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A múmia irrelevante

Quinta-feira, 02.01.14

 

 

Num futuro, que pode ou não haver, debatiam-se os cidadãos com um dilema terrível. Apesar do desenvolvimento tecnológico em todos os capítulos brilhante, o grosso da população vivia cada vez pior e, dada a utilização perversa das palavras utilizadas pela clique governante, tão pouco as pessoas já se conseguiam entender entre si e nem sequer esperavam poder perceber aquilo que o poder queria dizer, quando se dignava dizer alguma coisa.

 

Havia entre as gentes a memória de um tempo mítico em que as palavras possuíam conceitos claros, por vezes mesmo brutais na clareza conceptual que lhes assistiam. Só para dar alguns exemplos, democracia queria dizer o governo de uma maioria, sufragada pelo povo - a quem cabia em ultima instância a soberania - exercida por mandantes que, admire-se, governavam de e para o povo. Também, ao que se julgava, quem trabalhava numa empresa fazia-o com um contrato e com direitos. Não pertencia, como então, à corporação que o encomendara e utilizava exclusivamente ao seu serviço, enquanto a utilidade durasse e se desfaria dele mal alguma disfunção, leve que fosse, se denunciasse. Nesse caso passaria por um processo de requalificação, o que significaria a desativação completa, seguida do aproveitamento das partes ainda operantes, na integração reconstrutiva de um outro produtor otimizado e eficiente. Vivia-se sobre o primado da utilidade reprodutora sendo, obviamente dispensável, quem não satisfizesse tais propósitos.

 

Os Castiçais, exíguo grupo dominante, viviam nos palácios em zonas protegidas, sem qualquer contacto com o exterior, as áreas de produção e habitação dos Fracassados, nome porque era conhecida a maioria da população. Sem que os primeiros se apercebessem, algum erro de algoritmo no “software” dos produtores começou a ganhar relevo. Ele eram os que se negavam a aumentar o ritmo do trabalho que lhes cabia ou mesmo, coisa inaudita, recusarem-se a produzir; eram os que reclamavam que o líquido alimentar era escasso ou de pouca utilidade; outros ainda refilavam porque a qualidade dos tecidos biológicos, empregues na sua construção, eram cada vez mais fraca e menos cuidada. Traduziam-se estas aleivosias num mau estar surdo que se ouvia distintamente nas crescentes disfunções produtivas e sociais.

 

No dia em que um grupo de Fracassados atacou uma comitiva de Castiçais, cevando raivas e frustrações numa violência destrutiva sem precedentes, os mandantes, aterrorizados, perceberam que um rio subterrâneo de revolta corria nas profundezas dos servidores. Tomados de pânico, apercebendo-se de como era frágil a muralha divisória entre os componentes de ambos os grupos, verificando que a força de manutenção de status começava a ser inquinada pela situação e claudicava na utilização da violência necessária para manter “o mundo nos eixos”, decidiram recorrer aos Savantes, casta meio perdida entre dois mundos, para lhe decifrarem o problema e conseguirem a solução que permitisse mudar alguma coisa, para tudo continuar a servir, com acrescidas vantagens, os mesmos.

 

Inquéritos, cogitações, colóquios acalorados e alguns acidentados permitiram perceber que, no passado, existira um poderoso artificio capaz de manter as massas tranquilas, mesmo que alguém lhe estivesse a beber o sangue. Politiquês Retórico, concluíram. Mas, pese embora a sofisticação dos meios e saberes, ninguém dominava já tão esquecido mecanismo. Muitos opinavam mesmo que tal não passaria de lenda mal contada. Era lá possível que, sem porrada nos costados, se fizesse trabalhar a multidão contra os seus próprios interesses? Que sim, era não só possível como provável, certificavam outros exibindo velhos documentos, mostrando a suscetibilidade do ser humano à sugestão, à utilização de divisionismo e comportamentos agonísticos vários, embutidos por um processo que, à boca pequena como se divulgassem segredo queimante ou blasfémia merecedora de ordálio, chamaram “alienação”. Este permitia tornar a natural inteligência em estupidez, a crítica em cega aceitação, a controvérsia em crime. O debate, já dito acérrimo, conduziu à vitória nítida de quantos defendiam a redescoberta do Politiquês Retórico. Mercê do elevado nível de sofisticação tecnológica foi possível, após gigantescos esforços de paleontologia, descobrir o espécime perfeito, um indivíduo da espécie “silveirus algarvensis” de que, sabe-se lá porquê, conservaram cópia do ADN no museu de recordação de espécimes menores.

 

Ressuscitá-lo não foi difícil. Mergulhado em soros, destilado em alambiques, surgiu uma forma humana meio robotizada, com o fácies hirto, incapaz de uma centelha de pensamento original, ou mesmo uma pequena chispa de encadeamento racional. Era, no entanto propenso ao vómito de frases e frases sem fim, ligadas com aparente lógica, movendo ininterruptamente a queixada oblonga, na produção de sons que não querendo dizer absolutamente nada permitiam, a cada um, ouvir aquilo que pretendesse ouvir. Esta função, porém, continha o gérmen de um perigo. Poderia conduzir a interpretações, logo à possível contestação daquilo que esse oráculo propunha. Nada que os engenheiros castiçais não soubessem ou pudessem corrigir. Programando-o para afirmações contraditória e para a irrelevância absoluta das suas proclamações, entronizaram a múmia, deram-lhe um título a condizer com o pretenso alto estatuto em que a colocaram. Todos os anos, com especial relevo para as festas vesperais e de solstícios, colocavam-na em exposição, ligavam o programa, punham-na a badalar para a população sabendo que nada de útil diria. Não obstante seria o suficiente para pôr os exegetas, durante muito, muito tempo, a testarem os conhecimentos de hermenêutica, na tentativa de extrair um mínimo de sentido daquele derrame intestino de palavras, parecidas inócuas, mas extraordinariamente influentes no adormecimento das consciências. Deste modo, pretendiam, atrasar-se-iam as incontornáveis mudanças, cada vez mais urgentes, necessárias para que os denominados Fracassados percebessem sê-lo apenas enquanto deixassem os Castiçais, perfeitamente coadjuvados pela Múmia Irrelevante, instilarem-lhes no pensamento, nos hábitos, no autoconhecimento, as doutrinas venais facilitadoras da boa vida dos mandantes, assente sobre os cadáveres de quantos, não acordando a tempo da hipnose retórica, serviam de escada para eles treparem aos olimpos a que se alcandoraram e dos quais nos mantém, em plena consciência e para benefício próprio, continuamente arredados.

 

Se este reconto se assemelhar a qualquer coisa que os ilustres contemporâneos ousem presumir poderá, ser ou não, mera coincidência.

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publicado por Carlos Alberto Correia às 20:56