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Textos decetivos – 2   Cada vez mais descartáveis

Domingo, 15.07.18

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Eu sou um tipo ocupado. Olho para a minha agenda e vejo um rol de coisas a que não conseguirei responder. Vejo-me compelido a procurar alternativas. Construo uma hierarquia, forço precedências, desmarco aquilo que me parece menos importante ou me apetece menos e ganho o stress que pensava ter deixado de lado com a chegada à reforma. Procuro, com mais tempo, soluções duráveis que me permitam dispor de maior liberdade para me dedicar, além das obrigações, ao prazer, aos factos lúdicos.

 

Por isso, percebendo o tempo gasto na limpeza da casa, a minha mulher com a agenda tão preenchida quanto eu, a empregada assoberbada com roupas, arrumações, cozinhas e diversos, decidi atualizar-me e ganhar tempo. Comecei por comprar uma mopa elétrica. Aparelho simples. Bateria carregada, movimentos circulo-lineares, um papel aderente que atrai a pequena sujidade e eis que, num ápice, pondo o automatozinho a rodar pelo chão vejo libertos um par de horas, assim, num piscar de olhos. Gostei da experiência e cá em casa todos aplaudiram. Mas havia um senão. Sujidades maiores o R1, como lhe chamámos, não tinha capacidade de remover. Atirava-os para os lados. Mesmo tendo de recolhê-los de vassourinha e pá, já era um adiantamento. Porém, iniciado o caminho, era preciso ir mais longe. Pesquisei o mercado e comprei o R2. Este sim. Reconhecia escadas e não caía, limpava carpetes, sugava toda a sujidade, mesmo nos cantos, com o pincel rotativo, destinado a desalojar conspurcação em defensivo acantonamento, nos recortes da casa. Júbilo geral e a empregada feliz por poder dedicar mais tempo às tarefas de arranjo que mais lhe agradavam.

 

Devo dizer que, entretanto, para poupar tempo, adquiri, passe a publicidade, a amiga Bimby. Aquilo é uma maravilha. Um mínimo de tempo gasto para preparar acepipes culinários, dando até o conforto de, usando a imaginação, produzir pães fabulosos, diferentes de quantos, mal saborosos, carregados de fermento e humidade, os nossos supermercados nos impingem. Todos ficámos encantados e as agendas e trabalhos mais leves. Pois se, para confecionar uma refeição, pouco mais era necessário que carregar em botões e pôr na máquina ingredientes previamente preparados! Estou à espera de que, em breve, apareça um robot que possa fazer as camas, substituir lâmpadas, atender telefones e à porta. Nesse dia, para grande felicidade, a minha agenda e a da minha mulher, certamente não estarão tão carregadas e talvez possa, de vez, dispensar a empregada.

 

Não estavam à espera deste desfecho? Então é porque andam muito distraídos. Prestem lá um pouco de atenção. Não se recordam, aí por volta dos anos noventa, da automatização de fábricas? Eu lembro-me como fiquei maravilhado. O grande momento, já tinha havido outros de menores dimensões, mas apanharam-me distraído, foi quando, em Itália, de visita à empresa-mãe daquela em que eu trabalhava, ao visitar a fábrica e armazéns centrais, fiquei maravilhado com a limpeza, eficiência e cadência de trabalho que observava. Na linha de montagem, eficientes robots colocavam e retiravam módulos e componentes em ritmo impressionante e cronométrico. Os produtos eram, por braços robóticos, retirados do fim de linha, transportados para plataformas rolantes, descarregados em vagonetes automáticas deslizando sobre carris, as quais, mecanicamente, colocariam os produtos nos lugares de armazenamento - também em automatismo travariam de imediato se um gatito se atravessasse na sua frente - e os retirariam, feitas as encomendas, pelas respetivas datas de chegada ao armazém. Para brilhar um pouco faço-me eco do nome da tarefa dado ao trato pelos engenheiros, “first in, first out”. Bonito, não é? Rápido, fácil, limpo, sem erros. O chato é que, por todo o lugar, além do ciciar das máquinas, não havia qualquer outro ruído. Faltavam vozes! Na verdade, naquele amplo recinto, davam-se alvíssaras a quem descobrisse figura humana. Havê-las, havia! Poucas, na verdade, encobertas em gabinetes, junto ao teto da fábrica, debruçadas sobre computadores, de onde dirigiam toda a produção. E os seres humanos que aqui trabalhavam às centenas? Tornaram-se dispensáveis. As máquinas fazem melhor. Não reclamam aumentos, durações de trabalho, não entram em greve e doença, é apenas o tempo rápido de reparação, ou um pouco mais longo, mas sempre breve, de substituição. E, quando se tornam obsoletas, reciclam-se e não pedem reforma. Maravilha! Maravilha! Maravilha!

 

Aqui chegados já vocês estão a dizer, mais um aborrecido passadista a semear distopias. Outros ainda reafirmarão, há sempre gente pronta a entravar o progresso. Efeitos do medo da mudança!

 

Estão porém enganados. Não tenho dúvidas de que a automação veio para ficar. Mais, com a Inteligência Artificial, a dar, afoita, os primeiros passos, a minha empregada, e a maior parte de todos os empregados de quase todos os ramos do fazer humano, dentro de vinte a trinta anos, estarão a mais e já substituídos por máquinas limpinhas e de eficiência mais que provada. Então, perguntarão, para quê esta palinódia?

 

Simples! Aquando da revolução industrial, como esta, inultrapassável e, sem dúvida aceleradora de grandes benefícios para a humanidade, não foram tomadas quaisquer precauções. Em termos históricos, de um dia para o outro, milhares, milhões de seres humanos tornaram-se dispensáveis, pereceram de miséria em casebres e nas ruas. Hoje conhecemos causas e efeitos. Sabemos que o mesmo irá ocorrer dentro de breve tempo e, tanto quanto sei, deixa-se correr o marfim, arrecadam-se lucros e não se acautela o futuro. E era tão simples! Bastava que, por cada máquina assente, se pagasse, em descontos, o mesmo que pagavam os trabalhadores substituídos. Poder-se-ia assim, sem grandes sobressaltos, fazer a alteração civilizacional que se aproxima, ou onde já estamos. Era mesmo tão fácil! Só que, aposto, não vai acontecer. Vamos deixar instalar o descalabro, permitir a instalação do caos, para só então, a preço de sangue, procurar a solução, nesse momento dificílima, que sempre esteve, tão fácil, na nossa frente.

 

Ah! Que chatice! Tenho de pagar o subsídio de férias à empregada. Bolas! Nunca mais comercializam o robot doméstico!

 

 

 

Publicado in “Rosto Online”

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publicado por Carlos Alberto Correia às 16:11

Isto sou eu a dizer…! Textos decetivos - 1

Domingo, 08.07.18

 

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Propalava-se, nos idos de sessenta e oito, “Deus não existe, Marx está morto e eu não me sinto lá muito bem”!

 

E, na verdade, cada vez me sinto pior.

 

Tudo na vida é precário, sabemos, mas há coisas mais precárias que outras, as quais, pelos efeitos de instabilidade aportada, se fazem sentir com maior penosidade no nosso quotidiano.

 

 Na vulgata marxista as sociedades confrontavam-se com duas grandes classes: os detentores dos meios de produção, os capitalista, e os proletários, seres despossuídos de tudo, a quem apenas restava morrer de fome ou alienar a sua força de trabalho, isto é, dispensar tempo de vida, aos primeiros. A lógica da coisa parece inatacável. Se eu tenho meios e preciso de alguma coisa, a qual não sei, não posso ou não curo produzir, parece lícito recorrer a alguém capaz de fazê-la, a troco de um qualquer outro valor. Sem problemas! Estamos perante uma troca. Dou trabalho, recebo bens. É uma equivalência.

 

O problema que Marx levanta é o de tal ser mentira. Ou por outra, defrontamos uma não reciprocidade substancial. Em qualquer altura, por variados motivos, a troca foi desequilibrada. Os meios de produção tornaram-se mais poderosos que o produzido, isto é, o resultado de um fazer ou de um conhecimento. Estava revelado o âmago das desigualdades sociais: existia, surdo, presente em toda a parte, um sistema que as perpetuava, justificava e procurava, continuamente, aprofundar. A forma era simples. Os recursos eram escassos e talvez não fossem suficientemente abundantes para todos requererem o quinhão apetecido. Era pois preciso repartir. Alguém, ou algum grupo, exigia o direito de ser o repartidor. Podia fazê-lo por convencimento dos outros ou pela força. O resultado seria o mesmo. Os repartidores ficariam com a parte de leão, deixando para a maioria apenas os resíduos. Parece monstruoso, desonesto, mas é assim que tem sido e continua a ser, pois, como diz o povo, em bovina aceitação, “quem parte e reparte e não fica com a maior parte, ou é tolo, ou não tem arte”.

 

O termo luta de classes foi criando anticorpos e, mesmo a lógica das sociedades democráticas parece não lhe deixar muito espaço, preferindo conceitos como colaboração para fins comuns, interesse nacional, redistribuição parcelada, etc.. No fim, se analisarmos bem a coisa, trata-se sempre de manter a troca desigual, com a subordinação de um grupo a outro que, com legitimidades diversas, o explora, guardando os frutos do seu labor, distribuindo uma parte, sempre a menor possível, apenas suficiente para o manter produtivo e reprodutor da força de trabalho, isto é,  trabalhar e fazer filhos que o venha substituir na cadeia de produção..

 

E assim, desigualmente viveríamos na paz dos anjos, entre pobres e ricos, contribuindo todos, a seu modo, para a riqueza das nações, como diria Adam Smith e as leis e religiões, a seu modo, consubstanciavam.

 

Porém, o sistema, contém em si o gérmen da sua destruição. A imparável ganância! Não chega ter mais. É preciso aumentar sempre esse mais, é necessário que símbolos externos demonstrem tal poder e que, os insuficientemente providos, acreditem ser possível passar ao grupo dominante, ainda que a realidade crua das suas vidas lhe grite, a todos os segundos, o caminho minado a percorrer e a quase impossibilidade de chegarem vivos ao fim do percurso. Algum conseguem, atiram-me aos olhos os plenos de esperanças. Claro! O sistema deverá ser demonstrativo de tal possibilidade. Assim como o Euromilhões! Quem é que pensa, quando mete o boletim, que as probabilidades de ganhar são de um para cento e quarenta milhões? Qual quê! Então não há sempre alguém que ganha? O que impede que me calhe a mim? Nada, evidentemente, a não ser a parva da estatística que, corroendo o sonho, demonstra ser mais fácil morrermos atingidos por um raio numa trovoada, do que sermos beneficiados por essa lotaria. A esperança é a última coisa a morrer, não é?!

 

Pois, pois, mas o Marxismo está morto e enterrado, entre outras coisas, pela União Soviética. Os tempos são outros. Essa coisa de patrões e proletários é história passada. Hoje vivemos em Democracia, temos acesso a muitos meios de produção, todos poderemos ser donos de qualquer coisa e, a informática mudou muito as forma de relação com os poderes. Verdade, não é? Claro que sim! Temos tanto poder e informação que até sabemos quem foram os causadores da crise, quem a mantém e quem com ela ganhou ou ganha. Até conseguimos saber que são os mesmos que a criaram a ser, na maioria, quem continua a beneficiar do sistema. O problema, com outros conceitos e designações, prossegue o mesmo. A maior parte das pessoas engorda, de muitas formas, um pequeno grupo detentor dos meios de valorizar as coisas. Mudam as moscas…

 

O problema desta ganância infinita é, como já se disse, a sua insanidade. Na ânsia de engolir tudo, irá, mais tarde ou mais cedo, engasgar-se e pode não haver socorro à mão. Por isso voltamos à precariedade. É precária a vida, é precária a riqueza, é precário o poder, é mesmo, cada vez mais precário o planeta em que viajamos. O resultado de toda esta precariedade, aumentada pelo monstruoso aumento de rapacidade dos dominantes, é que, de forma ínvia, a sociedade começa a responder a esta situação. As levas de migrantes, a recusa, por impossibilidade económica e sentimento de insegurança, dos jovens a procriarem, está a levar-nos, em caminho de não retorno, para precipícios inimagináveis. Ninguém nasce revoltado. A revolta é a consequência das injustiças e do desespero. Senhores mandadores, é para aí que estão a empurrar as sociedades. Têm a certeza de quererem mesmo isto, ou se, acontecendo o desastre, irão, como pensam, escapar incólumes? Quem semeia ventos colhe tempestades e a meteorologia social está, há bastante tempo, a difundir avisos urgentes.

 

Cá para mim, sem qualquer velada ameaça, penso que seria melhor dar-lhe, enquanto é tempo, ouvidos e soluções.

 

Isto sou eu a dizer…!

 

 

Publicado in “Rostos Online”

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 21:59