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Momentos para inventar o amor

Terça-feira, 31.03.20

 

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B- Noite Menor

 

 

 

- Boa noite Líria venho dizer-te adeus…

 

Olhou-me e fechou o livro.

 

- Estudava a Lógica…não te podes sentar?

 

Pronto! Lá estava a sua descontração, a mania irritantemente calma de ver os problemas. Para chegar a este ponto tivera de vencer todos os meus românticos e ultrapassados sentimentos. Suponho até que devia ter um ar muito ridículo – ainda hoje me dá raiva pensar nisso – em pé, solene na minha decisão.

 

- É que vinha dizer-te adeus…

- Sim!? E isso impede que te sentes?

- De maneira nenhuma…somente me parecia… (parecia o quê? Iria dizer-lhe que era solenidade?)

- … te parecia?

-Nada! Nada de importância.

- Afinal porque partes? Tão de repente…

 

Sempre hão de existir estas perguntas, estes porquês. Ninguém será capaz de aceitar o movimento dos outros sem perguntar porque se movem. Que poderia dizer-lhe? Que me ia porque não suportava a luz dos olhos dela, a sua calma doce, a maneira como respirava, o modo como olhava, a sombra que os cabelos lhe faziam na testa? Entenderia ela se lho dissesse? Entenderia eu se me quisesse explicar?

 

- Porque mais nada é possível entre nós – acabei por dizer.

 

O coração bum-catrapum a bater, a bater e eu a fixar os olhos dela, aquela luz que abominava, não queria perder e por isso abandonava.

Nem uma lágrima ou uma crispação. Apenas um borrifo de incredulidade e ela a dizer-me:

 

- Tão convencional assim?

 

Como convencional! Não percebo francamente o valor das palavras. Que queria ela dizer nestas? Pergunto-lhe? Não, isso seria demonstrar-lhe que me interessava.

 

- Como querias que fosse?

- Não sei, esperava outra coisa de ti.

- Esperavas? Sabias?

- Nós sempre sabemos umas quantas coisas que não queremos saber e as esquecemos voluntariamente.

- Gostaria de dizer-te qualquer coisa de forte, de desolado, mas não posso.

- Amanhã tenho ponto de filosofia. Penso tirar uma boa nota.

 

Uma viravolta brusca na conversa, eu a morder os dedos, ela a morder o lápis.

 

-É!! (Não sei se disse eu)…

 

Queria voltar à conversa, mas ela fugia-me. Não podia ser assim tão simples. Como é que acabava tão facilmente algo que não podia acabar? E ela nas banalidades, como se o assunto não merecesse interesse, a falar nas suas dores de dentes.

Pensava que iria sofrer, por isso preparei o meu discurso cheio de vantagens no acabar.

 

- Visto que já não estudo mais queres acompanhar-me um pouco por aí?

- Com certeza Líria. ( Ia acrescentar “dar-me-á muito prazer” e não sei porque não o fiz).

 

Lá fora, onde eu ia, onde ela ia, onde nós íamos, era primavera. As minhas mãos iam escrevendo um poema quase solitário, um noturno sem Chopin, alguma coisa que estava comigo, mas que não era, nem podia ser, porque nunca existiria. Era como se eu pudesse cavalgar estrelas ou oferecer uma rosa ao oceano. A primavera, ou ela, iam-me dando uma força para criar (alguém diria destruir) o mundo. O meu sorriso era uma negação.

 

- Tão silencioso …

- Não me apetece falar…

 

De novo não era capaz de sair da mediocridade das palavras. Comunica, gritavam-me as vozes. E eu calado …

 

- Entendi – disse-me ela – E pela primeira vez falou.

 

Também não encontrei solenidade nas palavras. Só vazio.

 -  Deixei de ter para ti mistério e novidade. Quando te conheci compreendi-te e sabia o que arriscava. Joguei conscientemente. Nem sei se perdi...

Como retornando de um sonho... Mas tu vais-te mesmo?

Tinha pensado olhá-la nos olhos, mas no chão havia uma premência magnética.

 

- Nós sempre nos vamos, em algum dia e para alguma parte. Não somos estáticos. A nossa doçura é semeada de lanças e bicos de flechas. Por muito que nos desviemos, algumas nos tocarão.

- Sei que não devo sondar os teus motivos.

 

Uma pergunta camuflada, a maestria das seduções menores.

Um cheiro mais volátil no ar e a vontade de acariciar-lhe os cabelos. Desejo!

 

- Que são motivos, Líria? Alguém os sabe? Que me levou a ti, sabes?

- Não. Não sei.

- Foi o mesmo que nos separa.

- Só eu me revelei. Tu és o mesmo enigma. Não é uma queixa, é uma verdade.

Tens uma maneira reservada de te dares Bruno. Sei que não me enganarei se disser que foste meu sem reservas. No entanto, não te conheço. Será que alguma vez te conheci?

 

Somente eu não seria capaz de explicar sentimentos com palavras.

 

- Não será tarde para andarmos na rua?

- Não, não é. É sempre demasiado cedo para deixarmos de resolver os nossos problemas.

- Porque és tu tão friamente analisadora? Às vezes  não sei se és uma mulher se um cérebro positivo perscrutando o porquê de todos os meus atos.

- Desculpa! Se o fazia, nunca tentei desvendar intencionalmente aquilo que me fechavas.

- Não é isso que me parece...

- Muitas vezes nos enganamos. Pensaste bem na tua decisão?

- Pensei...

 

Aí estava a tentar dominar novamente. Sentia-me bem a falar com ela, com o meu mundo nos modos dela ser, até que isto sucedia e então...

 

- Sabes Líria, acontece-nos quando estamos longe, pensarmos muito em tudo o que deixámos. Os dias e as noites sucedem-se e nós não chegamos a acordar. Sempre no sonho mais lindo embarcados.

- ...

- Não, não é poesia o que te digo. É a verdade que me habita... quando um dia voltamos, tudo é diferente. Não sei se o tempo fez as coisas mudar, se fomos nós que, sonhando, nos afastámos da realidade. O facto é que, quando voltamos, não encontramos o que esperávamos. Sempre voltamos à procura de algo que não existe.

 

- Acontece somente que ainda não partiste. Segundo dizes e porque dizes acredito, vais partir. Isso é futuro e falas-me como se já tivesse acontecido. Não entendo a tua segurança.

- Que sabes tu, que sabemos nós, sobre partida? Há muitos dias que parto de ti, que me afasto de uma maneira lenta e segura. Dói-me mas sabe-me bem.

 

Finalmente falava. As palavras saíam-me saboreadas. Uma sonoridade aberta. Eram livres e cada sílaba vivia. Uma independência que formava um mundo. Vinha de mim esse mundo. Surgia da descoberta de um caminho. Sabia agora que nada era eterno. Todos os amores, todas as lutas eram luzes na demarcação de uma pista.

 

- Queres então dizer que entre nós não há nada, não houve nada? E o amor, afinal?

 

Era mais mulher na sua ansiedade descomposta. Não chegues a chorar. Serei forte enquanto não souberes isso. Não descubras agora, neste momento. Por favor! Tenho de chegar ao fim, tenho que me cumprir.

 

- O amor existe. Vendo bem as coisas eu amo-te…

-…!!

- … mas amar-te não é ficar preso a ti. É viver. Um pássaro numa gaiola, por muito bem que cante, não cumpre as suas asas. Eu sou filho de uma inquietação. Só seguindo o caminho que a cada momento faço e descubro, te poderei amar. Dantes era muito novo para o saber. Tinha egoísmos implantados no coração. Deixei de ser convencional e abri o espírito. Por isso me vou.

- Não seria mais lógico, se me amas, que ficasses comigo? Repara que não te peço nada. Apresento a defesa da minha causa. Não sou tão segura como pretendo. Por dentro sou toda incerteza e pequenos nadas de complicações. Tu és-me necessário para que também me cumpra. No fim, ambos somos egoístas. Um de nós irá perder.

 

Quase podia acrescentar que ela pensava não perder. Para não responder, mandei os olhos vaguear na placa iluminada. Um nome de rua, um nome de mulher e uma voz, incorpórea, vinda de todos os sítios, batendo na luz, ficando no escuro, triste canção que me vivia nos versos de uma praia que o outono tomava nos braços, feitos de marés e brumas.

 

Líria disse-me:

 

- Ouves?...

 

Nada disse, porque dizer seria não sentir. Encostou a cabeça no meu ombro e os cabelos tocaram-me os lábios.

 

- Para quê?

- Será necessário que todos os atos tenham obrigatoriamente um sentido racional? Não poderemos agir por impulsos? Entende-o assim.

- Desculpa…

 

e a vontade de dizer-lhe amor, de a estreitar a mim, dizer-lhe que éramos loucos, que só tínhamos uma vida…

… era aí que estava tudo. Só uma vida, uma vida para a qual não tinha uma explicação, uma coerência. Tentara encontrá-la nela, naquele amor que me surgira, julguei-me quase certo e de orgulho cheio. Um dia, igual a tantos outros de ansiedade, quando nos braços de ambos vogávamos, pensei que tudo estava terminado. Ela era  aquele corpo que vibrava junto de mim. Nada mais tinha. Sempre, pelos tempos do tempo, seríamos uns desconhecidos na ideia fácil de nos conhecermos. Teríamos filhos, dúvidas, discussões e talvez felicidade. Porém a partir daquele momento sabia que a pergunta andaria de novo dentro de mim – “Foi para isto que vim? É pouco, quero mais”. Deixei cair os braços e quando ela estranhou disse que estava doente. Notei a preocupação nascer-lhe nos olhos e fixar-se-lhe no rosto. Quando disse:

 

- Encosta a tua cabeça a mim – senti uma agonia surda e disse-lhe ríspido:

- Preciso de me ir, quero ar. Sinto-me sujo por dentro.

 

Nesse dia ela sofreu e não sei se compreendeu que me começara a perder, porque, no dia seguinte, mais cedo ainda que o habitual, a fui buscar. Era pouco depois do nascer do Sol. Do arrependimento da brusquidão viera-me uma capacidade de compreensão da felicidade tão grande que não me lembro de outro dia como aquele. Parecia que a manhã fora talhada num canteiro de flores. Nunca mais houve outra assim.

 

Depois dele a noite já não era um tempo físico. Havia-a em mim àquela hora. Uma noite completa, sem tréguas, mas que eu reduziria pouco a pouco.  A noite de chegarmos a casa de Líria, vê-la parada no umbral, ainda não acreditando e eu a afastar-me, a afastar-me…

 

… Bruno…! O grito veio-lhe da alma.

 

Julgo que deve ter subido as escadas a chorar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 11:43

Momentos para inventar o amor - A - A profundidade das coisas

Sábado, 28.03.20

 

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Kismet manipula fios. Debruça-se sobre o palco. Oblata segue-lhe os movimentos.

 

- Sempre procurei a profundidade das coisas.

-E encontraste-a, Kismet?

- As coisas, sim; a profundidade não! Pergunto-me se a procura seria correta ou mesmo desejável. As coisas são o que são. De nada serve buscar causas primeiras. A demanda de transcendência promete inalcançáveis, envenena a vida. Entranha desejos. O que é afinal a profundidade se não a distância entre o que se tem e o que se presume alcançar?

- Dizes tudo isso e, no entanto, parece-me nunca teres deixado de a procurá-la. Tem algum nexo esquadrinhar o propósito dos atos quando eles derivam, só e apenas, do necessário, do contingente? Nunca te cansas de estar sempre a fazer o mesmo?

- A fazer o mesmo? Como te enganas. Ainda que assim pareça, nunca o é. Há pequenas coisas que mudam. É o somatório dessas alterações, quase impercetíveis, a causa dos grandes momentos.

- Não diria tal ao ver-te continuadamente nessa posição, mexendo cordéis, fazendo movimentar os bonecos tempos sem conta, até parecerem estar vivos.

 - Supões o contrário?

- Qual é a tua ideia? Então eu não escrevo os argumentos contigo? Não sei que apenas fazem o prescrito? Só lhes concedemos as ações pretendidas.

- Isso é o que pensas ver e saber. Não te apercebes, como eles, do caminho percorrido.

- Ora, ora, queres-me fazer acreditar que os bonecos sentem e reagem ao que os pomos a dizer. Essa não! É demasiado!

 

Kismet embrenha-se mais na manipulação da cruzeta, repuxa fios, provoca movimentos, transmuta a voz, desliga-se da conversa, compenetra-se no articular do fantoche, provoca-lhes a dobragem dos joelhos, o levantar do braço até à cabeça inclinada, induzindo a sensação de alguém mergulhado no mais profundo de si. Oblata, sabendo-se dispensável no momento, abandona o recinto, levanta os panos pretos que rodeiam o pequeno palco, sai pela porta da narrativa, colocando-se, temporariamente, em oblívio.

 

 

Sentir-me-ei meio embriagado de espaço. Verei o sol a baixar no horizonte, o rio a marulhar calmo nas pedras da escadaria. Estarei sentado no murete no lado da coluna da direita do cais, pensar-me-ei lá mais abaixo, no local onde a água beija a pedra, olhando, como sempre o longo do rio. Na ponte passará o tráfego semelhante a manchas deslizantes. Tu chegarás e juro, dar-se-á uma mudança no ar. Coisa subtil, no vértice da perceção. Obrigatoriamente olhar-te-ei. Os sóis de verão ter-te-ão passado pelo corpo, morada de perfeição. Vestirás de branco, em contraste com o moreno da pele, da cor da madeixa, estreitando da frente para trás, ao correr dos cabelos pretos, apanhados no local onde o calor te perlará, de leve transpiração, a nuca. Saberei de imediato. Em ti o destino. Repararás distraidamente em mim. Ao ondular da brisa juntarei a tua mão a resguardar o leve movimento da saia. Virás porém, acompanhada e desatenta. Não poderás adivinhar as consequências deste encontro. Após o primeiro instante desviar-te-ás para os amigos, para conversas onde não estou. O teu nome será Valéria. Poderei compor a antecipação.

 

 

 

 

Kismet enxuga o suor do rosto. Naquele momento a história sofria uma aceleração. Chamou Oblata.

- Preciso de ti. Tenho as mãos ocupadas. Vou fazer entrar novas personagens em cena. Tens as falas contigo?

Oblata procura o guião e resmunga.

- Não gosto do papel do Elísio. Não o acho digno.

- Ora, ora, porque hás de refilar quando o pomos em cena? Repete apenas o papel que lhe destinámos, aquele que permite o prosseguimento da história. Além disso temos de acarrear alguma ênfase dramática para a peça. Combinámos, desde o início da composição do texto que este, por ingrato que fosse, seria o seu papel. Agora é tarde para o mudarmos. Teríamos de alterar o roteiro todo e mesmo as ações e caráter das personagens. E o que ganharíamos com todo esse trabalho? Uma peça melhor? Não o creio, nem sequer tu, posso apostar. Acordámos, desde o início que Elísio teria a mulher possível, não a desejada. Calhou-lhe porque ele estava ali, naquele lugar, naquela situação, naquele momento. Se não lha atribuísse, se a expectativa se gorasse, procuraria certamente alguém mais disponível. Ninguém está para perder muito tempo. Aceita-se o que aparece e colhem-se os melhores frutos. Tudo presta enquanto dura. Depois vai-se à vida, até à próxima e passa muito bem. Telefonas? Provavelmente!

 - Continuo a não gostar desse papel. Além disso parece haver uma certa incongruência. Se vais torná-la a musa de Cursino, se ele a vai ver como o ser excecional a iluminar-lhe a existência, como poderá ela ser tão pouco importante para Elísio?

- É aí que te enganas. Ele apenas parece despegado por defesa, insegurança. Sabe como ela é desejável, adivinhou há muito que não passa de um entreato. Da espera de uma outra coisa ainda por definir. Defende-se aparentando desinteresse, mas morre por dentro no receio de a perder. Porém, quanto mais medo tem, mais parece desprender-se.

- Eu sei, mas não aceito muito bem esse tipo de comportamento. Faze-lo parecer um frouxo e ele não o é. Mais me parece ser tranquilamente desesperado.

- És complicada nos sentimentos. Percebo a tua indignação. No fundo identificas-te com Valéria e repugna-te a inconstância, a traição.

- E não nos assemelhamos um pouco às personagens que criamos? Não sei se devemos continuar a trabalhar neste texto sem algumas alterações. Não gosto de lidar com coisas com as quais me sinto incomodada.

 

Só despertarei o teu interesse à noite, na casa de Elísio. Teremos calcorreado Alfama de ponta a ponta, bebido o suficiente para que o mundo se nos apresente com uma face mais fluida, quase sem problemas. Galhofaremos pelo caminho e cansados demais para irmos para casa, prolongaremos o encontro no quarto de cama de Elísio. Rebentado deitar-me-ei por cima da roupa no seu lugar da cama. Certamente por direito adquirido ao espaço virás estirar-te a meu lado. Poderá o teu gesto ser inocente ou propositado, mas terá consequências. Tocar-me-ás levemente com a mão. Ajeitarás melhor o corpo. A tua lateral cálida ficará encostada a mim. O resto do grupo estará sentado nas bordas da cama ou no chão onde Elísio, pálido, adivinha o a vir. Irás segredar-me, de modo audível, poderemos encontrar-nos amanhã na tua casa? Elísio desmaia. Os amigos correrão a auxiliá-lo. Lançar-te-ão olhares reprovadores e, levado no comprometimento da situação dir-te-ei, nunca me deito com mulheres de amigos.

 

- Revelas a tua preferência por Cursino. Guardas para ele os melhores atos. Deverias ser mais equitativo. Não me parece justo…

- A justiça é uma invenção. Apenas, na maior parte das vezes, para ser referida, ilustrar discursos, manter instituições, na verdade, raramente aplicada. Não há tal coisa na natureza. Vence o mais forte ou o que conseguir um mais elevado números de apoios, o que é ser, de outro modo, o mais forte.

- Isso, isso, o cinismo do criador a surgir à flor das águas. No princípio, antes do verbo, veio o oportunismo.

- Vês como sem quereres me dás razão? O criador é um oportunista. Aproveita-se do material ao seu dispor para, em nome de um qualquer bem quase sempre indemonstrável, fazer o que lhe apetece.

- É assim que te vês?

 

 

Não resisti. Dei-lhe uma bofetada. Ficou a olhar para mim, espantada. A mão, como se não fosse minha, tinha-se levantado, fez um semicírculo no ar. Antes de me aperceber estava-lhe estampada na face, furiosa, enérgica, para de repente, cair como se exausta, certamente envergonhada. Não reconhecia aquela mão. Valéria acariciou os vergões, olhou-me, não disse nada, juntou os seus pertences. Foi-se embora muda, sem uma lágrima, sem voltar a olhar-me. Não sei o que fazer. Desde que ela se deitou na minha cama a teu lado fui possuído por uma vertigem indominável. Logo que todos partiram iniciámos uma discussão que durou o resto da noite e uma boa parte da manhã. Já não tentávamos esclarecer coisa nenhuma. Agredíamo-nos com palavras impensadas, tivessem o peso que tivessem. Ficámos num estado próximo da loucura. Não, não estou a tentar desculpar-me. Sei que não tenho desculpa. Eu próprio não me a concedo. Mas está feito. Queria apenas saber se ela te procurou?

 

Estarás doido ou quê, Elísio? Sabes bem que me recusarei a qualquer encontro. Serei claro, não irei para a cama com a mulher de nenhum amigo. É princípio que defendo. Não o quebrarei por nada deste mundo. Desde aquela noite nunca mais a vi. Irás tentar reconciliar-te?

 

Não faço a mínima ideia. Não sou capaz de encará-la. No fundo espero que ela tome a iniciativa. Isso quereria dizer que me perdoou. Só depois poderei desculpar-me a mim próprio

.

 E se não o fizer?

 

 Nesse caso terá o fim do nosso caminho.

 

 

-Como assim que me vejo? Faço o meu trabalho, Oblata. Desespero por vezes. Lembras-te, quando nos conhecemos? Os meus sonhos de grandeza! Esperava vencer todo o mundo, abandonar o toldozinho de robertos onde, por pancadas e gritos, arrancava as gargalhadas aos putos.

- Se me lembro. Agarraste-me sem cerimónias. Trouxeste-me para o teu sonho. Tornaste-o meu. Era grandiosa a ideia de um teatro de marionetas em tamanho natural. Onde é que isso vai. O tempo tudo mudou. Hoje já nem os mais pequenos se interessam por fantoches. Têm a televisão, os jogos vídeos, os computadores, os telemóveis. São uma juventude tecnológica. Bem se interessam por bonecos movidos por cordéis.

- Assim o sonho se despedaçou. Vamos resistindo apresentando peças para casas meio vazias, com meia dúzia de nostálgicos. Não se vai a parte nenhuma. Tantas vezes pensei desistir. Lembrar-me do poder que já tiveram as marionetas. Como foram tão operantes que, por receio do transmitido, levaram à fogueira o Judeu. Agora, houvera ainda censura e nem se dariam ao trabalho de ler os argumentos. Mas não desisto. Esta peça vai tornar-se um clássico. Tenho a certeza…

- Espero bem que sim. Como vais sair da conversa entre o Elísio e o Cursino?

- Por enquanto fica em suspenso. O Cursino vai publicar um conto num concurso literário de um jornal diário. Ganhará o prémio. Vai subir-lhe a esperança, sentir-se o dono do mundo.

- Como vais chamar a esse conto?

- Considerando o estado de dúvida em que está, entre o cumprimento de um principio ético, o desejo por Valéria, a decisão de não ceder ao desejo e de se afastar, lembrado ainda da noite em que se conheceram, da rapidez com que passou, chamar-lhe-á Noite Menor.

 - Será a narração deste caso?

- Nem por sombras. Considera que a poeticidade se dá quando o reconto ou o desfecho se afastam do esperado. É no desvio que se conta o que não é contado, mas se quer revelar.

“- Porque falas por enigmas… Kismet?

- Talvez porque os resolva todos.”

 

 

.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 19:49