poema de leiria da tarde e de maria
I
a porta fechou
as praias são só areias
os países naufragam nos jornais
correr correr
e nem sequer é domingo
em que embrulhos se meteu a vida
nas tardes das naus
já leiria perdeu os seus pinhais
o pintor
em parte incerta
desconhece que a tarde só é tarde
quando dói
maria
olha a vida da confeitaria
frente ao hospital
ademais
lembrem-se dos que sofrem
aqui
é proibido buzinar
já leiria perdeu os seus pinhais
os poente de outono
são das poucas coisas da minha terra
que não têm dono
II
por sua vez o tejo
encheu-me as unhas com partes de poemas
por isso
quando os lustres se acenderem
vou agarrar-te na alma e correr pelo rossio
após a meia-noite
quando as orações das bruxas
instauram raivas nos centauros
desligas o telefone desligando a vida
hoje os faquires vão ao cinema
e amanhã irei à florista perguntar se a cor dos goivos
é a difícil revelação da verdade
não haverá janelas que falem
sobre um homem sozinho na cidade
evidentemente
à tarde
carlos alberto correia
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desdémona alabastrina
Este poema foi escrito quando Otelo se encontrava preso em Caxias, ao ver, na capa de uma revista, o seu perfil olhando a Ponte 25 de Abril, através das grades.
para otelo saraiva de carvalho
I
desdémona jaz
nos teus braços meu
capitão de mais quentes
marés
ou praias de outros tempos
rodeiam-te enclavinhadas piranhas
em excessivo gesto de amor
as mãos torneiam a ingénua humidade da vida
pérolas de dedos enegrecidos
no jeito de calar
tudo se fazia à escala espontânea de outros rios
cheirava o novo verde até às margens
incómodos cavalos no viço dos tempos
em que tudo era redondo e levado no alcantil dos dias
e o corpo
ruído transitório no vento magoado
era sombra de domingo no frágil dos ombros
olha de novo
II
desdémona jaz
esquecida a invenção do protesto
deixa que o olhar só por si se sobrenade
até ao limiar das mãos
agora
sob a soleira do tempo repousa no prumo do leito
descreve o estático espaço entre grades de olhar
que portos tocas
que estonteantes claridades acusas
na procura lancinante dos inícios
quem as mãos te conduziu é que te acusa
aí estás desdémona de ti todo
onde te colocaram com a memória dos sentimentos
por estrear
braveza de tempestade nos trânsitos do espaço
como falar-te de gaivotas quando um corpo jaz
e tu olhas o espelho das mãos distanciadas e breves
onde te perguntas
há coisa mais terrível que olhar por sobre um rio
III
uma imagem percorre o clarão do raio
a cidade adormecida espera a quietude dos grandes temporais
olha a asa que voa
vê essa asa parada
avé ave asa ave
e que nos salve
e que nos salve
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Memórias XVIII – trago um país
(Gráfico de Pedro Correia)
trago comigo
um país achado em Portugal
trago um país meu
por final
trago comigo um país de mel e poesia
um país de vinho
um país amargo
trago um país que há muito não havia
e que foi encontrado ao largo
de si mesmo
trago um país repartido a esmo
um país vizinho e longe
em vento e tortura abandonado
num país de novo construído
de novo este país foi encontrado
levo comigo um país de tempos idos
um país que não volta
sem saudades
trago num sorriso à rédea solta
um país que me fala de verdades
digo trigo e pão e primavera
o sol nasce
digo tempo era
e hoje faz-se
o país que em mim trago ousadamente
tenho uma pátria trago um país agora
enormemente
Lisboa, Primavera de 1974
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O problema é deles?
Palavra de honra que não queria acreditar naquilo que os meus ouvidos escutavam. De repente senti-me projetado para um mau filme de ficção científica daqueles em que, após o cataclismo, a terra fica nas mãos de um grupo a viver na opulência enquanto, fora dos muros protetores, o que resta do mundo quase extinto, a maior parte dos seres humanos, vive uma sub-vida. Claro que nesses filmes, no final, tudo se compõe com a destruição dos opressores e a reposição de um governo popular, aberto, democrático.
Também que poderia eu pensar de diferente ao ver e ouvir - a mais nova e bem paga reformada do País, ainda por cima com duplo emprego numa terra onde os desempregados e emigrantes arriscam a ser, em pouco tempo, mais que os empregados com algum emprego minimamente decente – dizer de forma despudorada, boca aberta em riso alarve, ar de esplêndida autossatisfação, que se o que resta dos militares que fizeram o 25 de Abril não comparecessem à cerimónia oficial das comemorações, por não lhe ser concedida a palavra naquela que devia ser a Casa do Povo e da Liberdade que eles conquistaram, “o problema era deles”.
Para além da raiva e do nojo sentidos por aquela personagem ridícula, pequenina (não me refiro ao tamanho físico), aquela mini-lagarde acintosa, ébria de um poder para o qual não estava obviamente preparada e que ao subir-lhe à cabeça nos faz pensar no velho ditado “se queres conhecer o vilão, mete-lhe a vara na mão”, estarreceu-me a comprovada ingratidão de quem, mais que a maioria, beneficiou do risco e do esforço daqueles que lhe deram a possibilidade das benesses que usufrui e entre elas, não menor, o direito à palavra que agora lhes nega. Seria ingratidão se não fosse, ao assim proceder, deixar claro como os oportunistas e os saudosos do fascismo, aproveitando a distração das gentes – sabiamente ministrada e inculcada por uma comunicação social subserviente aos poderes e pelos ventos europeus – montados no veículo de um suposto neoliberalismo, não procurassem destruir o legado de liberdade dos capitães e soltar novamente a fera fascista, inundando-nos com a sua baba fedorenta, obrigados que foram a esconde-la durante quarenta anos.
Estamos pois perante o corolário de uma vingança, arquitetada no decorrer dos anos na cave escura de imundície que são os espíritos impudicos, canalhas, hipócritas, de uma gente a quem nós, impudentemente, deixámos ir conquistando os lugares de poder. Culpa nossa, assumo! Não se pode conviver com víboras, sabíamo-lo e no entanto aninhámo-las no nosso seio, não as privámos do veneno quando lhe vimos surgir os dentes, até, por vezes, achámos alguma graça e agora sofremos, incrédulos, o efeito da peçonha. Sabíamos que isto podia acontecer, fomos descuidados e ingénuos. Eles, sentindo-se agora com força, desmascaram-se, mostram o jogo. Talvez estejam confiantes em demasia. Talvez desconheçam que o local mais calmo do mundo é um paiol de pólvora um segundo antes de rebentar. Talvez não se lembrem da segurança de Maria Antonieta antes da Revolução. Sei lá, pensam certamente muito segura a sua posição. Esqueceram-se da história e de como, os excessos de poder conduzirão, necessariamente, a fins alternativos. Tal como a Economia.
No entanto, se a desbragada conversa da senhora, a falta de chá na forma como respondeu aos repórteres, o sentido de vingança contra a Liberdade a transparecer na posição corporal, na quase fuga após ter dado a dentada traiçoeira, nos faz olhar para aquele ser com uma espécie de náusea, não é ela a única culpada. Foi apenas a porta-voz de uma casa onde a maioria quer celebrar um aniversário afastando o aniversariante. É o reino da representação, da mentira, do diz que faz para fazer o contrário, do pequeno artificio palerma de quem pensa os outros destituídos mentais. É o sintoma do desprezo que aqueles eleitos do Povo sentem por quem os elegeu. Hoje a Assembleia da República tenta imitar a assembleia nacional dos idos, pensava eu, tempos dos fascistas. É uma infâmia e um desgosto.
Por isso pergunto aos partidos que têm vergonha na cara, que defendem os ideais de abril, se irão estar presentes neste simulacro ofensivo de celebração das liberdades? Melhor fora que não. Que num gesto de orgulhosa honra e defesa da democracia aceitassem a rotura, se recusassem a semelhante jogo. Saiam da Assembleia, não participem no espetáculo apenas montado para dar às gentes uma ilusão da liberdade. Não se tornem cúmplices deste vexame. Um povo com fome, física e de justiça, não é livre. Um povo sem trabalho e cada vez com menos direitos não é livre. Um povo tiranizado pela dívida não é livre. Um povo com tais dirigentes não é livre. Um povo que aceita a afronta sem reagir não é livre. Um povo que permite que os parteiros da liberdade sejam galhofeiramente amordaçados não é livre. Um povo que continue, passivamente, a deixar que tudo isto aconteça não merece a Liberdade. Não senhora presidente da assembleia da república, o problema não é deles, é de todos nós e tenho muitas esperanças de que brevemente possa ser, sobretudo, vosso.