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poema de leiria da tarde e de maria

Terça-feira, 29.04.14

 

 

 

I

a porta fechou

as praias são só areias

os países naufragam nos jornais

 

correr correr

e nem sequer é domingo

em que embrulhos se meteu a vida

nas tardes das naus

 

já leiria perdeu os seus pinhais

 

o pintor

em parte incerta

desconhece que a tarde só é tarde

quando dói

 

maria

olha a vida da confeitaria

frente ao hospital

 

ademais

 lembrem-se dos que sofrem

aqui

é proibido buzinar

 

já leiria perdeu os seus pinhais

 

os poente de outono

são das poucas coisas da minha terra

que não têm dono

 

II

 

por sua vez o tejo

encheu-me as unhas com partes de poemas

por isso

quando os lustres se acenderem

vou agarrar-te na alma e correr pelo rossio

após a meia-noite

quando as orações das bruxas

instauram raivas nos centauros

 

desligas o telefone desligando a vida

hoje os faquires vão ao cinema

e amanhã irei à florista perguntar se a cor dos goivos

é a difícil revelação da verdade

 

não haverá janelas que falem

sobre um homem sozinho na cidade

 

evidentemente

à tarde

 

carlos alberto correia

 

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 12:44

desdémona alabastrina

Segunda-feira, 21.04.14

 

 

 Este poema foi escrito quando Otelo se encontrava preso em Caxias, ao ver, na capa de uma revista, o seu perfil olhando a Ponte 25 de Abril, através das grades.

 

 

 

                                  para otelo saraiva de carvalho     

 

 

I

 

desdémona jaz

nos teus braços meu

capitão de mais quentes

marés

ou praias de outros tempos

 

rodeiam-te enclavinhadas piranhas

 

em excessivo gesto de amor

as mãos torneiam a ingénua humidade da vida

pérolas de dedos enegrecidos

no jeito de calar

 

tudo se fazia à escala espontânea de outros rios

cheirava o novo verde até às margens

incómodos cavalos no viço dos tempos

em que tudo era redondo e levado no alcantil dos dias

e o corpo

ruído transitório no vento magoado

era sombra de domingo no frágil dos ombros

 

olha de novo

 

II

 

desdémona jaz

 

esquecida a invenção do protesto

deixa que o olhar só por si se sobrenade

até ao limiar das mãos

 

agora

 

sob a soleira do tempo repousa no prumo do leito

descreve o estático espaço entre grades de olhar

 

que portos tocas

que estonteantes claridades acusas

na procura lancinante dos inícios

 

quem as mãos te conduziu é que te acusa

 

aí estás desdémona de ti todo

onde te colocaram com a memória dos sentimentos

por estrear

 

braveza de tempestade nos trânsitos do espaço

como falar-te de gaivotas quando um corpo jaz

e tu olhas o espelho das mãos distanciadas e breves

onde te perguntas

há coisa mais terrível que olhar por sobre um rio

 

III

 

uma imagem percorre o clarão do raio

a cidade adormecida espera a quietude dos grandes temporais

 

olha a asa que voa

vê essa asa parada

avé ave asa ave

 

e que nos salve

e que nos salve

 

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 22:55

Memórias XVIII – trago um país

Sábado, 12.04.14

 

 

 

 (Gráfico de Pedro Correia)

 

 

trago comigo

um país achado em Portugal

trago um país meu

por final

 

trago comigo um país de mel e poesia

um país de vinho

um país amargo

trago um país que há muito não havia

e que foi encontrado ao largo

 de si mesmo

 

trago um país repartido a esmo

um país vizinho e longe

em vento e tortura abandonado

num país de novo construído

de novo este país foi encontrado

 

levo comigo um país de tempos idos

um país que não volta

sem saudades

trago num sorriso à rédea solta

um país que me fala de verdades

 

digo trigo e pão e primavera

o sol nasce

digo tempo era

e hoje faz-se

o país que em mim trago ousadamente

 

tenho uma pátria trago um país agora

enormemente

 

Lisboa, Primavera de 1974

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publicado por Carlos Alberto Correia às 11:52

O problema é deles?

Sexta-feira, 11.04.14

 

Palavra de honra que não queria acreditar naquilo que os meus ouvidos escutavam. De repente senti-me projetado para um mau filme de ficção científica daqueles em que, após o cataclismo, a terra fica nas mãos de um grupo a viver na opulência enquanto, fora dos muros protetores, o que resta do mundo quase extinto, a maior parte dos seres humanos, vive uma sub-vida. Claro que nesses filmes, no final, tudo se compõe com a destruição dos opressores e a reposição de um governo popular, aberto, democrático.

 

Também que poderia eu pensar de diferente ao ver e ouvir - a mais nova e bem paga reformada do País, ainda por cima com duplo emprego numa terra onde os desempregados e emigrantes arriscam a ser, em pouco tempo, mais que os empregados com algum emprego minimamente decente – dizer de forma despudorada, boca aberta em riso alarve, ar de esplêndida autossatisfação, que se o que resta dos militares que fizeram o 25 de Abril não comparecessem à cerimónia oficial das comemorações, por não lhe ser concedida a palavra naquela que devia ser a Casa do Povo e da Liberdade que eles conquistaram, “o problema era deles”.

 

Para além da raiva e do nojo sentidos por aquela personagem ridícula, pequenina (não me refiro ao tamanho físico), aquela mini-lagarde acintosa, ébria de um poder para o qual não estava obviamente preparada e que ao subir-lhe à cabeça nos faz pensar no velho ditado “se queres conhecer o vilão, mete-lhe a vara na mão”, estarreceu-me a comprovada ingratidão de quem, mais que a maioria, beneficiou do risco e do esforço daqueles que lhe deram a possibilidade das benesses que usufrui e entre elas, não menor, o direito à palavra que agora lhes nega. Seria ingratidão se não fosse, ao assim proceder, deixar claro como os oportunistas e os saudosos do fascismo, aproveitando a distração das gentes – sabiamente ministrada e inculcada por uma comunicação social subserviente aos poderes e pelos ventos europeus – montados no veículo de um suposto neoliberalismo, não procurassem destruir o legado de liberdade dos capitães e soltar novamente a fera fascista, inundando-nos com a sua baba fedorenta, obrigados que foram a esconde-la durante quarenta anos.

 

Estamos pois perante o corolário de uma vingança, arquitetada no decorrer dos anos na cave escura de imundície que são os espíritos impudicos, canalhas, hipócritas, de uma gente a quem nós, impudentemente, deixámos ir conquistando os lugares de poder. Culpa nossa, assumo! Não se pode conviver com víboras, sabíamo-lo e no entanto aninhámo-las no nosso seio, não as privámos do veneno quando lhe vimos surgir os dentes, até, por vezes, achámos alguma graça e agora sofremos, incrédulos, o efeito da peçonha. Sabíamos que isto podia acontecer, fomos descuidados e ingénuos. Eles, sentindo-se agora com força, desmascaram-se, mostram o jogo. Talvez estejam confiantes em demasia. Talvez desconheçam que o local mais calmo do mundo é um paiol de pólvora um segundo antes de rebentar. Talvez não se lembrem da segurança de Maria Antonieta antes da Revolução. Sei lá, pensam certamente muito segura a sua posição. Esqueceram-se da história e de como, os excessos de poder conduzirão, necessariamente, a fins alternativos. Tal como a Economia.

 

No entanto, se a desbragada conversa da senhora, a falta de chá na forma como respondeu aos repórteres, o sentido de vingança contra a Liberdade a transparecer na posição corporal, na quase fuga após ter dado a dentada traiçoeira, nos faz olhar para aquele ser com uma espécie de náusea, não é ela a única culpada. Foi apenas a porta-voz de uma casa onde a maioria quer celebrar um aniversário afastando o aniversariante. É o reino da representação, da mentira, do diz que faz para fazer o contrário, do pequeno artificio palerma de quem pensa os outros destituídos mentais. É o sintoma do desprezo que aqueles eleitos do Povo sentem por quem os elegeu. Hoje a Assembleia da República tenta imitar a assembleia nacional dos idos, pensava eu, tempos dos fascistas. É uma infâmia e um desgosto.

 

Por isso pergunto aos partidos que têm vergonha na cara, que defendem os ideais de abril, se irão estar presentes neste simulacro ofensivo de celebração das liberdades? Melhor fora que não. Que num gesto de orgulhosa honra e defesa da democracia aceitassem a rotura, se recusassem a semelhante jogo. Saiam da Assembleia, não participem no espetáculo apenas montado para dar às gentes uma ilusão da liberdade. Não se tornem cúmplices deste vexame. Um povo com fome, física e de justiça, não é livre. Um povo sem trabalho e cada vez com menos direitos não é livre. Um povo tiranizado pela dívida não é livre. Um povo com tais dirigentes não é livre. Um povo que aceita a afronta sem reagir não é livre. Um povo que permite que os parteiros da liberdade sejam galhofeiramente amordaçados não é livre. Um povo que continue, passivamente, a deixar que tudo isto aconteça não merece a Liberdade. Não senhora presidente da assembleia da república, o problema não é deles, é de todos nós e tenho muitas esperanças de que brevemente possa ser, sobretudo, vosso.

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publicado por Carlos Alberto Correia às 19:55