Acordo Ortográfico
Cansado de, no Face Book e em outros locais, explicar as razões porque, embora com reservas, apoio a manutenção do Acordo Ortográfico, decidi render-me.
Não só vou esquecer-me de todos estes anos em que a escola tem andado a preparar as novas gerações para escreverem em concórdia com ele, como nem sequer me vou lembrar de estarmos por mais velhos, a maior parte, biologicamente condenados, restando, nos anos futuros, todas as gerações que escreverão como aprenderam, as quais, se alguma vez tal situação se colocar, não perceberão o que levou a tanta discussão sobre uma forma de escrita que, está-se mesmo a ver, só poderia ser conforme se habituaram a escrever. Provavelmente serão visceralmente contra putativo acordo a ganhar corpo por essa altura…, digo eu!
Irei mesmo mais longe nesta rendição. Serei radical, consequente. Porei, por tanto, de parte todos os acordos e formas de grafia que me antecederam, voltarei à pureza das origens. Espero que os detratores do Acordo me acompanhem nesta cruzada que será absolutamente inequívoca para quem pensa ser a língua um monumento monolítico, fixado de uma vez para sempre.
Ora aqui vai:
“(…) Dom Diego Lopez era mui boo monteiro, e estando hum en sa armada e atemdemdo quamdo verria o porco, ouuyo cantar muita alta huuma molher em cima de huuma pena; e el foy pera la e vio-a seer muy fermosa e muy bem vistida, e namorou-sse logo d’ella muy fortemente e pregumtou-lhe quem era; e ela lhe disse que era huuma molher de muito alto linhagem, e ele lhe disse que pois era molher d’alto linhagem que casaria com ela se ela quisesse, ca ele era senhor d’aquella terra toda; (…)
Ora aqui fica a minha determinação de defesa da pureza e imobilidade da língua. Não voltem, por favor, a vir-me com as asneiras recorrentes e mal-intencionadas de cagado por cágado e de fato por facto. É falso! Já chega! Escrevam como quiserem. Tanto se me dá. Não se submetam, porém, a nenhum exame oficial porque irão chumbar. Não poderão ressalvar “o examinando escreve com ortografia anterior ao Acordo.” Ninguém vos levará a sério, é um risco!
Fiquem bem, satisfeitos e em paz! De acordo?
Publicado em Rostos on line
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A pobreza das crianças?
Diversas instituições, comentadores nacionais e internacionais vêm debatendo o tema anunciado em título. À primeira vista parece ser conceito perfeitamente aceitável, justo. Quem não é tocado pela imagem de uma criança esfomeada, suja, maltrapilha? É preciso ter coração de pedra para assistir ao sofrimento de tão desprotegidos seres. Já Augusto Gil, na Balada da Neve, se comovia e perguntava: “Mas as crianças, Senhor,/ porque lhes dais tanta dor?!…Porque padecem assim?!…”
E, no entanto, sempre que oiço alguém referir-se ao tema, continuando com Augusto Gil,” uma funda turbação/ entra em mim, fica em mim presa.”, porque entre os traços miniaturais dos pezinhos das crianças diviso, lateralmente, passo a passo, rastos mais marcados, mais profundos que, suponho, possam ser feitos pelos pés dos pais das ditas crianças.
Não querendo ser completamento disruptivo sobre o assunto, parece-me estar perante uma sinédoque, um artifício semântico, de tomar a parte pelo todo, ou, por outras mais claras palavras, mandar areia para os olhos de toda a gente. Na verdade, poderá ser problema meu, não consigo distinguir a pobreza das crianças da pobreza dos genitores, da genérica pobreza das ditas classe baixas. Já agora, aproveito para dizer também não entender como, em qualquer país e sobretudo no nosso, pode alguém, com trabalho garantido, continuar com rendimentos que não lhe permitem ultrapassar a linha da miséria. Presumo haver aqui alguma contradição nos termos ou, como se dizia nos meus tempos juvenis, a lógica é uma batata. Mas adiante.
Penso não ser completamente abstruso se afirmar que só há crianças pobres porque os seus pais, quando os têm, o são igualmente. Aqui o problema muda de estatuto e, em vez da misericórdia anunciada, transparece a tentativa de ocultação de inaceitável proposta de manutenção da desigualdade social, a qual, creio, e perdoem-me as almas bem-intencionadas, é o fulcro da questão. Dê-se a sopinha, uns sapatitos, qualquer abafo às crianças e poderemos fazer olhos mortos ao verdadeiro problema. Com a esmola, sabendo não se resolver qualquer problema social, ficam as boas almas de bem consigo e paraíso garantido.
Deixemos pois de edulcorar a realidade. A pobreza é endémica nas sociedades defensoras das desigualdades, mesmo quando recobrem a podridão com o manto da sentimentalidade, das boas obras. A pobreza das crianças só cessará quando os pais tiverem condições de vida dignas. Tudo o mais é conversa para distrair ceguinhos. Tratemos as coisas pelos seus nomes e reafirmemos não haver, na atualidade, qualquer razão para existir pobreza no mundo, a não ser a que provém da ganância, da distribuição injusta do trabalho de cada um de nós. É sabido, um pequeno grupo detém parte substancial de toda a riqueza do mundo. Como lhes chegou? Como a mantém? Porque lhes calhou a eles? Falem sobre isso, meditem, mudem as fórmulas e nunca mais será necessários choramingar sobre a pobreza das crianças.
Termino com a citação de uma quadra, publicada no Diário de Lisboa, salvo erro no suplemento “A Mosca”, da autoria do meu saudoso amigo, companheiro de trabalho e lutas, Severiano Falcão que foi, durante muito tempo, Presidente da Câmara de Loures:
“Nestas festas de Natal
mais em foco nos jornais
dão-se aos filhos, afinal
prendadas roubadas aos pais”
Tenham vergonha! A pobreza não é só das crianças. É de todos nós, por mais dinheiro que tenhamos, enquanto não houver trabalho, inclusão e rendimento justo para todos. E nada disto é impossível!
Publicado em http://www.rostos.pt