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Refundação

Sábado, 03.11.12

 

 

 

Há quanto tempo não via o Belegário. Avistei-o ao longe, do outro lado da rua. Nem parecia o mesmo com quem me tinha encontrado há meia dúzia de meses atrás. Estava mais envelhecido, caminhava curvado, parecia levar o peso do Universo às costas. Fui ter com ele. Homem, bons olhos te vejam, andas desaparecido. Que se passa contigo? Observou -me quase como se fosse transparente. Perdido o olhar em longes interiores, saudou-me quase maquinalmente. Quis saber da sua saúde. Vai andando, vai andando! Tu não estás bem, comentei. Não, não estou nada bem. Que se passa, quis saber.

 

Abriu-se a torneira e um rol de amarguras jorrou, sôfrego, imparável. Olha, estou a refundar-me. Que queres dizer com isso? Em vez de responder perguntou-me há quanto tempo me conheces? Sei lá, vai para lá de um ror de anos. Alguma vês me viste desesperado com qualquer acontecimento? Não, Belegário. Sempre foste uma força da natureza, um verdadeiro tornado. Por isso estranho o teu abatimento. Não é teu hábito. És mais de revolta que de acatamento. Pois era. Pois era! E não vai lá muito tempo. Só que agora me encontro perante uma tão grande impotência que a revolta se esgotou e só ficou o desânimo. Tantos anos de trabalho, de respeito para com as leis, para com as pessoas, cumprindo, cumprido sempre obrigações e normas, sendo um cidadão exemplar para agora, de uma assentada, sentir ter sido unicamente um estúpido que andou a ser papado por tanso durante toda a vida.

 

Incomodou-me tanta amargura, tanto desespero. Ainda por cima no aguerrido Belegário, sempre pronto para uma boa luta, para qualquer contestação. É pá! Não sei o que se passa contigo mas tem calma. Nada, de bem ou mal, dura muito na vida. Tudo passa. É só uma questão de tempo. Receio, volveu-me, que o tempo que me resta não chegue para assistir a essa mudança. Estás doente, preocupei-me. Não do corpo. Estou enfermo da alma, dói-me a desesperança e a carteira. Comecei a perceber o problema do meu velho amigo. Resquícios do troikismo governamental? De que maneira, de que maneira. Mas Belegário, tu tinhas uma vida tão equilibrada. Às vezes até parecias um cronómetro por tanta precisão no comedimento das tuas despesas. Orgulhava-me disso, podes ter a certeza, mas, agora, por mais voltas que dê tenho sempre mais mês que dinheiro. Enumerado, pelos dedos da mão, começaram a brotar os ataques assassinos com que os sucessivos programas de austeridade lhe iam destruindo a vida.

Primeiro foi o aumento do IRS. Não achei mal. Porque é que um reformado não deveria pagar o mesmo imposto que um ativo com o mesmo rendimento. Era justo. Era equitativo. Depois, consideraram a reforma, para a qual descontei generosamente toda a vida, como excessiva e congelaram-na, bem como a da minha mulher. Esqueceram-se certamente que ela era um acordo entre dois contraentes. Eu honrei sempre a minha parte. O governo, abusadoramente, não. Se uma companhia de seguros me fizesse isso, eu teria recurso aos tribunais e, por lenta e má que seja a nossa justiça, acabaria por ganhar a causa e ser indemnizado. Com este estado ladrão ainda fui enxovalhado com a suspeita de estar a ser um chulo do estado. Cortaram-me, como sabes, meio subsídio, deixando no ar a suspeita que a seguir comeriam os dois. Comecei a ficar piurço e a ter de ajustar um pouco a minha vida. A minha mulher tem uma doença crónica e, pelos vistos, eu era demasiado rico para receber qualquer apoio. Retiraram-lhes as isenções de pagamento. Cabia-me o papel não só de suportar as suas incompetências como, sacrificando os meus parâmetros de vida, permitir o sustento e, por certo, o melhoramento dos seus e dos patrões da finança de quem são obtusos servidores. Agora avizinha-se um ataque ainda mais feroz ao pouco que nos resta. Apesar de tudo eu ainda aguentaria isto. Só que, para a desgraça ser completa, o meu filho ficou desempregado. Falência da empresa. Com o ordenado da mulher não conseguia aguentar a casa, nem as despesas com a filha, a tirar um curso de arquitetura, pelos vistos com saída para o desemprego. Venderam o automóvel por tuta e meia, entregaram a casa ao banco e vieram viver connosco. Coabitamos agora em aglomeração; a miúda a dormir no sofá da sala, desesperada pela falta de espaço para lazer e trabalho; incomodando-nos pela diferença de ritmos e ocupação de espaço; criando azedumes, tornando a solidariedade natural numa obrigação difícil de oferecer, dolorosa de aceitar. Em suma, estou desesperado. E quando pensava que nada mais de pior poderia suceder aparece-me este grupo de harpias, a que chamam governo, a anunciar - por terem falhado todos os objetivos pelos quais nos sacrificaram - maiores e mais profundos sofrimentos. Ademais, quando o desespero apoquenta milhares de famílias como a minha, aparece um bonifrate da banca, rilhando os caninos vampíricos de satisfação, a afirmar, delambido e feroz, que o povo ainda aguenta, aguenta, muitos e mais sacrifícios. Em suma, estou desesperado e falho de alternativa. Sinto-me perante um muro intransponível. Por isso, segundo a nova pretensão governamental, estou a refundar a minha vida. Ou por outra a reafundá-la. Por mim sinto que já pouco posso fazer. Faltam-me forças e tempo. Mas sabes, ontem a minha neta veio perguntar-me como é que se fabrica um” cocktail “molotov.

 

 

Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

 

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 13:42

tema de solidão IX

Sexta-feira, 02.11.12

 

 

 

por vezes escrevo

como quem luta

outras

como quem disfruta

do modo

da conduta

 

o importante é agarrar

a frase o lento murmurar

por dentro da palavra

 

o importante é descobrir

o senso que oculta

 

porque conhecer é desconhecer inicialmente

o resto é a semente

com que se emprenha o futuro

 

às vezes a palavra tem um muro

onde se esconde deusa refratária

 

contra a palavra invisto

nesse tempo

a palavra é um silêncio

que se recusa

e contra mim atenta

 

outras vezes desliza

é fio de água

ribeiro a correr nos roseirais

onde os peixes passam

átomos originais

 

assim a palavra se revela

se obstina ou se rebela

criando esta tensão

que me percorre

no silêncio ou no grito

em que se morre

 

palavra cujo império é a palavra

edifício construído sobre o nada

que é o ar a sílaba modulada

 

assim entendo o meu campo

a minha lavra

como lavrador me angustio

se o tempo não convém

à sementeira

 

mas sempre no inverno

ao som do frio

no meio da solidão onde me ostento

ponho as minhas palavras

na fogueira

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 13:30