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Retratos

Sexta-feira, 04.05.12

 

1 – Amargo Pingo Doce

 

É boa regra sociológica desconfiar de todo o ato social que parecendo ser absolutamente transparente e não podendo ser coisa diferente do que aparenta ser, é, necessariamente, outra coisa. Posta esta chamada de atenção vejamos da sua pertinência em relação ao assunto dos descontos fenomenais do Pingo Doce.

 

Comecemos por desfazer um grande equívoco. O negócio principal das grandes distribuidoras não é, como qualquer afirmará com completa certeza, a distribuição e venda de bens de consumo. Essas transações são o veículo propiciatório do verdadeiro negócio, o qual é mais escondido que aquilo que essas empresas permitem que se saiba. O seu provado trato centra-se no que os economistas chamam a rotação do capital, não sendo isto mais que o tempo diferencial entre a entrada de capital (no momento da efetivação da compra) e a obrigação de pagamento aos fornecedores que pode variar de trinta a cento e oitenta dias. Neste dilatado prazo a empresa, recebedora desses grossos capitais, procura investimentos financeiros de curto e médio prazo, onde perfaz o seu verdadeiro lucro. Podem portanto as grandes superfícies vender bens abaixo do preço de custo - só o não fazem por proibição legal - porquanto recuperarão esses aparentes prejuízos comerciais com os lucros acrescido, mais compensadores, dos benefícios financeiros. Percebido este mecanismo, fácil será reconhecer a enorme falácia contida na estratégia dos cinquenta por cento de desconto nas compras do 1º de maio.

 

Para quem esteja distraído ou vá na canção dos representantes da empresa que vêm, com voz de sereia, falar na ajuda aos consumidores e na sua função social, pensem quantos milhões entraram nesse dia nos cofres dos supermercados e quantas aplicações, altamente lucrativas, essa enorme quantidade de dinheiro irá proporcionar. Missões destas, preocupações sociais assim, que enchem os bolsos de dinheiro, também eu queria!

 

No entanto a análise do evento não deve ficar por aqui. Recomendo, a quem possa, rever as declarações de Pacheco Pereira, na última quarta-feira, no programa “A Quadratura do Círculo”. Muito sumariamente dizia ele que o que ali se viu foi a necessidade e a humilhação. Bem poderiam, quanto a mim de forma quixotesca, os partidos de esquerda recomendar o boicote a essa promoção. Só o executaria quem estivesse acima das necessidades da maior parte do nosso povo. As suas grandes preocupações estão já ao nível da sobrevivência e esse é valor que, para a maior parte das pessoas e das famílias, sempre superará convicções políticas ou religiosas. Tenho pena, mas é mesmo assim. Continuando com Pacheco Pereira que, quando não está movido por ventos partidários é um grande sociólogo, referia-se ao significado simbólico – quer do desconto, quer do dia – exemplificando com o que se passaria se essa empresa decidisse fazer um desconto sobre a carne na sexta-feira santa… Pensem o rebuliço que tal daria e como, mesmo os católicos, movidos por necessidade, mandariam às urtigas os mandamentos da igreja e sacariam até ao último bofe as carnes em exposição.

 

Foi pois o retrato de um povo com fome, com medo e disposto ao último sacrifício, por mais uns dias de comida, aquilo que nos foi dado ver. É lícito que não gostemos. A frieza das câmaras destruiu o que ainda restava de imagem complacente de nós. Foi a isto que chegámos, foi a isto que nos deixámos levar. Não estamos totalmente inocentes. Ninguém está! Deixámos que acontecesse e, irá acontecendo até que a ganância, descuidando o limite em que a submissão se torna revolta, não nos deixe outro caminho que não a sublevação. Para lá caminharemos se nada for feito para o evitar.

 

2 – União de Leiria

Não sou de futebóis. Uma ligeira simpatia pelos encarnados, algum seguimento da seleção, sobretudo quando ganha, e pouco mais. Por isso, que me lembre, nunca me saiu texto a propósito de tal matéria. No entanto, tudo tem uma primeira vez e, agora, por razões que ao futebol transcendem, cá estou, de pena castigadora, a indignar-me com um senhor que dá pelo título de Presidente do União. É ele o caso de algumas desavergonhadas afirmações te tal indivíduo. Como todos sabem a maior parte da equipa demitiu-se por ter entre quatro a cinco meses de vencimentos em atraso. Nisto não fez mais que exercer um direito, afirmado em toda a legislação de poder rescindir contratos que não sejam honrados. Mais claramente afirma-se que qualquer trabalhador por conta de outrem – o caso destes futebolistas – terem o direito de rescisão quando tiverem dois meses de salário em atraso. Ora o dito presidente, incapaz de honrar os compromissos assumidos, sem moral para perceber o seu quanto sem razão, pensando apenas nos prejuízos do seu prestígio e do seu clube, como bom patrão, apesar de estar em absoluto incumprimento, tem a distinta lata de vir a público ameaçar com sanções e tribunais quem apenas se atreveu a exercer um dos seus liminares direitos.

 

Não passaria isto de nota de pé de página se não se compaginasse com o sistemático ataque aos direitos dos trabalhadores que surge galopante, a partir do poder constituído, considerando direitos como regalias incomensuráveis. Mais um retrato do nosso tempo iníquo e que teremos, com brevidade de reverter. Ao descalabro anunciado por estes "factótum", confiamos que alguma luz venha, na Europa, a despontar.

 

Até lá, aguardo que estes maus fotógrafos,  reveladores de uma realidade abstrusa, vão ganhando alguma contenção e vergonha.

 

Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 14:44