísio continuar a intrometer-se não o vou conseguir fazer. Contar-me-á, de qualquer modo, o sonho.

 Estou numa praia com uma mulher que desconheço, mas pela qual sinto uma atração forte. A praia é suja, escurecida, batida pelo vento, quase deserta. A mulher, de rosto difuso, levanta-se e encaminha-se para um guarda, trajado ao jeito do século dezanove, de bastos bigodes negros, erguidos nas pontas e, sem qualquer rebuço, começa a seduzi-lo. Encosta-se a ele, procura-lhe os lábios, beija-o coleante. Quero impedir o ato, mas não consigo mexer-me. Sinto-me ofendido e revoltado por não poder fazer nada. A mulher começa a tirar as roupas ao guarda. Vai-o despindo com lentidão. O seu corpo parece ondular como as espigas sopradas pela viragem. Suo no esforço para me erguer. Com o guarda quase despido a mulher retira o sabre da bainha e corta a própria cabeça. Enquanto vai minguando, assemelhando-se aos crânios secos ostentados como troféus pelos jívaros, não deixa de falar numa linguagem incompreensível. Afrontado pelo horror consigo levantar-me, fujo por entre os paus sem panos das barracas, através do nevoeiro subitamente aparecido de terra. Sem perceber como, estou noutro tempo e lugar. Recebo um convite para me encontrar com uma estranha. Agrada-me o mistério. Decido comparecer. Ao chegar reconheço o local. A casa onde vivi com Valéria. Subo as escadas, ainda tenho as chaves. Na sala, na mesa de jantar, numa salva de prata, precisamente ao centro, está a cabeça. Antes de poder tomar qualquer atitude a cabeça principia a elevar-se, mantida sobre um corpo evanescente. Do rosto sem feições definíveis nascem as resplandecentes formas de Valéria. Fala comigo. Diz-me que a única maneira de continuarmos juntos será se eu cortar também a cabeça. Apesar da crueldade do convite o ambiente começa a ser de estranha e envolvente doçura. Sou levado a concordar com ela. Ofereço-lhe o pescoço. Ela, com o sabre, sem esforço ou sangue, separa-me a cabeça do corpo. Sei que vou morrer, mas não me importo. Sinto o crânio a secar, a tornar-se cada vez menor. O corpo de Valéria tremula ao desfazer-se e a cabeça, de novo diminuta, gargalha junto à minha. Antes de tudo se fazer escuro ainda a oiço dizer, está paga a bofetada.

Elísio perguntar-me-á, impressionado pelo sonho, que conclusão tiras disto? Apesar de me parecer evidente dir-lhe-ei não ter nenhuma. É apenas um sonho, um pesadelo. Bebeste ou comeste demais nessa noite?

 - O normal. Parece-me ser o meu inconsciente a dizer-me nada mais ser possível com Valéria.

 - Pensava já teres tomado essa decisão.

- Também eu, terminará.

 

 - Que sonho mais macabro, Kismet. Não percebo porque terás de introduzi-lo na narrativa. Podias muito simplesmente teres finalizado a relação de Valéria e Elísio sem mais acrescentos. Acabou o amor, ou a paixão e pronto. Porquê enxertar algo tão exterior à história?

- Para acentuar o dramatismo que, sem nos apercebermos, se intromete no quotidiano. A catarse só pode acontecer se os sentimentos chagarem ao paroxismo. É por isso que Cursino divagará, ao longo da tragédia dos dias sem surpresas, na construção do insólito. O sonho enriquece a vida. Tu bem sabes. Deixa o Cursino fazê-lo fluir no leve do sonho, no peso do nada acontecer ou de tudo parecer marcado pela cinza em que se extinguem as paixões.

- Fá-lo então prosseguir…                             

 

Chegou meio esbaforido. Olhou em redor. O café estava a abarro­tar. Nem uma mesa vaga. Fungou duas vezes e atirou na minha direção a flecha do olhar. Avançou decidido para esta mesa onde em calma despedaçava a tarde. Sentou-se e disparou:

 

- Por vezes o drama insinuava-se na nossa vida...

 

Alargou-se todo num sorriso cretino a ocupar-lhe a boca mais dez anos de recordações.

 

...pois era... e se eu fazia esforços para a compreender. E ela? Divertia-se inventando tudo para me fazer sair de mim. Conduzia toda a minha vida em ciclo. Um drama, muitas promessas, reconci­liação; novo drama, mais promessas, outra reconciliação...

 

Olhei para ele com aqueles olhos de acabar conversas que tu tantas vezes dizes denotar em mim. O gajo nem deve ter percebido que eu tinha olhos. Ou boca. Escolhera-me como ouvinte. Nem pela cabeça lhe passaria a possibilidade da minha recusa a semelhante papel.

 

... de tal forma que muitas vezes, esperando o passar da noite, pensava poder agarrar na nossa vida e fazer dela uma história capaz de ultrapassar esses romeus e julietas que por  aí se  contam. Não se ponha a pensar que entre nós não havia amor. Bem... pelo menos pela minha parte havia e muito. Da parte dela parecia-me haver correspondência. Agora ter a certeza... vá lá a gente saber. Como adivinhar o que se esconde no mais íntimo de alguém? Ou mesmo se os atos correspondem à sua aparência. Não lhe parece que estamos sempre encurralados? Acreditamos e corre-se o risco de sermos enganados. Não cremos, logo a solidão nos toma de emboscada. Como eu detesto a solidão! Seria capaz de fazer qualquer coisa para não estar um só momento solitário na vida...

 

Desesperado, mando o olhar à procura de outra mesa no café. Nem esperanças. Chamei o empregado para pagar a despesa e zarpar. Mirou-me, com os olhos a abarrotar de ruído e fumo, no desprezo de quem tem ainda pela frente três longas horas de trabalho duro, não percebe a pressa de alguém que só tem que estar com o rabo repimpado na cadeira e, olimpicamente, ignorou-me. Fiquei, assim, completamente à mercê da história daquele manjerico.

 

... você acha que tenho ou não razão para detestar a solidão?...

 

Pronto! Deste-me a deixa, vou despachar-te em grande velocidade!

 

... livre-se dessa peste, amigo. Livre-se dela. Onde é que eu ia? Ah! O acaso... o acaso a fazer-me sentar  nesta mesa consigo, que não conheço de nenhum lado, fez-me  encontrar Terília. O acaso é assim. O café cheio. O amigo sozinho, vê-se mesmo cheio de vontade de conversar e eu, sem nunca o ter visto antes, a descobrir-lhe a minha vida. Sabe que mais? O acaso é o destino. Não sou fatalista nem supersticioso, mas lá que Terília entrou na minha vida por acaso...

 

Se eu por acaso espetasse uma lambada no trombil deste chato o que é que dirias? Teria sido bruto? Incivilizado? Ou apenas percebido a paciência como material que se esgota com celeridade? Põe-te no meu lugar. Agirias doutro modo? Ao menos um berro no ouvido...?

 

...Recordo-me perfeitamente. Numa festa em casa de amigos. Ricos, pois claro! Ricos até criar bicho. Só o salão dava para duas famílias habitarem. Com piscina e tudo... pensa que estou a exagerar? Qual seria o gozo de lhe mentir. Não o conheço. Provavelmente nunca mais o verei...

 

Ainda bem, pensei, tentando fazer-me ouvir. Tu bem me disseras que o meu horóscopo me era desfavorável esta semana. Desculpa-me o riso de incredulidade. A tua revista tinha razão. Este gajo não me larga e o empregado já passou por aqui mais de vinte vezes e continua a não atender aos meus chamamentos. Nem sequer vaga uma mesa para zarpar daqui.

 

... uma bela festa, digo-lhe eu. Terília estava lá. Linda de se ficar sem fala. A sala brilhava de iluminada. Ela era ainda mais brilhante do que a sala. Trazia um vestido azul claro... não... creme... bem, trazia um vestido que lhe caía lindamente... disso tenho  a certeza. O amigo já me está a imaginar, como nos filmes, a avançar para ela, os outros a afastarem-se para me dar lugar, pegar-lhe pela cintura e caminhar, ao som da valsa  final, para um recanto do jardim. Imaginação sua. Imaginação... Ela nem deve ter  chegado a reparar em mim. Rodeavam-na admiradores e amigos.  Tantos que nem me consegui aproximar. Também não sou exigente. Bastou-me contemplá-la de longe. Sou muito tímido...

 

Tímido.  Tímido o marmanjo. Olha-me bem para este. Dá vontade de rir. O tipo vem de onde não se sabe, senta-se na minha mesa. Nem sequer pede licença e sem me ter visto algum dia mais gordo, desata a contar-me a história da vida dele e diz-me que é tímido.

 

... de qualquer maneira um homem não é de pau. Nessa noite ador­meci com uma telha dos diabos. Bem gostaria de ser um  esses bonitões que nem precisam de assobiar e já elas estão a cair-lhes nos braços. Cá comigo nunca é assim. Desunho-me todo para me fazer notado por uma fulana e se consigo despertar-lhe a atenção é certo e sabido... ou é coxa ou anda no psiquiatra. Tenho cá um destes azares!

 

E eu, o que é que eu tenho? Se calhar isto é sorte. O meu pai, como tu sabes, era um preconceituoso de merda, barrava-me todos os dias os ouvidos com as etiquetas sociais. Nunca me deixaria assentar arraiais na mesa de qualquer fabiano sem lhe pedir licença e sem que lá me demorasse o mínimo tempo possível. Começo a dar razão ao velho.

 

... fiquei por isso muito admirado quando, em dia tempestuoso, a fui encontrar, numa reunião clandestina, na mesa, a dirigir os trabalhos, e CÉUS, ela reconheceu-me! Não fez mais que uma piscadela de olhos e a sombra de um sorriso, mas, meu Deus, eu estremeci todo por dentro.  Ora veja, ela não só me reconhecia como me distinguia com um sinal especial. Distinguia-me, a MIM, percebe?

 

Então não percebo. A tua sorte foi ela só te conhecer de vista. Soubesse ela a chaga que és punha-te a milhas em dois segundos.

 

Não sei se o amigo se lembra como eram as coisas naquela época. Refiro-me à situação política. Como é evidente, os problemas nas relações homem/mulher era coisa que ela tinha há muito ultrapassado. Frequentara a Universidade, viajara muito. Além de ser um cérebro conhecia, de viver, uma data de países. Convivera com  muita gente importante. Era raro falar de um nome, mesmo de estrangeiros, com quem ela não tivesse convivido...

 

Bem, pensei eu, um chato e uma mentirosa com pretensões. Deviam fazer um lindo par. Ainda por cima este fulano parece convencido de ter feito sozinho a resistência ao fascismo. A propósito, se tu aqui estivesses irias franzir o nariz e com o teu ar solene e pedagógico começarias a dissertar sobre a importância de delimitar as fronteiras entre os regimes políticos. Dir-me-ias salientar-se o Estado Novo pela vertente corporativista, pondo a tónica sobre a conjugação de interesses das classes, o que, em análise, se diferenciava bastante das doutrinas dos "fascios" e nacionais-socialistas, os quais, em intensidade e extensão dos efeitos, ultrapassavam de longe a, mesmo aí, medíocre perspetiva do totalitarismo nacional. Claro que terias de contar com a minha oposição. A vida não é um exercício académico. Para os que perderam a vida, de forma literal ou em oportunidades, por divergirem do pensamento dominante, essas subtilezas não farão, no mínimo, grande sentido.

 

O amigo, com certeza, está a pensar que eu exagero. Pois está enganado. Quando depois da queda da ditadura o país foi invadido por uma quantidade de gente de quem nós ouvíamos apenas falar, eu tirei a prova da verdade dos seus conhecimentos. Olhe, em nossa casa esteve mesmo hospedado o Jean-Livoir. Não acredita? Pois posso provar-lho. Só precisa de ir até lá. Além das fotografias havia de ver todos os seus livros autografados com dedicatória.

 

Pois sim, interessa-me mesmo quem é que dormiu ou não em tua casa. A única coisa que verdadeiramente me interessaria era que fosses para lá agora. Ou fosses pentear macacos.

 

 Foi por causa de um romance do Jean-Livoir que as coisas entre nós aconteceram. Lembro-me ainda bem. Era inverno, tinha acabado de chover. Estava na porta do café pensando se entraria ou aproveitava o escampado do tempo e dava uma corrida até ao emprego. Foi quando ela chegou. Ao ver-me disse:

 

"Então a ler um livro do Jean..."

 

  ...falou dele com um conhecimento de matéria e pessoa que me deixou deslumbrado. _

 

Deslumbrado é que tu me pareces de todo e desde início. Deslumbra-te a mulher, deslumbra-te a sua escolha política, deslumbram-te os seus conhecidos,  deslumbra-te o seu saber. -Ó, meu filho, a continuares assim, não vais longe.

 

"No entanto - prosseguia ela - não é na literatura que poderá encontrar o verdadeiro Livoir. Esse só mesmo na matéria de reflexão. Pensador como esse não encontra outro. Foi capaz de ir aos clássicos, olhe que me não refiro aos gregos, mas àqueles de quem se não pode falar - sem perigo de ouvidos indiscretos se interessarem logo em demasia -  e transpor para o absurdo do estar vivos os seus ensinamentos. Para viver, diz ele, é preciso meter as mãos na merda até aos cotovelos. E sem culpas, que isso é matéria para titis de catedral."

 

Culpa tenho eu em não correr contigo daqui. A tua história não me interessa nem um bocadinho. Além do mais, nada tem de original. Até agora eu poderia contar coisas muito parecidas com essa. Bastaria mudar os nomes porque as situações, em si, parecem ser bastante reduzidas. Tenho a sensação de que alguém com pouca imaginação, ou com pouco tempo para perder com a obra, ordenou a vida de molde a que o deve-haver não se dispersasse demasiado,  tornasse  fácil o ajuste final de contas. Ademais, apesar de plausível, a história cheira-me a forjada. Basta pensar no nome da mulher. Terília... isto é lá nome de gente...

 

Eu ouvia-a e ela tomava a minha voz para dizer coisas, há muito pensadas, que não conseguia transmitir. Aliás, sempre assim aconteceu durante toda a nossa relação. Mas, nesse dia, quando nos sentámos no café, por nada deste mundo a interromperia. Penso ter feito mal! Essa passividade marcou desde logo o ritmo das nossas andanças. Se lhe disser que desde aí foi sempre ela a tomar iniciativas não lhe minto nem um bocadinho. Tinha a esquisita sensação, quando lhe propunha alguma coisa, de ser transparente.

 

Ora aí está um campo onde te percebo. Mas aqui sou eu o transparente. Ou aprendeste bem a lição ou temos uma relação onde aproveitas o não me conheceres para inverteres a polaridade. Se eu fosse mal-intencionado pensaria, como nada esperas de mim podes dar azo a tudo o que te apetece  despejar. Se com ela não o fazias, é porque esperavas  qualquer  benefício. Vês, meu menino, como o interesse gera dependência? Querias apoderar-te dos seus estatutos sem pagar o preço? Começo a perceber-te meu  pequeno. E, francamente, o que percebo agrada-me.

 

Imagine! Uma noite aparece-me toda vestida de negro, botas e calças justas, camisola de gola alta, um casacão por cima de tudo isto e sem mais aquelas diz-me: - Despacha-te! Hoje vamos fazer umas colagens de cartazes...Colagem de cartazes?! A mulher é doida, pensei. Decidi logo  pôr as coisas claras. Aquilo era já passar das marcas. Então estava a pôr-me a liberdade em perigo e nem sequer me perguntava se estava de acordo? Francamente, isto era ser mais fascista que os ditos. Enchi-me portanto de coragem e disse-lhe:

 

Está bem, onde é que vamos?

 

Grande gargalhada soltei nessa altura. Não fazes ideia do prazer que senti. Mas o gajo também tinha uma certa coragem, tive de admitir. Como deves ter percebido, a esse tempo já tinha desistido de tentar correr com ele ou sequer meter-me na conversa. Creio bem que o que ele precisava era da aparência  de um auditor. No fundo falava apenas para si...

 

Ainda hoje não consigo recordar-me bem de tudo quanto aconteceu nessa noite. Inicialmente dirigimo-nos a casa de um amigo do qual, por hábito antigo, não direi o nome. Mesmo se lho dissesse você não ia acreditar. Sim, é bem conhecido. Só que virou. Virou mesmo e deixou de morar em Campolide. Onde mora agora? Isso não lhe digo. Dou-lhe uma pista. Se correr os três sítios mais caros de Lisboa vai com certeza encontrá-lo num deles. E chega..

 

Olha-me só para isto. Dialoga comigo como se eu fosse ele. Ou, ao contrário, dialoga consigo como se ele fosse eu. Diz-me o que lhe passa pela cabeça como se lho perguntasse. Amigo, de si, não me apetece indagar nada. Por outra, apetecer-me-ia sim, interrogá-lo: quando vai desamparar-me a loja e me deixa ler o jornal em paz?

 

Na casa desse tal amigo, que você está cheio de curiosidade  de saber quem é, entregaram-nos uma braçada de cartazes, um balde de cola com pincéis,  pediram-nos para decorarmos o número de telefone onde, para o que desse e viesse, estavam de prevenção um advogado e um médico da cor. Palavra!  Arrepiei-me quando nos falaram nisto. Se até ali estivera pouco à vontade, mas ainda um pouco descrente de estar a meter naquela alhada, o número de telefone foi como um murro no peito. Você sabe, uma coisa é a gente ter cá dentro aquela indignação sufocada que nos faz chamar uns nomes à governança e outra, bem diferente, é começar a fazer coisas que os chateiem à grande. Olhe que isto de andar de noite a colar cartazes contra o governo tem que se lhe diga.

 

Ai não que não tem. Bem o sei porque me calhou em sorte...  

 

Em sorte, hein?? Puta de língua esta que até ao azar chama sorte e sem ser por ironia. Está aqui este tipo retroativamente cagado por uma coisinha de nada. Se eu fosse de contar as encrencas nas quais me meti, o gajo ficava verde. Bem, a verdade é que tu também de pouco sabes. São coisas que se fizeram. Na realidade já não contam. Deixam de contar logo que feitas produzam efeitos. Por isso  lixam-me os politicozecos de agarrar tachos, sempre de passado hasteado. O passado só conta para mandar abaixo.  Quando se faz qualquer coisa só o presente  interessa. De nada vale o que fiz se o que estou a fazer não presta.  Olha que este pensamento não é meu.  Também não o apanhei a flutuar no ar. Foi no decorrer de uma conversa com o Floral. Eu gostei e utilizo. Sim, também me sirvo, de vez em quando, de pensamentos de outros . Sem citar a  fonte, pois claro. Eu sei lá quando é que um pensamento entra no domínio público. Assim, utilizo-os quando me convém. Ponto final.

 

A noite estava preta de negra. De início tudo correu bem. A certa altura a Terília deu em armar em parva. Primeiro começou aos gritos: "abaixo o fascismo", "viva o comunismo", "proletários de todo o mundo, uni-vos". Nunca mais se calava apesar de toda a gente do grupo tentar silenciá-la. Depois, foi colar um cartaz num enorme Mercedes preto estacionado na rua. Estava ela a meio da manobra quando o condutor apareceu e começou  aos berros: - Comunista de merda, andas a cagar-me a viatura e eu é que me lixo a limpá-la. Se calhar pensas que é o meu patrão que vai estoirar o canastro a tirar a porcaria da cola de cima do carro?

 

A  malta das tascas ao ouvir estes gritos saiu toda e desatou a perseguir-nos. Corríamos a bom correr. Terília continuava a gritar, "Uni-vos proletários" enquanto, entre duas golfadas de ar, me dizia: - São todos da PIDE, disfarçam-se para se misturarem com o povo...

 

Pois  é!  Além do medo aprendeste alguma coisa de útil sobre o folclore revolucionário. Também eu aprendi com muitas dessas. Na altura usávamos uma palavra que hoje me soa esquisita para classificar os companheiros de luta. Dizia-se aquele tipo é um gajo válido. Válido, estranho, não é?  É como se nós, apregoadores da igualdade, estivéssemos de imediato a classificar as gentes em dois grupos. Os bons e os maus. Depois, com razão, em tudo quanto era sítio, revoltávamo-nos contra os "fachos"  por dividirem o pessoal entre os bons e os maus...portugueses.

 

Porra, disse-lhe, quando conseguimos parar. Fazer trabalho político é uma coisa. Provocar sarilhos é outra. Riu-se, iluminou a noite, passou o braço esquerdo sobre o  meu  ombro esticando-se um  bocadinho e de mamas encostadas às minhas costas, olhou-me um pouco admirada:

 

 - Também sabes discordar? Já ganhei a noite.

 

Não disse mais nada e nada me deixou dizer. Calou-me a boca torcendo-me o pescoço e pondo-me na boca um beijo tamanho da noite, bem maior do que o susto.

 

Pronto, pensei eu, cá está mais um com a teoria de que elas querem é um durão contrariador. Lembras-te como eu os classificava?  Eram os da porrada erótica.  Primeiro murro nos cornos, depois reconciliação na cama. Tu, como sempre avessa à crueza da linguagem, ias pondo açúcares nas expressões,  emendavas suavemente para "relação conflitual". Sempre achei graça a essa tua maneira de encarares a realidade. Dava-me a impressão que, ao mudares o registo da linguagem, pensavas alterar a dureza do real. Sim, que este mundo é bem filho de puta.

 

Dormi nessa noite com ela e continuei pelas noites seguintes. A casa onde morava não era muito grande. Um estudiozinho com um quarto, sala e cozinha comuns. Não lhe vou contar o que se passou porque detesto esses relatos minuciosos sobre as intimidades de cada um. São coisas para se guardarem, não para se exporem à curiosidade coletiva. Não, não queira insistir nesse ponto. Não lhe vou contar nada. Apenas lhe digo ter sido uma experiência única. ÚNICA, ouviu? Por muito que você esforce a imaginação nunca se aproximará da verdade. Nem mesmo eu que a vivi. Quando hoje rememoro apenas consigo ter uma representação por demais pálida do acontecido.

 

Se  eu pudesse interromper-lhe a incontinência verbal ter-lhe-ia dito que de nada me interessava a sua experiência emocional, ou erótica, ou pornográfica, fosse lá ela o que tivesse sido. Já me bastam as minhas e nem de todas me orgulho. Além do mais não considero o sexo nem como função meramente reprodutora, nem sequer como experiência religiosa ou mística. O sexo é o sexo! Como a palavra, permite estabelecer a comunicação ou a confusão. É tudo uma questão de interlocutores. Do que eles  têm para dar um ao outro. Enfim, sou pela teoria da troca.

 

Como lhe disse comecei a viver no seu apartamento. Digo bem, no seu apartamento. Não pense ser isto figura de estilo. Provavelmente esperaria que dissesse ter ficado a viver com ela. Isso também eu queria! Mas quem pode agarrar o vento? Logo nessa manhã, ao acordar, encontrei o seu lugar vazio. Procurei-a na casa de banho. Só a humidade quente dos restos de um  duche diziam da sua passagem por ali. Voltei ao quarto, sentei-me na cama. Fiz  a primeira grande e profunda meditação sobre que tipo de relacionamento seria o nosso ou se, eventualmente, haveria relacionamento ou só uma passagem episódica. Devo confessar-lhe, não sendo exatamente o modelo ideal de um bom pai de família, tão pouco tenho ganas de desenfreado libertino. À escaldante sensação da paixão, não a desconsiderando de quando em vez e com brevidade, prefiro a tepidez de uma relação segura.

 

Pois, segura. Não querias mais nada. Andas a rolar pelos espaços a uma velocidade tremenda, num grão de poeira que a qualquer momento pode chocar com outro e queres segurança! Não te apercebeste, meu parvo, sermos bolas de bilhar em mesa cósmica, nunca sabendo onde a tacada conduzirá a bola onde nos alojámos? Querias então uma relação segura. Queres dizer, estável, parada, imutável, em que o tempo deixou de existir, eterna! Meu parolo, quase me fazes ter compaixão de ti. Definitivamente és um ingénuo. Ainda não percebeste a trama onde te moves.

 

Esperei-a até à uma da tarde. Nessa altura, acossado pela fome, desesperança e raiva, fui-me embora. Tive um sarilho dos diabos no emprego para explicar o atraso, o que contribuiu para o mau humor que levava quando, sem me querer confessar, fui ao  café pensando poder encontrá-la. Com medo dela aparecer e eu não estar lá, nem jantei. Esperei, esperei…  Não apareceu. Já muito tarde passei-lhe pela rua. Não havia luz nas janelas. Tive receio de que se tocasse à porta reagisse mal, me tomasse por parvo. Sabe, na altura defendia-se muito, embora eu creia ser mais teoria que real, a relação  descomprometida. O amigo, que é da minha idade sabe bem como era. Um encontro casual, uma noite bem passada, nenhuma saudade ou remorsos e, cada um para o seu cantinho. Já vê, se ela estava numa dessas e eu lhe aparecia feito dinossauro romântico, que triste figura faria.

 

O sacana não deixa de ter razão. Também me aconteceram algumas assim. Mas era a moda. Era preciso ter aquele ar de não me ralo, de viver o presente, de vestir de negro o corpo e o futuro. Havia mesmo quem acusasse o Jean-Livoir de levar ao  suicídio por desesperança muitos adolescentes. Lá que  havia suicídios em barda, não há dúvida, mas se olhar para o presente não vejo grandes melhoras...

 

Só passados três dias a voltei a encontrar. Zangadíssima comigo. "Que não aparecia, onde é que me metera, o que  pensava dela, julgava que era mulher de se entregar sem mais aquelas, etc. etc. etc." e eu tão parvo que nem me lembrei de dizer-lhe que me podia ter telefonado para o emprego, que a esperei, que percorri a sua rua na esperança de vê-la,  que fora ela a deixar-me sozinho,  sem um pequeno recado a dizer: -

 

“Amo-te. Volto já.”

 

 ...também, para ser sincero, não vejo as coisas piorarem. Mudam, isso sim. Nós, é que nos vamos esquecendo de como elas eram e as vamos pintando de novo. Como as que agora se passam nos correm sempre ao lado, parecem-nos então menos interessantes do que as vividas. Ilusões! Formas de  reagirmos  contra o tempo e a vida que tão bem  passa sem a nossa indispensável presença. E os outros, quem nos ama?  Esses, por muito sinceros que sejam, apesar da falta que lhe façamos, seguem a lei da vida. Estamos, contam connosco, vamo-nos, duas lágrimas de dor, o tempo cicatriza a ferida e ala que se faz tarde, continuemos a passar a vida esquecendo quem partiu.  Que se  há de fazer? É assim mesmo! Poderia ser melhor se fosse de outro modo?

 

Fui de novo com ela, está mesmo a ver. Se calhar o amigo já está a pensar pois claro, porque é que este tipo, que é um palerma inveterado, havia de não ir? Se ele até bebe o ar por ela, que remédio tem senão o de aceitar o jogo. Pois está enganado. Só me deixei vencer ao fim de uma longa discussão. Disse-lhe tudo o que pensava do comportamento dela, das indecisões em que me fizera cair, da pouca importância que me parecera ter na sua vida.  Ela, senhor, ouviu-me sempre em silêncio, com um ar muito sério e no fim, larga uma gargalhada de fazer parar todo o café, agarrou-me na mão:

 

 -"Anda criança. Vou ver se te faço crescer."

 

Arrastou-me de novo para casa e fiquei lá definitivamente.  Quer dizer, fiquei até ao dia...

 

 Claro, em que ela correu contigo. Fartou-se das tuas imbecilidades, das inseguranças contínuas e pôs-te a milhas. Tinha com certeza coisas mais interessantes a ocupar-lhe o tempo. Tu sabes que uma relação entre dois adultos não é nada fácil. Duas personalidades a evoluírem em direções próprias, com a sua pessoalíssima visão do mundo, a ocuparem o mesmo espaço, fazerem coincidir, dia após dia, continuadamente, as suas vontades. É obra! Não é para qualquer um. Quantas noites passámos nós discutindo por coisas que ao alvorecer pareciam sem importância, mas se as deixássemos cavalgar a noite seriam, por essa mesma manhã, um tremendo obstáculo ou um perigosíssimo recalcamento.

 

...em que ela, sem mais aquelas, chegou-se a mim deu-me um beijo demorado nos lábios e disse-me, pela primeira vez:

 

" - Amo-te desesperadamente. Tanto que te vou deixar. Não quero perder as nossas vidas numa relação cujo futuro é o embranquecimento das cinzas. Vou amanhã para Paris com o Cirondo."

 

 E foi.

 

 Sobre a estupefação que me invadiu nem lhe falo. Depois, tudo aquilo me parecia inverosímil. Dizer que me amava para, logo em seguida, me comunicar o abandono, era coisa fora da minha lógica. A seguir invadiu-me uma revolta e uma angústia que misturadas se anulavam, apenas permitindo manter-me num aparvalhamento total. Engoli as palavras várias vezes antes de conseguir dizer-lhe:- ai vais? Então boa viagem.  Desandei escadas abaixo para que ela não me visse chorar.

Até agora nunca mais deu notícias. Nada soube dela durante anos. De repente, como se nenhum tempo houvesse passado, como se não me tivesse trocado por outro quando nada faria esperar tal coisa, sem mais aquelas, mandou-me um telegrama, seco, imperativo, comunicando-me, chego hoje de tarde no avião de Paris. Que a fosse esperar.

Por esta razão, porque me encontro numa tremenda dúvida sentei-me na sua mesa e contei-lhe a minha  história. Dê-me um conselho. Devo ir ao aeroporto ou devo ignorar a sua mensagem, riscar o seu nome da minha vida?

 

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

 

 

Os passos soavam nervosos, nítidos, batidos no mármore do chão do café deserto. Dirigiram-se para o local onde isolado, um homem rabiscava sobre a toalha linhas que se cortavam, seguiam paralelas durante um breve espaço, de seguida se afastavam definitivamente no entrecruzado da trama tecida. Lá chegados dispararam de cima de si um extenso rol de razões:

 

- sempre a mesma coisa a escrava que se amole que ande todo o dia numa fona vê lá se te interessa saber que o Deco tem que pôr o aparelho nos dentes que a Italina está com problemas na escola e já fomos chamados ao diretor de turma ainda está por pagar a conta da eletricidade ninguém se lembrou de ir ao supermercado a escrava que vá que ande numa roda-viva dê de comer a horas certas e não se esqueça de nada porque senão ainda lhe caem todos em cima a criticar ai senhor que mal fiz eu para sofrer tudo isto grande pecadora devo ser para merecer tanta raiva dos céus que Deus me perdoe mas este homem dá comigo em doida todo o santo dia metido neste antro sem fazer nada só com os olhos a olhar para ontem e a riscar a toalha da mesa se eu fosse o dono do café punha-te mas era na rua podia ser que assim me ajudasses e ele não perdia nada porque fregueses de gosma como tu são de querer longe da porta quem me mandou ser parva e casar contigo um inútil um sem serventia para nada enquanto as outras anda de cu tremido nos seus automóveis eu aguento que nem uma burra com o trabalho da casa as compras os filhos e esta porcaria de homem que não tem ponta por onde se lhe pegue

 

 

Olhei para a minha mulher, para o seu ar furioso e desanimado, especada na minha frente. Com um amor cuidadoso e lento dobrei o meu drama e recolhi-o dentro de mim. Amanhã, se o tempo o permitir, estarei aqui de novo para, inventando a vida, me afastar desta coisa diária e insidiosa que me corrói.

Até amanhã sonho. Até amanhã vida...

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 11:43

Momentos para inventar o amor

Terça-feira, 07.04.20

 

 

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D - Lágrimas

 

 

Por essa altura terei catorze, não, quinze anos, e ele o cabelo crespo. A pele muito morena, quase para o negro, a mãe desolada, na soleira da porta, encomendar-lhe-á que vá pelo dinheiro ao irmão mais velho. Já não há pão para a noite. Há muito terá perdido o viço. Gastou-o com homens de curta duração. Receberá, em troca, algo sempre demais para eles, nunca o suficiente para ela. Dois filhos com dezoito anos de diferença. O primeiro, o do casamento, ficará com o pai. Fará a sua vida. O segundo, de cabelos mais que tristes, a quem, sabe-se lá porquê, chamarão o Ruivo, fruto de azares, esconderá a humilhação, ao contar-se filho de um príncipe negro de passagem por Lisboa, enquanto a mãe meteria empenhos para o encaixar na Casa Pia e recomendava: não te esqueças de pedir dinheiro ao teu irmão. Serei seu companheiro nesta breve jornada. Com ele aprenderei a dependurar-me nos elétricos, a viajar sem pagar. Emprestar-me-á os jornais sobrantes da venda. Para todos os efeitos é no cais que morará, ainda que possa dormir noutras paragens. Ficarei à porta da vivenda do irmão, na entrada de serviço, por onde ele passará. Irmão ausente, lépida, a cunhada enxotá-lo-á. Não há cá dinheiro para ninguém. Façam pela vida, trabalhem. A moto, na garagem, junto ao lugar do carro desafia-o. Cuidadoso, Ruivo tira-a do descanso, sairá empurrando-a com cautela. Vamos, dir-me-á. A medo sentar-me-ei agarrando-o pelo torso. O estrondo do motor impelirá a moto na via. Terei receio, quase pavor, mas o Ruivo, mal se vendo, deitado sobre o volante, correrá pelas ruas. Desafiará o polícia de trânsito que o mandará parar. Acelera, corre as avenidas, polícia atrás de sirene aberta, limpando-nos paradoxalmente as ruas para maior celeridade. Cada vez mais veloz embica para o Bairro Alto. Cruza as ruas estreitas com ligeireza estonteante. Continuarei assustado a ver as esquinas prolongarem-se contra nós, o polícia a perder terreno até desaparecer e só se ouvir atenuado o estrépito da sirene. Sem perseguidor sairá do bairro. Parará numa cabine telefónica. Bate na caixa, introduz um arame pela ranhura, caem moedas no aparador. Para o pão já chega. Há muitas caixas em Lisboa. Sobra para telefonar ao irmão.

Larguei a mota junto ao quiosque de S. Paulo. Vai buscá-la se quiseres. Nunca mais precisarei do teu dinheiro.

 

- Seria necessário juntar a história desse tal Ruivo? Ele voltará a aparecer na narrativa?

 

- Penso que não, Oblata. Apenas me foi necessário para insinuar o sentimento de estranheza que quero instalado em Cursino. Permito-lhe perder-se pelas memórias que lhe instilo. Descobrirá a diferença e o aviltamento. Faço com que nele cresça uma ideia de contraponto às experiências pessoais. Será levado a perceber como outros vivem, a sentir o gosto das emoções amargas; as lembranças, mesmo se de indiferença, dos próximos; a conhecer a inconformidade. Preciso que escreva a revolta, ou, pelo menos, denuncie as hipocrisias.

- Pensava que esta história seria sobre o amor.

- E não é? O amor e o ódio existem na mesma linha. Um em cada ponta. Fazem, porém, parte do mesmo contínuo. Cada um existe em relação ao outro.

- Queres então dizer que, porque me amas, me odeias? Parece-me absurdo demais para levar a sério.

- Estás a ser demasiado literal. Não te odeio porque te amo, mas porque te amo na nossa relação assoma, por vezes, a presença do ódio. Que é o ciúme mais que um pouco de raiva a deslizar para a afeição?

- Defendes não haver amor sem ciúme?

- Claramente. Se te quero não posso deixar de ter receio de te perder. Por isso odeio tudo quanto pareça poder afastar-te de mim. Não será razoável?

- Nem por sombras. Acredito mais na confiança e no afeto. Não se me afigura que possas fundar a tua narrativa nessa linha.

- Um dia falaremos melhor sobre isso. Agora, o importante é a abertura para aquilo  que passa ao lado, mal nos toca, porque só acontece aos outros. É preciso olhar para fora! Quer creias quer não, até o amor é, em parte, convenção social. É um embuste, um constructo cultural. Não o desejo, pois esse é animal sem freio a quebrar conveniências; nem o afeto, doce orvalho de suaves manhãs. Falo-te do amor como estratégia subterrânea, inconsciente talvez, mas noção férrea da forma correta de nos escolhermos, num lugar e num tempo, acreditando na força da paixão, apenas para nos submetermos aos interesses de uma filiação, de um grupo, e vê lá, sempre com olhos na sucessão e aumento de bens. Olha à tua volta ,Oblata e vai pensando na encenação desta história onde Cursino irá descobrir o outro lado das coisas.

- Ah! Voltamos à profundidade?

-Nem por sombras, apenas roçamos a superfície das águas…

 

Pretensiosamente pretendi chamar a esta história o meu barbeiro. Meditando um pouco perante o ecrã vazio - onde vai o desespero da folha de papel branco à espera da escrita e dos furiosos riscos que inutilizavam início e papel - tive de chegar à conclusão de que:

 

  1. a) não tinha, nem nunca tive um barbeiro fixo, coisa que passarei a explicar mais para diante (se me apetecer ou se o decorrer da história não me levar por outros caminhos) e,

 

  1. b) era demasiada pretensão chamar de minha a qualquer pessoa, ainda que fosse um barbeiro pobre, de revolta suave, a atingir o raiar das lágrimas.

 

Assim, vai a história chamar-se lágrimas, não porque as houvesse na conversa, mas porque, de forma vária, estavam subentendidas numa vida de esforço sem glória nem perspetivas. Há, no entanto, para ajuntar que a culpa desta conversa é da Câmara Municipal, por acaso socialista, partido em que votou o meu barbeiro e agora, com desespero, se arrenega prometendo nunca mais votar em ninguém.

 

É claro que esta prosa corre o risco de transformar-se numa lamúria fora de moda, onde o portuga escrevente – e será só ele? – se desforra da sua consciência infeliz, enforma-a de confissão e nela procura ultrapassar problemas que, por inépcia ou falta de oportunidade, não consegue resolver de outro modo.

 

Dizia o barbeiro, dentro de e voltado para um amplo estaleiro de obras em funcionamento pleno, que a Câmara lhe estava a rebentar com a vida. E ao seu patrão também. Estranha esta preocupação do servente com o dono do estabelecimento. Marx não havia de gostar desta aproximação de classes, embora, se passasse pela barbearia e ao cortar o desgrenhado cabelo, ou a aparar a furiosa barba, ouvisse a história que eu ouvi, pudesse pensar em alterar qualquer coisita na sua obra monumental. Ou, quem sabe, talvez não modificasse nada, porque uma coisa é a mudança encarada do ponto de vista sociológico, outra bem diferente é o drama do indivíduo apanhado nas teias dos volte-faces sociais.

 

Pois é verdade, o patrão da barbearia ficou estarrecido quando, numa segunda-feira, vai para abrir o seu estabelecimento e verifica que todo o largo tinha sido, durante o fim de semana, cercado por imponente paliçada, cheia de anúncios de empresas de construção pedindo desculpas pelo incómodo, clamando que iriam ser breves, que trabalhavam para o bem-estar de todos e ali, do seu esforço e engenho, iria nascer um magnífico parque subterrâneo para automóveis para, de vez, resolver todos os problemas de trânsito daquela muito importante zona da cidade. No entanto, o problema para o dono da barbearia é que não só não tinha qualquer acesso à sua loja, como nem sequer a avistava, tapada que estava com proteções e andaimes. Em desespero balbuciava:

 

- ... mas nunca me disseram nada...

 

e ao pretender entrar teve que dar uma enorme volta para descobrir uma porta, onde foi esbarrar num serventuário negro, interposto à sua frente, mal falante do português, o qual, obstrutivo e repetidor, dizia: -sinhor non. Empresa e Câmara não querer ninguém de fora dentro...

 

 Estupefação transformada em raiva. O sentimento de impotência a subir pelo corpo todo, começando nas mãos, estendendo-se pelos braços, ocupando o peito e um berro a sair e a explodir dentro do coração. Tudo vermelho por fora e por dentro como a ambulância onde o transportaram para o hospital, com um ataque cardíaco, conquistado naquele preciso momento e local.

 

Dizia-me o barbeiro que, ao tomar conhecimento deste triste evento, a Câmara fora companheira impecável. Acorreu em peso em visita ao hospital, acompanhada dos órgãos de informação, para pedir desculpas ao patrão, o qual por acaso não tinha morrido, apenas ficara tolhido dos braços - o que não é de somenos para um barbeiro - prometendo-lhe passagem livre, quando quisesse, para a sua loja, desde que, evidentemente, o estaleiro estivesse aberto, porque como sabe, por causa do ruído não se pode trabalhar à noite, e as máquinas existentes, de valiosas, não podem ficar abandonadas ao sabor das malquerenças de algum energúmeno, além do perigo acrescido ao atravessar um local de obras para alguém desabituado de tais andanças. O senhor bem sabe como são estas coisas dos acidentes na Construção Civil…

 

…O que se tinha passado é que todos os Bancos e Empresas da zona tinham sido avisadas com tempo e a Câmara, que não é descuidada, tivera mesmo reuniões com representantes dessas firmas e quantos problemas -meu Deus!! - não foram resolvidos. Só a questão da garagem do Banco Enfisema fora uma dor de cabeça...mas felizmente tudo se resolvera. Agora, a questão é que no meio de tanto afã, passou despercebida a questão da barbearia. Também, o senhor sabe, é só você e o seu empregado. Aquilo está para ali esquecido a um canto, tem pouco movimento, vocês não se atualizaram e assim, não é que sirva de desculpa, ninguém se lembrou de vos avisar desta coisa...

 

Mas como é que eu vou viver? Tartamudeou, em espanto, o patrão.

 

Pois, pois!  É complicado, disse o Sr. Presidente. Agora não temos solução nenhuma. As coisas estão muito em cima do acontecimento. Teremos de estudar o caso. Mas não se preocupe, dê tempo ao tempo,...algo se há de conseguir...

 

E conseguiu mesmo. Logo ali o patrão teve uma recaída - também quem é que espera que um patrão tenha um tão delicado coração - obrigando à rápida evacuação dos meios de comunicação social, para não perturbar o doente. A câmara de uma televisão independente, a cirandar atrás do presidente, dada ao desplante de filmar despudoradamente todo o episódio, teve o azar de chocar de frente com um homem da segurança, ido a correr chamar o médico - já à cabeceira do doente - ficou toda partidinha no chão. No entanto, como o segurança era homem de boa índole, parou de imediato para ajudar o operador a levantar-se e a recuperar a câmara. O que o desgraçado nunca recuperou foi a cassete sumida ninguém sabe para onde. Coisas....

 

Assim o meu barbeiro refletia em voz alta, dando curso à sua mansa indignação, utilizando-me para psicoterapia.

 

Pois é - dizia ele - por causa destas obras vou agora de férias. O senhor já viu o que é ir de férias no pico do inverno?

 

Tentando amenizar as coisas lá lhe fui dizendo, as férias de inverno têm os seus encantos e méritos. Por exemplo, não se perdia tempo a esperar por um lugar nos restaurantes, era-se mais bem tratado nos hotéis e, para quem gostasse de neve, umas férias na montanha era o que era.

 

Pois sim, ripostou-me. Para mim férias são sempre no mesmo local. Em casa! Como é que quer que eu passe férias noutro lado? Repare, ganho apenas o mínimo nacional, fora as gorjetas, evidentemente,

 

-Já te percebi meu marau.- pensei eu! Estás-te a fazer ao piso...

 

e com isso tenho de pagar a renda do barraco, os remédios da mulher que é doente como o caraças, os transportes, a alimentação e a pouca roupa que vestimos.

 

A raiva desta situação infeliz fez-se sentir na minha nuca. Zás! A navalha a entrar fina, dolorosamente, na minha carne.

 

-Cuidado homem! Ainda me tira um bife do pescoço.

 

- Peço-lhe desculpas...mas quando penso na minha vida dá-me cá uma raiva!

 

Não é que eu não percebesse a razão da sua fúria. Com sessenta anos, sem dinheiro, sem nunca ter sabido o que era um gozo real de férias, dava para rebentar com tudo. No entanto eu não tinha, objetivamente culpa nenhuma desta situação e a navalha, quase tão velha como ele, já tinha com certeza cortado centenas de pescoços (à superfície, é claro) e, valha-me Deus, se algum pertencesse a alguém contaminado com sida? Estremeci. Solícito pergunta-me o barbeiro:

 

- Tem frio? Eu fecho já a porta. Como isto está nem se tem ganho para comprar uma garrafa de gás para o esquentador, quanto mais para o aquecedor.

 

Isso já tinha notado. Levara um duche de água fria ao lavar da cabeça. Como sou pacato e não gosto de levantar questões, nem disse nada. Pensei que o esquentador não tivesse ainda aquecido, no entanto disse-lhe:

 

-Podia ter-me avisado antes. Assim evitaria o frio que passei.

 

Pois é, objetou, o serviço já é tão pouco! Se eu avisar, o cliente não lava a cabeça. E são uns euritos a irem-se à vida. A verdade fica muito cara. Não me posso dar ao luxo de ser verdadeiro. Se agora lhe falo nisto é porque já lavou a cabeça e é o meu último cliente. Quando acabar este cabelo vou fechar as portas, entro de férias e já não volto. Não tenho dinheiro para ser patrão, o dono da barbearia nunca voltará ao ofício e consegui a reforma por causa da artrite. O dinheiro não é muito. Mas com as economias em transportes e roupas, mais umas cabeças que arranje lá pelo bairro, cá me hei de governar.

 

Chegado o serviço ao fim escovou-me as costas, recebeu o dinheiro e a gorjeta, fez-me um sorriso e mal saí, fechou, para sempre, as portas da barbearia.

 

 

Vivia-se ao tempo a euforia construtiva do Sr. Presidente. Pelo sorriso permanente, de alvos dentes em riste, pela mania de mandar azulejar de branco tudo quanto fosse de retretes a estações de metro ou comboios tinha sido Sua Excelência apodado - claro, pela oposição - de Brancolejo.

 

Dizia-se que as sessões na Câmara eram tumultuosas e inúteis. Discutisse-se o que quer que se discutisse, tomassem-se quais decisões fossem, era certo e sabido apenas vingarem aquelas que o Sr. Presidente já trouxesse encasquetadas no bestunto. Era um homem de grande inteireza - diziam os apoiantes - era um burro teimoso - contestavam os outros. O certo porém é o seu mandato ir de vento em popa, assim, como de vento em popa foi o dia da inauguração do parqueamento.

 

O que parecia não ter remédio era a desgraçada barbearia. Para além da disfunção obtida pelo patrão, da compelida reforma do empregado, erguera-se agora, comemorativamente, mesmo em frente da portada, um imponente monumento, a ocultá-la completamente aos passantes, destruindo qualquer possibilidade de o patrão obter trespasse que merecesse a pena. Saído do hospital,  confrontada a Câmara com a possibilidade de um processo em tribunal, a cair mesmo em cheio no período eleitoral, foram convocados sábios consultantes.

 

Arranjassem uma solução – clamou o Sr. Presidente.

 

Assim, no dia da inauguração do parque, entre bombeiros de retoque e desfile, meninas de flor e beijinho, fitas cortadas, discursos como o deveriam ser, tudo ao jeito do antigo regime só com mais populares na corrida, o patrão - agora tetraplégico, de cadeirinha de rodas empurrada por zeloso funcionário da Câmara -, engrossava a fila de convidados importantes e, pasmem, ele que nunca tivera carro, nem poderia agora pretender conduzir, receberia, de modo estatutário, o direito a um lugar de parqueamento vitalício e não endossável…

 

Mas, dir-me-ão, que foi feito do empregado?

 

E perguntam bem porquanto, como todos somos iguais, detentores dos mesmos direitos, não poderemos cometer o feio pecado de falar de presidentes, de bancos, mesmo de barbearias e abandonar, como coisa sem interesse, o destino desse anónimo fazedor das coisas reais.

 

Pois bem, não deixem de ter em conta que falamos de um município, de presidência consabidamente democrática e socialista, onde o povo miúdo é sempre tido na devida conta. Foi assim que no dia da inauguração, impante, garbosamente fardado, dentro de um cubículo de vidro, o meu barbeiro recebera a importante missão de cobrar os pagamentos e passar talões aos utentes do novíssimo parque.

 

A história poderia ficar por aqui, com honra, glória e proveito para todos se, no meio da felicidade do meu barbeiro, não caísse a dúvida cruel de um futuro ameaçado. Não nos podemos esquecer vivermos numa época de grandes, progressivas mudanças e o nosso presidente ser dinâmico, homem de larga visão do futuro. Sobretudo muito viajado. Assim, dissertando sobre melhorias e desenvolvimento, por mero descuido, próximo ao recém-reciclado barbeiro, comentou, para a sua comitiva, que um parque assim tão moderno, dentro de todas as convenções das normas europeias, não ficaria completo sem um atualizado sistema de cobranças e controlos automáticos. Como se fazia lá fora...

 

- “Vocês bem veem, isto de ter uns velhotes caquéticos nas portagens de instalações tão modernas não dá lá muito bom aspeto...”

 

Por isto ter ouvido é que o meu barbeiro, quando lhe fui dar os parabéns pela resolução do problema de emprego, esboçou um esforçado sorriso e disse:

 

- Não sei bem... não sei bem...

 

...deixando que duas pequeninas lágrimas ensombrassem a luz daquele grande dia.

 

 

 

 

 

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 12:29

Momentos para inventar o amor

Sexta-feira, 03.04.20

 

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C  - O bife

 

Encontrarei Valéria, por acaso, no bar. Acompanhada por amigas, sozinha de Elísio. Sentar-me-ei ao balcão, longe dela e do cantor esforçando-se para ser ouvido no meio do ruído dos copos, do vozear a meio tom volvido, por adição, em ensurdecedor contínuo. Pedirei uma cerveja. Sem copo. Por defesa e paranoia beber-se-á pela garrafa para evitar adições mal-intencionadas de drogas ou quaisquer outras causas artificiais de corrosões do espírito. No intervalo das cantigas, revigorar-se-ão as vozes até então mal contidas. E também os movimentos. Essa vaga transportará Valéria. Encalhará um pé na trave do meu banco, oferendo a face ao beijo de proximidade. Dirá gostei do teu conto, mas não entendi porque é que o Bruno teria de se afastar de Líria. É confuso. Percebo que se abandone alguém quando o amor acaba. É natural. Não entendo porque se há de deixar alguém enquanto se ama. À tentativa de explicar-lhe a necessidade de acentuar o efeito dramático responderá com um bocejo de incredulidade. Tal não me parece necessário, dirá, enquanto, apanhada de novo pela corrente, se deixará descair para os lados das casas de banho. Ficará perplexa quando regressar e não me encontrar no bar. Terei descido do balcão decidido a respirar um pouco de ar, livre de fumo. Resolverei não retornar. Saberei que não é tempo de esperar Valéria. Fujo ao encontro. Para mim continuará a ser a mulher de Elísio.

 

Oblata, muito séria, pergunta porque terá o Elísio de afogar-se em vinho?

- Não consegue aceitar a vida sem Valéria.

- Tretas! Romantismo obsoleto. De quantas mulheres poderá ele dispor?

- Para tal teria de estar livre para as aceitar. Não tem, no momento, espaço para tal. A ausência de Valéria atravanca-lhe o horizonte. Não consegue ver mais nada.

- É um completo exagero, Kismet. Podes muito bem aliviar-lhe os traços da depressão.

- Não é depressão. É obsessão. Depressão é aquilo de que Valéria sofre. São praticamente inúteis os seus encontros com o psiquiatra. Ausência de prazer é o veredicto. Algures, no seu cérebro, uma qualquer substância terá deixado de existir ou será produzida em tão pequenas doses que será incapaz de ligar os neurónios adequados. Não acredita que é bela e desejável. Deseja mas não consegue obter satisfação no adquirido. Está sempre à procura de algo que lhe escapa, que parecendo estar aqui, já não está mais e se deslocou para outro lado. Por isso não para. Por tal a inconstância parece ser a sua casa.

- De que cor mais negra pintas a personagem. Por isso te foge o público. Toda a gente está farta de desgraças. Procuram um pouco da felicidade que a vida lhes nega e tu, em lugar de lha proporcionares descarregas-lhe mais neurastenia em cima. És mesmo um caso perdido.

- Ainda não viste nada. Defendo a validade da minha tese. Paixão é diferente de amor. As pessoas confundem tudo. Querem estar eternamente enamoradas. Não percebem que o gasto emocional desse estado é de tal intensidade que, a durar, queimaria a vida de qualquer ser. É preciso um pouco de racionalidade. Convenhamos que a paixão é necessária como primeira aproximação. É preciso que todo o mundo se converta à presença dos amantes. Que nada mais interesse além da proximidade dos dois. Mas, continuasse isto eternamente e onde chegaríamos? Tudo seria delírios e caos. Nem sociedade haveria. Por isso é tão importante matar a paixão.

- E o que fica? O sentimento do dever? O ficamos juntos porque nos comprometemos? Onde é que está o sol que surgia quanto tu chegavas? Não achas troca muito desigual? Retirar a paixão do amor, é isso possível?

 

Elísio telefonar-me-á num momento de sobriedade

Vou deixar esta cidade. Concorri para uma escola na província. Quero afastar-me da vida de Valéria. Sinto que enlouquecerei se o não fizer.

A tua decisão será definitiva?

 Podes crer. Não posso continuar a alimentar este naufrágio. Vou para longe. Para onde o pensamento possa repousar sem o delíquio do que farei se a encontrar, ou o que acontecerá se a vir com outro.

Fugirá da ideia ou será mesmo o ponto final na relação? Não conseguirei dilucidar uma coisa da outra.

Parto definitivamente desta relação. Nem sei mesmo se quererei outra. Para as necessidades chegam as putas. Não dão preocupações. O que queres? Quanto levas? Pagas, desandas e oito dias depois nem te lembras da cara dela.

Tu saberás. Não me parece que a fuga resolva qualquer coisa. No fundo apenas foges de ti e isso, meu amigo, é coisa que nunca conseguirás.

 Vamos ver. De qualquer modo liguei-te para te dizer que não precisarás de ter mais escrúpulos a qualquer relação com Valéria. Eu saio do campo. Entra se quiseres.

 

Sentirei um incómodo terrível. Não saberei como responder a Elísio. Assim, procurando perscrutar os sentimentos de esperança e deceção, sentar-me-ei, ao sol-pôr na esplanada e, de rajada, no modo de esquecer o que me atormenta, escreverei:

 

 

 

Quis-me o autor católico e tímido. Por esses factos, aqui estou, hoje como sempre, sentado na terceira mesa da segunda fila desta esplanada, olhando o pipilar da fonte e os miúdos desnudados, em banhos mais de sol que na contida água.

 

Serei, também, no decorrer do conto, o quanto baste de ingénuo e sonhador. Adequa-se-me a ingenuidade porque, com ela, poderei correr certos riscos e aceitar alguns jogos que de outro modo poderiam passar por estultícia. Calha-me o sonhador em comple­mento desse atributo. Quem se navega pelos fumos da lógica dos sonhos e os antepõe ao que a maioria denomina de real terá toda a conveniência na estruturação de um universo à medida do romântico, que se pretende heroico e não consegue, no seu ser, força bastante.

 

Volto à água. Tomba, por enquanto, entre salpicos de relva. Logo mais, quando a noite quase de surpresa chegar, as luzes do lago acender-se-ão e tornarão mais distantes e imprecisas as árvores do outro lado. Equidistantes do meu ponto de observação ficam as duas esquinas, estas sem nenhumas árvores. Só casas, sem esses breves prenúncios de floresta que resistem no largo, do outro lado. Aquele onde nunca estou.

 

Nas casas das esquinas habitam pessoas e sei de histórias de outras que gostariam de habitar em casas e não o podem fazer. Mas isso são outros contos e, neste o autor não me deixa entrar por esses caminhos. Aliás, como se sabe, é de boa norma delimitar os assuntos e esta é uma narrativa mais ou menos romântica pelo que não deverá perder-se em desinteressantes críticas sociais.

 

Retomemos o rumo certo. A poucos metros, do meu lado direito, fica a Primeira Esquina. Ao centro, comigo dentro, está a esplanada. Alguns metros, para além do meu braço esquerdo, queda-se a Segunda Esquina.

 

Para lá das esquinas nada conheço. Todos quantos as ultrapassam saem do meu ângulo de visão e deixam de ter história. Inexistem. Quem vem da Primeira Esquina aparece sem aviso. A sua presença é impensável até que dobre a esquina e se corporize no súbito de um bico de pé, num passo inacabado obrigando a presumir o anterior, numa sequência posterior de outros que se dirigem ao presente do café, ou até à inexistência, por dobragem da outra esquina. Tudo isto resumindo-se num nada de corpo, numa existência precária, mais movimento ou fulguração que realidade.

 

Eu estou aqui, à espera. No meu estar existe certamente um objetivo, uma necessidade. Aguardo que ela dobre a Primeira Esquina, surja a emoção e se cumpra o determinado.

 

Por isso aqui me encontro, instalado no verão, sentado na terceira mesa da segunda fila da esplanada.

 

 Pelo ardor do corpo e pelo amarfanhado da pele suponho ter voltado da praia. Saboreio a imperial que poderia ter sido mais bem tirada se estivesse colocado na cervejaria. Mas a cervejaria fica lá mais em cima, a meio da avenida, enorme e plana, estendida sem surpresas e sem possibilidade de duas esquinas suficientemente distanciadas para permitir o espaço do cenário e suficientemente próximas para a passagem dela poder ser o campo entre a esperança e aquilo que, não sendo desespero nem frustração, fica no magoado da alma como música melancólica.

 

Não me desagrada, na verdade, ter vindo da praia. Se me fosse possível passaria a maior parte do meu tempo nessa fusão de sal e luz. Que tardes! Quando o saboroso cansaço nos leva a rumar para casa na busca do duche, deixar a salmoura e, antes que o sol se ponha, correr para a esplanada, procurar a mesa conveniente, sentar-me e, bebericando a cerveja, esperar, sem falta, a partir da Primeira Esquina, pedaço a pedaço, o cumprimento da promessa da sua presença.

 

Aparecerá, primeiro, uma das suas pernas, seguida de um braço. Depois a saia leve tendida pelo passo e pela brisa. Num repente solar surgirá de corpo inteiro. As mãos, os cabelos, o peito num balanço cálido de ondas dentro de ondas.

 

Muitas vezes pergunto-me o que será ela para além da esquina. Que fará na vida, fora deste caminho onde cruza o meu olhar? Como nada sei espero o seu avanço até à esplanada e tento adivinhar. Por momentos parece-me saber tudo e desejo que venha sentar-se à minha mesa. Reparo depois que nem sequer sei o seu nome, embora lhe adivinhe os passos e saiba que nunca, por si só, virá sentar-se aqui. Talvez nem sequer pare no café para tomar uma bebida ou fazer um telefonema. Seguir sempre em frente, até à Segunda Esquina, parece ser, imperiosamente, o seu destino.

 

Enquanto os passos a afastam, tento confortar as esperanças caídas. Pergunto-me quantas vezes esperastes por ela e a viste passar, sem um desvio, por pequeno que fosse, entre uma esquina e outra? Esperavas, insensato, que ela viesse ter contigo e sem mais começasse a falar dizendo-te todas as palavras que tu calas? Grande besta sou! Porque raio deveria tal coisa acontecer? Sou católico, mas não espero milagres. Olho para mim e desconforta-me o que vejo. Como esperar então que ela possa ter alguma vez sequer reparado em mim. Ela nem me conhece e não sou tão irresistível que possa tornar-me notado aos olhos de qualquer mulher, apenas por me ter entreolhado. Sou uma boa anedota. Isso é que sou!

 

Além disto, basta olhá-la para sentir a diferença. É perfeita! Nela nada há de destoante. É, verdadeira e meteoricamente, perfeita. O caminho que percorre, só porque o trilha, é mais altar que percurso. Como pensar compartilhar o meu espaço com ela? Tão anódino que sou! Insensatez, meu caro, insensatez. Querias, se calhar, a estrela polar fora da sua rota, mortinha por se instalar ao teu lado!? Não é a mesma coisa? Ai não, não é!! Estás tolinho se não percebes. Então a estrela polar não passa também todos os dias, entre dois limites? Sensivelmente à mesma hora e no mesmo local? E não é bela? E não é presente e inacessível? Os olhos não a seguem, porventura desejando-a? A outra é uma mulher!? Isso que tem? Não são ambas criaturas e igualmente perfeitas?

 

Peço o impossível? Não é esse, porventura, o meu direito? O que está à mão? Qual o merecimento?...

 

Voos… voos inconsequentes é o que fazes. Estás para aí com toda essa filosofia e nem sequer consegues convidá-la para a tua mesa. Aproveita agora. Daqui a pouco ultrapassará o café e atingirá a Segunda Esquina. Força. Um pouco mais e perderás a tua oportunidade. Mais ação. Menos filosofia.

 

Isso queria eu. Ter força para a fazer ficar. Para que o meu desejo fosse o dela. Pois é! Mas eu sou tímido. Nem me serão permitidas certas atuações. Por exemplo, neste momento, apesar da minha vontade e turbação, devo verificar se algum dos circundantes se apercebeu das minhas intenções; se os meus pensamentos se tornaram visíveis, se tomaram voz e gritaram, subitamente, o meu amor, na praça.

 

Olho em volta. Tudo continua como se não tivesse havido tempo. O meu vizinho mais próximo que, quando ela apareceu, começara a levar o copo aos lábios, nem sequer terminou o movimento. Toma agora o primeiro trago. Ela dá outro passo. Na praça o meu olhar é uma súplica. Eu, um desassossego.

 

Antes que outro passo se inicie e o bebedor desça, leve e lento, o copo sobre a mesa, procuro em mim aqueles olhos interiores de tudo sentir e perceber. Os mais completos e clarividentes olhos que ninguém reconhece fora de si e em si ninguém contesta. Iluminado por eles volto-me na direção da Primeira Esquina. Preocupo-me. Se os fechar continuará a haver esquina? Se os fechar continuará a existir o que não sei se existe, do outro lado da esquina? Se os fechar é possível que a esquina desapareça ou não mas quem garante que essa anulação a não arrastará a ela também?

 

De olhos bem abertos sei que nada sabendo dela terei de continuar, até tudo acontecer, aqui sentado, entre duas esquinas, à espera, no, concedo, aprazível local onde situaram a esplanada, desconcertado por me sentir pedaço de coisa nenhuma, títere de um ciclo de existência onde, um dia, acredito, ela terá de vir sentar-se na minha mesa.

 

Se me fosse permitido resolveria este caso rapidamente. Faria com que ela, finalmente, reparasse em mim. Que me olhasse e, nesse olhar, ficasse a saber da minha longa e repetida espera, suspendendo, só por isso a progressão para a Segunda Esquina. Eu avançaria para ela de molde a tolher-lhe o passo. Contar-lhe-ia a minha espera. Um sorriso de compreensão posar-lhe-ia nos lábios. Ver-lhe-ia despontar a emoção por se saber aguardada,  despertar-lhe-ia a reflexão sobre o inexorável de todos os dias passar, à mesma hora, de semelhante modo, no mesmo local, entre duas esquinas, perdendo-se sempre um pouco mais do outro lado, sem a certeza de que no dia seguinte a catástrofe não acontecesse e a Primeira Esquina se toldasse pela sua ausência.

 

Por mim sei. Estarei aqui todos os amanhãs deste verão esperando o seu aparecimento. Dia após dia verei morrer o sol incapaz de a chamar, incapaz de deixar de esperar. Continuarei parado tentando perceber o seu mistério. Além da esquina há possibilidades que me angustiam e a desconfiança de que tudo seja possível e tudo isto tenha um sentido, possua uma coerência. Porque eu sei. Estarei aqui, cada dia mais bronzeado, bebendo a minha cerveja, convicto que, lá mais acima, na cervejaria, seria melhor tirada mas, compreendendo que só neste lugar cumpro o meu papel e me será possível vê-la passar indiferente,  significativa.

 

Como antevia foi o verão passando. O Sol declinava. Ela aparecia na Primeira Esquina. Eu esperava que os seus passos a conduzissem até mim. Ela passava ignorando-me. Eu, desesperado, ansiava o novo dia para que, declinando o Sol, ela de novo aparecesse e eu continuasse a aguardar...

 

 Um dia ela apareceu. Na Esquina. Na Primeira. Trazia qualquer coisa de novo. Seria o ângulo do avanço ou uma subtil transparência de intenções refletidas na biqueira do sapato? Não sei. Apenas me foi percetível, de golpe, a diferença. O dia de hoje não seria como nenhum outro. Era este o dia total, por excelência.. Sobressaltei-me. Algo vai acontecer e não estou preparado. Não sei o que é nem se o desejo. É certo. A minha mansa rebelião tem ensombrado o desempenho do papel que me foi atribuído. É certo. Por vezes sonhei-me outro e quis-me diferente. Mas, por acaso não me esforcei? Não me adaptei e tentei cumprir como quiseram que cumprisse? Não me mantive pacientemente sentado, todo o verão, nesta esplanada, sempre ao fim da tarde? Esperando a mulher que nunca abordarei e me destinaram que aguardasse?

 

Neste momento limite todas as questões são igualmente irrespondíveis. Não há tempo nem vontade. Porque pela derradeira vez ela irá iluminar esta última tarde. Sei que, majestosa, infletirá a costumada marcha no sentido do café. Inicialmente indecisa avançará depois, seguida de olhares e de mim, para o interior. Sei ainda que, agora que posso queimar-me no fogo do seu sol, a tão desejada, a eternamente aguardada, a suma, a inatingível se sentará ao balcão do bar e, ai de mim, com estes ouvidos onde ainda ressoam os roçagares do seu hálito na atmosfera, a irei ouvir, naquela voz adivinhada de pétalas, pedir ao empregado:

 

 

- Dê-me um bife... em SANGUE, se faz favor

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publicado por Carlos Alberto Correia às 20:57