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Um bagaço por Abril

Quarta-feira, 25.04.12

 

Sentia-me mal. Ouvira há pouco a notícia da morte do meu camarada Miguel Portas, num hospital de Antuérpia e acabara de ler um belíssimo e sentido texto, “Isto irá” do Rui Tavares, de homenagem ao Miguel. Pensava no breve da vida e na sua enorme fragilidade como é hábito quando nos confrontamos com a perda de alguém que nos é importante. Meditava sobre a injustiça da morte sentindo que justiça é apenas um conceito humano e civilizacional, que o universo se está marimbando para as nossas crenças e desejos.

 

Foi nesta disposição que entrei no café.

 

Estava a rebentar pelas costuras. Um "fru-á-á" de véspera de grandes dias tomava a quase multidão. Não havia mesa vaga. Dirigi-me ao balcão para pedir a bica. Ao meu lado, um senhor na casa dos oitenta, anafado, com ar de menino, depois de olhar, desconfiado, para todos os lados, pediu uma bica e um bagaço. A empregada, com um sorriso de amizade, serviu o cavalheiro. Este agarrou no cálice, mirou o líquido transparente enquanto, com um muxoxo, reverencialmente o levava aos lábios, murmurando, de modo quase inaudível, vinte e cinco de abril, sempre.

 

Pousou apressado o cálice e tomou um gole de café. Revolveu-o umas quantas vezes na boca como para lavar vestígios do bagaço. Mal empregados esforços porque, da casa de banho, célere como tempestade, uma senhora, visivelmente a esposa do celebrante, invetivava-o de alma e coração. Encolheu-se o conjuntural vizinho tartamudeando explicações inacabadas. A senhora, visivelmente irritada, chamava agora a atenção da empregada, revelando convivência próxima, para o facto de ter servido ao marido a bebida proibida. Sei que, por sua desgraça, lhe cabe aqui o papel antipático. Sabe-se lá que recomendações médicas ou incidentes de saúde ladeavam a sua preocupação com a saúde do marido. Muito provavelmente a sua rispidez teria apenas a medida do seu susto. Mas que querem, o momento na sua imprevisível sabedoria, atirou-a para este papel de destrambelhada censora. Como acima referimos a vida nem sempre é justa!

 

Pois, enquanto o triálogo decorria, com a empregada, já agastada, a dizer que não tinha de ser ela a tomar conta do marido de ninguém, consegui efetuar o meu pagamento. De saída toquei no ombro do cavalheiro dizendo-lhe que viva, companheiro, o vinte e cinco de abril. Luziu-lhe um novo brilho nos olhos, passou por ali um vislumbre de lágrima de comoção e deu-me um forte abraço. Olhou depois para a mulher, voltou por completo as costas ao balcão encarando a turba que de nada se teria apercebido nem, mesmo que o tivesse, tal coisa lhe importaria; endireitou-se, agarrou no cálice e, desassombrado, escorripichou qualquer defunta gota eventualmente restante.

 

Fez-se, ali, abril novamente!

 

 

Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

 

 

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 19:24

o que sei de abril em nós

Terça-feira, 24.04.12

 

           

I

 

não há razões perfeitas nem este é um mundo completo

desconheço amor onde o afecto igualmente se mantenha

nem sei de horários sempre desejáveis

 

o que sei é um saber de coisas por saber lançadas na minha                                                       

                                                       descoberta

 

por isso hoje em abril

com a arma das palavras e o sentido da cantiga

recordo o tempo em que esperava ver surgir esta nação

 

II

 

viemos expor-nos nas palavras e traçar o quadro do percurso

meteoritos descendo sobre a terra e produzindo rápida claridade

viemos de passagem falámos da viagem

 

nem todas as fontes iniciam rios mas todos os rios nascem de uma                                                            

                                                            fonte

importante é que deixem no seu rasto de águas renovadas

o caminho vegetal da alegria

 

assim em abril as coisas acontecem além das intenções e

pensar que é possível parar o movimento é como

tapar com panos pretos as janelas

para cortar o dia

 

que a revolução é sentimento de mudança

há muito arquitectada no coração das gentes

mais que um corpo é paixão

mais descoberta que sempre

 

quero dizer

fazer a revolução é diferente de criar uma liturgia

 

que em abril semente de actos novos em campos de imprevisto

não se admitem tréguas nem hipóteses

mas um corpo de mulher por sobre as ondas

para o qual as nossas vidas tendem

 

 

 

III

 

suponhamos que num acaso que nada deve ao acaso

se abriam nas janelas rasgos de verdades e deslumbrados

nos olhos surgia uma cidade que sendo a mesma outra transparecia

 

pensemos um dia em que por cima do sorriso

os homens prolongassem em festa a primavera que andava recolhida

e súbita rebentasse em seiva de flores

por sobre os aços

 

imaginemos o momento de tudo ser possível

mesmo a bandeira do vento no rubro da paixão

então

 

era uma vez um povo com um rio carregado de tristeza

era uma vez uma pátria de marinheiros e sem navios

que plantara uma praia inteirinha de viúvas com olhos de gaivotas

e coração de rocha

 

era uma vez um povo com a noite sobre a nuca

era uma vez um frio

 

IV

 

não há razões perfeitas nem este é um mundo completo

e estamos de passagem

só o povo flui constantemente se conserva e é diferente

nós somos uma parte da viagem

um porto a encontrar

 

juntos aqui em abril tentemos

o novo passo a dar

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 00:33

Ingenuidade ou cinismo?

Quinta-feira, 05.04.12

 

Até há dois dias atrás só conhecia um Peter Weiss. Era ele o dramaturgo que, entre muitas outras coisas, escreveu o Marat-Sade e, vejam lá, beliscando-nos nas nossas pretensões colonialistas, também “A balada do fantoche lusitano”. Só o conhecia a ele e o prazer era todo meu.

 

Mas este, como é sabido, é um mundo não só de desenganos como de irremediáveis contrastes. Assim, com o nome do notável dramaturgo entra-me pela casa, nas imagens azuis da sala de conferências da União Europeia, um outro Peter Weiss bem dissemelhante do primeiro. Usando o mesmo nome do dramaturgo, não duvido com total legitimidade, surge-me, na versão manga-de-alpaca atualizado e globalizado, um burocrata típico, mandatado (?) para, entre algumas ténues carícias declarativas, puxar, publicamente, as orelhas a Portugal.

 

Ao que parece este Peter é funcionário da troika cuja, com juros sonantes e altíssima fatura de pagamento de serviços, presta “ajuda” ao País. Certo, certo, deixámo-nos chegar a tal ponto que sem este dinheiro estaríamos, provavelmente, em palpos de aranha, não pagaríamos ordenados nem pensões, etc… etc… e ainda etc… Mas isso são histórias para outros capítulos que não este. Aqui, o interessante é notar como aquele mero funcionário ousou indicar, a toda a gente, que os subsídios, roubados a tantos portugueses, não voltariam a ser repostos. Foi a bomba atómica. O nosso governo entrou em pânico e os ministros entregaram-se a uma diarreia de declarações garantindo que, em tempos e modos diferentes, conforme o ministro, tais remunerações voltariam a constar dos nossos recibos. Era tal superiormente garantido pelo Tribunal Constitucional em douto acordo que permitia quebrar, sem sanções para o incumpridor, o contrato de seguro social estabelecido entre o Estado e cidadãos, pago por estes, todos os meses, ao longo da sua vida de trabalho. Estranhamente – isto sou eu a destilar veneno e maledicência – tal parecer não era válido para quebras de contrato similares com empresas majestáticas. Mistérios… Sigamos adiante. A verdade só foi reposta com a intervenção do primeiro-ministro garantindo o recomeço do pagamento lá para 2015 mas gradualmente e integrado em doze vencimentos. Estão a ver, assim do género, os crocodilos voam, mas baixinho.

 

No entanto, contra a opinião geral, eu acredito que sim, que algo será reposto. É que, não esqueçam, por esses anos estaremos em eleições e, nessas alturas, aparecem sempre uns sacos azuis onde, por magia, se vai buscar o que antes não existia. Depois, com a integração, fácil será fazer desaparecer num ano o que no anterior se concedeu. Estratégias!

 

Passemos este interlúdio e voltemos ao nosso Peter. Creio que após o rebuliço criado ele foi chamado à pedra pelos chefes por ter cometido tão nefasta inconfidência. “Então homem, com tantos anos de serviço e ainda não aprendeu que há coisas só para fazer, nunca para dizer?” Compungido, de cabeça baixa e olhos procurando poeira no chão lá deve ter feito o seu ato de contrição e levado - só por esta vez e tome cuidado com o que diz -  a alta clemência de tão grandes potestades. É que ele, passado este deslize, apresentou, com ternurenta candura e grande compenetração, a estupefação da troika, da Europa, do Mundo por, não obstante o insano labor desses iluminados, o desemprego estra a crescer geometricamente no país. Ora pois, como é que tal poderia acontecer de modo tão surpreendente? Afinal, apenas tinham sido diminuídos vencimentos, aumentado alimentos, combustíveis e transportes, crescido a inflação e facilitados os despedimentos em tempos de recessão. Quem seria tão superiormente esclarecido que, neste cenário, viesse a pensar, nem que fosse por um instante, que o desemprego haveria de crescer? Ingenuidade ou cinismo? Deixem-me contar uma brincadeira dos meus tempos de rapaz, calhada aqui a propósito. É só um epitáfio que reza assim “aqui jaz jeremias papo-seco/ que num dia ventoso e seco/ acendeu um fósforo/ para ver se o depósito tinha gasolina.

 

Foi isto que fez o senhor Peter Weiss, com os resultados que se veêm!

 

 

 

Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 14:44