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A taxa

Sábado, 23.08.14

 

 

Três toques imperativos da campainha estilhaçaram o mormaço da tarde. Acordei sobressaltado da sesta para deparar com o rosto bisonho de um marmanjo de fartos bigodes e fato escuro. Um lenço de papel retirava-lhe da testa as pérolas de suor que a inclemente tarde lhe infligia. Pensando tratar-se de mais um anunciador de evangelhos preparava-me para fechar a porta quando, em gesto imperativo, quase me esfregou nas fuças o cartão de funcionário das finanças.

- Um momento, atirou-me.

- Que deseja, respondi-lhe sem esconder o incómodo e mau humor que me criara.

- Assine aqui com o nome igual ao que tem no Bilhete de Identidade.

- Não assino coisa nenhuma sem saber antes porque o devo fazer.

- Tem razão, concedeu. Está intimado a pagar mil e quinhentos euros na secção de finanças nos próximos oito dias. Caso não o faça a dívida transitará para tribunal para cobrança coerciva.

Espantei-me. Cidadão cumpridor tinha em dia impostos e taxas que o impiedoso governo teimava em mandar-me para cima no afã louco de, empobrecendo-me, enriquecer quem já era rico em demasia.

- Espere lá mil e quinhentos euros a que propósito?

- Taxa de presunção de gozo de férias nas Caraíbas.

- Férias nas Caraíbas? Nunca lá fui e nem sei se penso ir alguma vez.

- Isso não importa. O que interessa é que, se quiser ou puder, tem o caminho livre para tal deslocação. Repare que a Taxa não é sobre a viagem efetiva, mas sobre o seu pressuposto.

- Essa coisa é absurda… Qualquer pessoa só é obrigada a pagar por serviços que utilize.

- Será, será. Mas eu sou apenas um funcionário. Mandam-me fazer e eu cumpro. Estou-me francamente nas tintas se o cidadão vai ou não ao Caribe. É lá com ele. O que não pode negar é que ninguém o impedirá de ir. A taxa incide sobre a possibilidade. Não exige deslocação. Como lhe disse é sobre o pressuposto.

 

Fiquei embasbacado, de papel na mão, a ver o fulano virar-me costas e descer pelas escadas.

 

OK! Ok! Isto nunca aconteceu. É apenas produto de visão retorcida, tripudiando sobre os atos de um governo detestável. Foi apenas uma anedota para ilustrar a estupidez da taxa sobre leitores de música, tabletes, telemóveis e etc..

 

Na realidade, partindo do princípio que qualquer pessoa que compre um destes artefactos é um meliante que vai abusar da cópia pirata, o governo sem mais aquelas, decidiu que todos iriam pagar putativos direitos de autor apenas porque “pressupõe” que quem adquira tais instrumentos poderá vir a usufruir de qualquer bem cultural à revelia dos interesses dos produtores. Não estivera eu tão habituado aos contínuos ataques do governo contra a maioria dos cidadãos e haveria de ficar perplexo por tão profunda preocupação pelos atores culturais quando, é sabido, apenas não pegam numa arma quando ouvem falar de cultura porque tal já não cai nada bem.

 

Então, vendo melhor as coisas, o episódio narrado na primeira parte desta crónica, não sendo verídico, pode bem vir a sê-lo porquanto, no entender destas luminárias, ter a possibilidade significa quase o mesmo que executar o ato e, à cautela, deverá cobrar-se, mesmo que tal nunca venha a realizar-se. Lógicas ministeriais perdidas no sem senso a encher-me os dias de terror. Suponham, os bons exemplos tendem a propagar-se, decidir a justiça que, presumivelmente, eu possa ser ladrão ou assassino. Nesse dia estou feito, nada me salvará. Por amor a tão maravilhosa lógica ainda dou comigo a cumprir pena de prisão por crime que me seja possível cometer… ainda que isso nunca venha a acontecer. Por presunção!

 

Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

 

 

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 13:10

às vezes

Segunda-feira, 04.08.14

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

I

era uma vez um barco

uma memória de fumo

onde cais nenhum marcado

dissimularia a luz

descaída no teu rosto

entre os lábios alinhados

 

II

quando o corpo nasce dia

sempre inocente o domingo

vem bater à minha porta

a gargalhar profecias

 

junto o estrago da memória

torno ao local da esperança

com um silêncio de voz

barco livre de outono

camuflado no cais

 

na linguagem que se acolhe

só se cria o que não há

não é escritor quem se escolhe

nem o que dita a razão

 

mas se houver uma canção

conta-se às vezes no tempo

a memória do teu fumo

entre os lábios alinhados

no corpo da minha porta

 

só ao domingo

cansado

 

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 11:49