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O senhor Subir Lall

Quarta-feira, 29.06.16

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O senhor Subir Lall está a descer. Quis subir muito. Funcionário de organização financeira pensou (certamente ainda pensa) que o facto de fazer parte de um dos organismos implicados no empréstimo a Portugal (o qual está a ser principescamente pago em juros) lhe dá o direito de decidir o que o País poderá/deverá fazer.

 

Por isso, nesta visita periódica de acompanhamento, não se coibiu de, contra o decidido nos órgãos nacionais legítimos, mandar para o ar recados autoritários e austeritários, tais como: baixem o salário mínimo; reduzam mais o funcionalismo público; fora com as 35 horas e aumentem a idade de reforma, deixando implícito, ao mesmo tempo, a respetiva redução dos valores.

 

O senhor Subir Lall é um ponto. De exclamação! Não me recordo de ter votado nele para qualquer cargo político, permitindo-lhe ter voz na condução da vida nacional. Não lhe reconheço, portanto, autoridade para se sobrepor às instituições portuguesas, nem consigo perceber de onde, ao empregado do FMI, vem o poder de se julgar mandatado para mandar nas decisões tomadas por aqueles que nós, para tal, mandatámos.

 

Provavelmente o senhor Subir Lall ainda não se apercebeu que o Governo de Portugal mudou, que já não é o grupo subserviente e agradecido o que agora decide, nem que o NHA (não há alternativa) que tão prestamente voltou a enunciar, por aqui já deu o que tinha a dar e foi substituído pelo muito mais democrático HSA (há sempre alternativa).

 

Parece pois que o senhor Subir Lall não se atualizou, está fora do tempo. Na minha opinião também está fora do espaço. Não é este o lugar onde deva estar, nem as suas atitudes são minimamente aceitáveis. Talvez o Sol e o calor lhe tenham perturbado o raciocínio, talvez só saiba pensar, como burocrata que é, em contas e deve/haver. Talvez não consiga perceber o que é a soberania nacional, se calhar desconhece termos instituições credíveis e se admire por não vivermos em cubatas nem fazermos danças propiciatórias quando ele, que se julga o Grande Senhor, não passa de um vulgar senhor Subir Lall, a exercer as funções que o seu empregador lhe destina. No fundo é só alguém mal-educado a não respeitar poderes e dignidades que lhe são muito superiores. É então, por inábil e míope, digno de dó.

 

Mas o senhor Subir Lall é também cobarde. Não tenham medo de usar a palavra. É mesmo medroso – eu disse medroso, não confundam - pois após arrojar estas atoardas, largadas numa entrevista em meio de comunicação social, fugiu a comparecer na reunião marcada com os Parceiros Sociais. Não justificou a falta! Apenas enviou dois subordinados mais subordinados que ele. Teve medo de ser confrontado com argumentos que destruíssem o seu sagrado não há alternativa. Sabia não ter fundamentos para defender a posição propugnada. Sentiu-se frágil na causa trazida, incapaz de demonstrar a razão que pensa (?) assistir-lhe. O senhor Subir Lall, mais uma vez desceu. Ao nível do incivilizado, do malcriado, do desprezador de quem, em Portugal, país livre e democrático, decide o que fazer, como fazer e quando fazer. Afinal, o senhor Subir Lall não é um ponto. É uma ladeira. Sempre a descer.

 

 

Publicado em Rostos On-line

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publicado por Carlos Alberto Correia às 02:23

Apresentação de Concerto para Sanca João, pela Drª Ana Garrido

Segunda-feira, 06.06.16

 

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Algumas boas razões para gostar deste livro

 

Agradeço a vossa presença. Sinto-me muito feliz por andar a apresentar este romance. Eu digo até por andar em turné. Esta é já a sexta apresentação do livro que faço e farei muitas mais se for oportuno com um grande prazer. Essa satisfação deve-se a duas ordens de razões. As primeiras afetivas: como alguns de vocês saberão, sou amiga do autor há décadas, uma amizade que agradeço aos deuses, e uma outra razão afetiva é sentir-me especialmente ligada a esta narrativa porque tive o privilégio de ir acompanhando a sua realização à medida que cada um dos seus capítulos se ia aprontando.

As outras razões são mais objetivas: em primeiro lugar trata-se de um romance com uma linguagem poderosa, emotiva e criativa, em segundo lugar o livro está povoado de dezenas de histórias interessantes, em terceiro, há um vertente de documento histórico, se o quisermos dizer, pois este livro fala da vida dos Portugueses, e em especial dos que têm agora 50, 60, 70 anos. Toca as nossas vidas. Ler este romance transporta-nos para o modo de vida nos anos 50, 60, 70 (a vida ainda sem televisão, e depois com televisão, os cafés como locais de reunião, os antepassados dos bailes de garagem, o aparecimento do gira-discos, os primeiros concertos de rock, a beatlemania, as pousadas de juventude, os contactos com estrangeiros em viagem que nos falavam de outros modos de ver a guerra e a realidade política portuguesa, a guerra do Vietname os escuteiros, a guerra colonial, a vulgarização da pílula, as leituras políticas às escondidas, a censura, a resistência antifascista em Portugal, o 25 de abril, o PREC. Cada um de nós tem as suas memórias destas décadas.

O que é fantástico é que o narrador tem uma perspetiva privilegiada. Esse horizonte que é o do narrador é uma vista especial, porque há um conhecimento por dentro e de experiências feito. Se conhecermos a biografia do autor não estranharemos que a guerra colonial, o jornalismo, a oposição ao regime sejam vistas por dentro. Concerto para Sanca João junta a vivência com a qualidade estética, o que não é muito comum. Quase apetece dizer numa mão a arma na outra a pena ou a caneta…

 

 

Apresentação do autor

 

Passo à apresentação do autor. O Carlos nasceu em 29 de setembro de 1944. Tem 71 anos, portanto. É natural de Évora. Foi seminarista. Participou na guerra colonial como comandante de um pelotão na Guiné. Regressado à metrópole veio trabalhar para a zona da grande Lisboa. Começou na Publicidade. Depois trabalhou em gestão e administração de grandes empresas entre elas as Construções Técnicas e a Parmalat. Formou-se em Antropologia Social. Foi colaborador em jornais como o Diário Popular e a Capital e Diário de Lisboa. Casou-se em 1982 com a atual mulher, a Fernanda Afonso, uma outra amiga querida aqui presente. Como é muito ativo, em criança tinha a alcunha de O Vitamina, continua a fazer imensas coisas: teatro, dá aulas de antropologia na UTIB, faz comentário político no jornal Rostos.

Este é o seu primeiro romance. Tem publicados (e esgotados) dois livros de poesia, um de 1974 e outro de 1982: Silêncio Mordido e Penélope e Outras Esperas. Porquê um romance 33 anos depois? Porquê este romance? Fui perguntar. 33 anos depois porque embora o projeto estivesse na cabeça, não havia tempo para o realizar enquanto não se aposentou. Esta obra demorou 5 anos a ser escrita. Porquê este romance? Quais as motivações? No dizer do Carlos, pretendeu mostrar como uma geração foi levada à guerra, e como o contraste entre a ideologia que era servida e o que se vivia no terreno acabou por levar a contradições e a virar o cano da espingarda para outro lado. Os cinco anos de escrita resultaram neste livro bem nutrido de 740 páginas.

 

 

O título do livro

 

Não é muito comum um romance chamar-se concerto. Mas não é inédito o contágio dos géneros musicais em títulos de romance. Temos o Fado Alexandrino do Lobo Antunes ou a Balada da Praia dos Cães do José Cardoso Pires.

Este romance que é um grande romance de amor e guerra chama-se Concerto para Sanca João mas podia chamar-se Confrontações e Afetos que é o título de um dos seus capítulos, porque é disso que fala, de lutas e de sentimentos.

Porquê para Sanca João? Sanca João é uma personagem que surge pontualmente no romance, primeiro, no conto que constitui o prólogo, onde tem a função de mensageiro, vem contar a Samba Badji que a aldeia dele, Autacunda, foi atacada pelos militares portugueses e falar dos horrores que lá se passaram, personagem que surge de novo cerca da página 400 para ficar na narrativa apenas o lapso de discurso correspondente a umas escassas duas páginas, já olhado sob a perspetiva do protagonista que é um oficial do exército português. Atacados pela guerrilha local queriam descobrir quem tinha colocado as minas que haviam feito baixas nos seus homens. O facto de este guineense, apesar de torturado, não ceder, e afirmar que a ideia na sua cabeça não irá mudar, mesmo que morra, provoca uma revolução mental e visceral no narrador.

E o primeiro texto do romance que vamos ouvir é precisamente o momento crucial que explica o título. O leitor é um amigo nosso, contador de histórias profissional, José Manuel Paula Santos.

 

Pela tardinha o Toni foi buscar Sanca. Estava preso numa cela improvisada na casa do chefe de posto. Chegou, o braço forte do Toni amparando-o a meia cintura, os pés sem ação, arrastados no chão, toda a cara um inchaço desfigurador. Se não soubesse ser ele, não o reconheceria. O corpo de homem maduro, bem desenhado, tornara-se objeto mole, sem vértebra, dobrado. Toni largou-o à entrada da tenda. Despenhou-se no pavimento. Dos lábios rebentados saiu, rouca, impercetível, a palavra água. Agarro-o pelos ombros para o erguer. É trapo mole incapaz de manter-se ereto. Seguro-o com um pouco mais de firmeza. A pele solta-se do corpo, fica-me colada às mãos. Acrescento mais duas chagas à ferida que já era. O Matias manda o Toni trazer um balde de água. Coloca-o próximo do prisioneiro. Podes beber quanta quiseres. Basta dizer-me de onde vens e para onde levavas o carregamento. Os lábios, literalmente colados pelo pus das feridas, não se abrem. Despeja um pouco da água, Toni. Por cada pergunta não respondida vai fora mais uma quantidade. Se o balde se despejar não torna a encher-se. Voltas para a choça sem água nem comida. Já não lhe batiam. Não havia sítio para tal, nem, no sofrimento onde ia durando, haveria lugar para mais dor. Só a sede tinha importância. Desde que fora amarrado à árvore não bebia. Por isso mal conseguia fazer-se ouvir. Soaram, porém, com a força de terramoto nas minhas certezas, as únicas palavras ditas naquele interrogatório. Sanca não trai companheiros. Tu vais matar-me o corpo, mas não matas a ideia na minha cabeça. Saí enjoado, vomitei na parte de trás da tenda. Nessa noite apanhei a primeira grande bebedeira da guerra.

Capítulo «A ideia na minha cabeça» pp. 414-415

Música: Valsa Lenta

 

Porquê Concerto?

 

Uma das originalidades, das várias originalidades do romance, consiste na ligação de cada um dos capítulos a um trecho musical. Alguns são canções portuguesas, italianas, francesas em voga nos anos cinquenta e sessenta, outros são árias de ópera, outros são canções revolucionárias, já na parte final, correspondente aos anos 70. O nome da peça musical aparece entre parênteses junto ao título do capítulo e no corpo da narrativa nesse capítulo, integrado num evento ou num sentimento de uma personagem. Assim por exemplo La piu bella del mondo uma música de Marino Marini é cantada pelo namorado de Luana que lhe dedica este trecho musical numa festa e é este o subtítulo do capítulo em que este evento ocorre. São esses trechos musicais que temos estado a ouvir, que constituem a primeira banda sonora deste jantar

Para além das múltiplas referências musicais no romance aos Shadows, ao Cliff Richard, aos Beatles, próprias das vivências das personagens, o romance assume-se também no seu título como um tributo e uma homenagem à personagem de Sanca João e simbolicamente a todos os que ela representa, os que sofrem de guerras que não provocaram e pelo seu exemplo nos fazem despertar para mudanças no pensamento e na ação.

 

A estrutura

 

Este romance tem uma estrutura em 4 partes….

O Prólogo é a primeira delas, é uma narrativa de 16 páginas que pode ser tomada como um conto independente. A ação situa-se na Guiné, em dois locais, numa aldeia, e na capital Bissau, o narrador desta narrativa pertenceu a uma das aldeias guineenses atacadas pelos Portugueses, viveu na mesma aldeia que Sanca João… Esta narrativa inicial permite a entrada no romance começando com a perspetiva de um jovem guineense sobre a guerra. Faz-nos olhar a mesma guerra pelo outro lado. Assim, Samba Badji é o primeiro narrador do romance. Com os seus dezasseis anos apresenta-nos a guerra colonial, em toda a sua violência. E não mais aparecerá na narrativa. O jovem que será o protagonista do primeiro capítulo é outro, é um jovem nascido no território da metrópole, como ele diz, pouco antes dos americanos lançarem os cavalos agónicos sobre Hiroxima e Nagasáqui, numa cidade do Sul, que um dia fará parte das forças portuguesas que irão atacar essas aldeias da Guiné. Esse é o protagonista do romance e seu principal narrador.

Depois do Prólogo, o romance apresenta uma série de 19 capítulos que constitui a primeira parte, que tem por título Convergência, e depois uma série de 20 capítulos que constitui a segunda parte, a que o autor chamou Divergência e que se inicia com a partida de Urbano, para a guerra colonial. Os títulos Convergência e Divergência não são inocentes pois estão ligados à atitude do protagonista face à política vigente. Na Convergência assistimos à infância de Urbano, à sua adolescência, à passagem pelo Seminário, pela Mocidade Portuguesa, pelo jornalismo regional, pelo serviço militar, aos seus primeiros amores e sobretudo ao nascimento daquele amor que o irá atirar como voluntário para a guerra na Guiné.

Na Divergência encontramos a experiência da guerra em Cacondo, relatada em duzentas páginas, doze capítulos onde não há só guerra e operações militares (se bem que estas sejam narradas com pormenores muito interessantes) há amizades, um amor que termina, costumes locais, encontros sociais e um amadurecimento político do protagonista que o levará a mudar a sua perspetiva da guerra e o fará passar-se para a oposição ao regime. Nesta terceira parte da obra surgirá um capítulo escrito em poesia, logo a seguir à rutura com Luana, que parece mostrar que nos momentos de trauma e desorientação, a poesia é forma mais capaz de exprimir do que a prosa.

Os outros oito capítulos da Divergência englobam os eventos da vida do protagonista que estão ligados ao jornalismo, à oposição ao regime, ao 25 de abril, ao PREC. É é nesta parte que surgem as referências à luta entre os jornais de Lisboa e a Censura, depois chamada Exame Prévio, e as referências a Coimbra e às lutas estudantis. O nosso leitor vai servir-nos dois excertos do romance relativos a essas lutas.

 

TEXTO

Luto académico

Havia, pelo menos, dois países em Portugal. O das gentes comuns, o maior, e o dos estudantes e intelectuais. O primeiro continuava na vida de privações pensando ser melhor ter pouco a não ter nada, temendo mudanças, convulsões, não querendo meter-se em sarilhos. Aparentava uma calma da qual se poderia duvidar, mas nunca afirmar que não existisse. O segundo vivia em sobressaltos e convulsões. Agravara-se o problema de Coimbra. Decretado luto académico estendeu-se a todas as academias perturbando a tranquilidade de aulas, governantes, famílias. De abril a junho tudo efervescia. Estudantes, apoiados por muitos professores, pelas elites do pensamento, resistiam às ordens dos ministérios. Universidades foram invadidas, reitores desfeiteados ou demitidos, ministros caíram e Coimbra sofreu a ocupação militarizada. Ao recrudescimento da luta, iniciada com pedidos de educação para todos, correspondia o alargamento das palavras de ordem, os apoios clandestinos de outras forças. As centrais de intoxicação do poder respondiam aos desejos de liberdade e igualdade com vagas de boatos. Esses privilegiados queriam era a liberdade de andarem a deitar-se uns com os outros; a igualdade resumia-se ao facto de estudantes de ambos os sexos quererem mijar juntos nas mesmas retretes; as universitárias não passavam, na maior parte, de gajas sem escrúpulos que se prostituíam para arranjar dinheiro para os vestidos, cabeleireiros e noitadas. Muito do bom povinho aceitava estas atoardas, por acreditar ou por vingança social. Por isso propalavam tais aleivosias nas ruas, nas tascas, nos cafés. A coisa cresceu e qualquer família com filha universitária perdia o orgulho dos seus progressos, temia o labéu. Foi tiro nos pés da polícia. Esqueceu-se que, embora revoltados, rapazes e raparigas pertenciam, na maior parte, ao escol apoiante do regime. Ofendidos os pais pressionaram, revoltaram-se, levaram ao anular desta campanha. Mas o mal já estava feito. O fogo do maldizer corria desenfreado e nada trava boato saboroso, interessante. Qualquer mecânico a caminho da oficina, ao passar pelo Conde Redondo, vendo as mulheres da vida no ofício, gargalhando, dizia, lá estão as universitárias a tirar o curso.

 

TEXTO

 

Final da Taça com a Académica

 

Não era de futebóis mas nada me faria faltar à final da Taça de Portugal. Defrontavam-se a Académica e o Benfica. Procedêramos a enorme e secreta mobilização. Escondidos pelas capas os cartazes esperavam o momento de serem exibidos. Aguardávamos essas imagens a passar na televisão. O primeiro desapontamento foi saber que, prevendo desacatos, nem as entidades nem a televisão estariam presentes. Apesar disso, depois do intervalo apareceram os cartazes. Entusiasmados com as palavras de ordem, com a prestação excecional da Académica, levou-se ao rubro o recinto. A honrosa derrota no campo acabou por transformar-se em estrondosa vitória, quando a polícia arremeteu contra manifestantes e espetadores. Fugi à carga, Jamor fora, com o Augusto, o Gaspar e centenas de desconhecidos. A fuga transbordava de alegria. Desse lá por onde desse, desta publicidade o regime não se safava.

 

Finalmente um epílogo de cerca de 20 páginas em que a história se conclui com um novo narrador, pois o protagonista que é simultaneamente o narrador dos capítulos anteriores desapareceu.

 

 O processo narrativo

 

Este romance tem assim três narradores, o do prólogo que é um guineense, suposto inimigo de guerra de Urbano, o da ação central que é o Urbano e o do epílogo, um amigo de Urbano, o Travassos. Muitos outros aspetos do processo narrativo seriam de salientar. Refiro só alguns.

  • No que respeita à ordem (ligação temporal do discurso à diegese) como dizia no outro dia a Fernanda, não deixa de existir um fio cronológico condutor que é o mais importante expediente de ordenação temporal. Mas os episódios vão surgindo também em prolepses, isto é o narrador vai ao futuro buscar um episódio ou uma história e integra-o no fio narrativo, como se fizesse uma laçada. Quando passar de novo nesse episódio, agora já na sequência cronológica, ele será de novo referido mas não haverá repetição de elementos. A forma como os vários episódios vão sendo costurados, os elos de ligação encontrados são, para além da progressão temporal, a da associação de ideias (por exemplo vieram-me à memória outros fatos de banho, dez anos após este dia fazia de novo as malas) ou a ligação a um mesmo espaço (Aquele largo, na quase saída da Cidade velha, com a fonte parada no tempo, parecia ter o condão de marcar encontros surpreendentes; No Pátio, eu estava longe de tudo isto. Foi, durante sete anos, o meu local de refúgio; Sonhos diferentes, noutra camarata mais tardia).  

 

  1. Verifica-se uma profusão incontável de episódios, de histórias e de personagens secundárias, um universo diegético riquíssimo. Se quiséssemos comparar o romance a uma molécula, essas histórias seriam átomos. Um romance, com muitos contos dentro, na sua barriga. A história da leiteira Carminda e do compadre Lagarto, tocador de sanfona e contrabandista, a história de Célia e do seu amante japonês, a história de Augusto e do seu casamento, a história do furriel Metelo, que já a caminho da loucura queria construir uma armadilha para apanhar os inimigos. Há dezenas de histórias de personagens secundárias.Vamos ouvir mais um excerto de uma outra história, a de um caçador de leopardos:

  Tive outros encontros com leopardos. O primeiro, indireto, foi quando fiz amizade com o Khalil. Tinha mais dois anos que eu, nacionalidade libanesa, cristão maronita. Vivia na avenida com a mãe e o pai, entre mais quatro famílias libanesas e uma dúzia de cabo-verdianos, imersos na imensidade de negros animistas ou islâmicos. Dedicava-se à caça grossa. Jiboias, jacarés, leopardos para venda de peles; antílopes, porcos do mato para alimentação e comércio de carne. Viviam bem. A caça era abundante, a concorrência pequena, os preços das peles altos. Por vezes pagavam com custos também elevados a abastança que a mãe natureza proporcionava. O pai Khalil estava paralisado. Sentado numa cadeira de braços, passava os dias no varandim da casa olhando a avenida quase sem ninguém, recebendo os negociantes para o produto do trabalho do filho. Fora ele que lhe ensinara toda a arte da caça. Em tempos atingira boa reputação como caçador. Até ao dia do encontro com aquele leopardo. Avisara o filho para jamais caçar sozinho um leopardo. Aquilo é bicho ruim, com raiva que chegue para matar meio mundo! Leva pelo menos um companheiro com lança. Coloca-te a seu lado. Ele que se baixe e a firme no chão. Encandeia a fera com a luz de caça do capacete. Dispara só quando, por encandeada, parar completamente. Ficarás a saber o momento logo que, em vez de avançar, com uma das garras começar a querer afastar a luz. Aí dispara rápido para o coração, desloca-te logo para outra posição. Se lhe restar sopro de vida saltará para o lugar donde atiraste. Então, se a coisa for bem feita, espetar-se-á na ponta da lança. Eu esqueci-me daquilo que recomendava. Enchi-me demasiado do meu saber. Matei muitos leopardos. Tantos até lhes perder o respeito. Quando naquela tarde me cruzei com ele, decidi abatê-lo. Era demasiado boa presa para deixar escapar. Encontrei-o no meio da picada tão desprotegido que era canja. Disparei. Ainda o tiro não partira, já sabia que fizera asneira. Vi-o cambalear com o impacto. Tornei-me consciente da insensatez do que fizera. Não esperei para ver. Corri a bom correr para a primeira tabanca descoberta. Lá dentro descansei. Estava a beber água quando o teto da cabana desmoronou. Caiu-me em cima a besta-fera. Consegui atravessar-lhe a espingarda na boca. Eu era muito forte. Enlacei-me nele e corri para o exterior. Na frente da porta estava a árvore a que subira para saltar. O sacana era tão esperto como eu. Seguiu-me e decidiu fazer-me pagar o ferimento. Numa luta medonha aproximei-me da árvore, encostei-lhe a coluna ao tronco. Fiz quanta força pude até ouvir o ruído da quebra da coluna do animal. Soou-me como trovão! Caí no chão inconsciente. Levaram-me para o hospital e durante muitos meses as minhas feridas cicatrizavam, voltavam a ser abertas, a serem lavadas, retirados os pelos das garras do leopardo semeados no corpo. Pensei não

 

Com tantas histórias e personagens heterogéneas, o romance pode assim dar conta do social e não apenas do individual.

 

Vamos ouvir o final da história de Carminda e Mestre Lagarto.  

 

Então aconteceu a tempestade. O mensageiro tremia. Tinha assistido a tudo. No frio da manhã, quando Carminda conduzia o seu carro de bilhas de leite, saíra-lhe ao caminho, junto à tasca do Galego, o Lagarto. Jurava que tinha fogo nos olhos e espumava pela boca. O Diabo, vizinhos, o Diabo. Agarrou a Carminda pelo braço e disse-lhe, vais fazer a escolha mais importante da tua vida. Ou és minha, ou de mais ninguém! A Carminda olhou para ele do alto. Só eu sou senhora das minhas escolhas! Se não és minha não és de mais ninguém! Rapou da ponta e mola e cortou-a na garganta. Ficou lá, com a navalha cheia de sangue na mão à espera que alguém tivesse coragem para se aproximar. Ninguém foi capaz. Ainda lá estava quando chegou a polícia. Não resistiu. Parecia até que queria ser preso. Nas minhas memórias vejo a minha mãe a chorar, levar-me para casa enquanto, lentamente, a vizinhança corria para o local do crime. Revejo agora, como não vi ao tempo, o corpo caído no negro do alcatrão, uma boca sangrenta na garganta golfando vermelhos por sobre os alvores da bata e do leite que, em sintonia com a vida da dona, se ia perdendo no solo, saindo aos borbotões das bilhas entornadas. Nunca mais no Pátio, nos bailes que se foram fazendo, voltou a dançar-se ao som da Amapola. 

 

 

Mercê dos avanços e recuos diegéticos e da multiplicidade de histórias e personagens, o leitor não pode deixar-se embalar passivamente pela narrativa. Por vezes é ele que tem que organizar o universo diegético, como num puzzle, mas como disse antes, existe sempre uma progressão cronológica que é organizadora da diegese.

 

Gostaria ainda de referir dois últimos aspetos. O primeiro concerne à perspetiva antropológica do narrador, que analisa os hábitos, os acontecimentos, comentando-os através do crivo científico, embora de forma subtil. O segundo deles será abordado largamente pelo autor na sua comunicação, mas não quero deixar de mencioná-lo porque é um dos aspetos mais interessantes e mais polémicos na análise deste romance. Trata-se da ligação entre o que é ficcionado e a realidade. Quer no que respeita à intriga principal (a história de Urbano criança, seminarista, militar, comando na Guiné, resistente, revolucionário) quer no que respeita às histórias secundárias, há uma ligação muito estreita com o real. O efeito de verosimilhança é intensíssimo. É claro que a experiência direta do autor no seminário, nos cenários de guerra, no PREC, ajuda decisivamente a esse efeito. E acaba por funcionar como uma das maiores virtudes deste romance.

Acabo esta minha intervenção como comecei, obrigada pela vossa atenção

É uma alegria estar aqui hoje.

 

 

 

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 20:32