Desamor
Queiram os senhores situar-se no tempo do era uma vez. Por norma era assim que começavam quase todas as histórias infantis connosco, pequenotes, em ansiosa expectativa de acontecimentos maravilhosos onde, embora com sobressaltos e receios, o herói ou heroína terminava sempre por alcançar a vitória e a justiça. Na verdade, estas ditas e feitas histórias de encantar, mais que todos os ensinamentos oficiais de moralidade e religião, ditaram-me um mundo de razão escatológica onde, no final, o bem triunfará sobre o mal. Ingenuamente continuo, por vezes, a habitar esse mundo de encantamento, mesmo a despeito daquilo que me é dado observar no quotidiano.
Por isso, era uma vez um abastado lavrador que tinha um grande rebanho de ovelhas que lhe fornecia uma boa parte da sua riqueza. Esse armento de animais dóceis era, porém, um tanto ou quanto indisciplinado. Para seu cuidado contratou o proprietário um pastor e os seus cães. Deixou-lhe boa impressão o contratado. Parecia conhecer bem o ofício, era pessoa de bons modos e dele ficou a esperar um acréscimo de fortuna pelo melhor trato que ao gado seria dispensado. Tudo correu bem no início, tendo sido, passado o tempo de experiência, o pastor contratado a longo prazo. Porém, quando o zagal se achou seguro tudo mudou. Tornou-se descuidado e esquecendo as promessas feitas ao dono do fato, mantinha-o fechado no redil, cuidava pouco da sua alimentação e higiene, não deixando, no entanto, de a seu tempo levar ao lavrador a lã, o leite e o queijo que das ovelhas houvera. Com o passar do tempo e a falta dos cuidados essenciais, o produto foi diminuindo e, após muitas justificações do pastor, desconfiado, o proprietário foi visitar o curral. Não gostou do que viu. As suas ovelhas brincalhonas e luzidias andavam tristes e magras, com a pelagra a devastar-lhes a lã, os olhos ronhosos, um todo de calafrio e calamidade. Furioso despediu o descuidado pastor, pediu auxílio a uns veterinários especialistas em tratar rebanhos degradados. A primeira indicação dos veterinários foi, como não podia deixar de ser, arranje um pastor de confiança para que o nosso trabalho possa dar resultado. Ele assim fez e escaldado pelo bem falar e mal agir do precedente pastor, entre os candidatos ao lugar, escolheu um muito circunspecto, por honesto lhe parecer. A imagem contrária do guardador preterido.
Em nova confiança e descanso lá partiu o homem para a vila, deixando de novo o rebanho aos cuidados do novo gestor do aprisco. Este, parecendo em tudo dissemelhante do anterior, quando ficou sozinho e verificou o trabalho que iria ter para alimentar e limpar o ovil desanimou. Em vez de cumprir cabalmente o seu mister cortou a ração aos animais e, quando ela escasseou abriu as portadas do bardo incitando o rebanho para que, só e sem amparo, saísse perdendo-se no largo dos campos. Escusado será dizer que o patrão, despeitado, correu com o novo apascentador assim que se apercebeu do prejuízo motivado pelo ânimo desistente e incapaz do guardador do aprisco.
Creio que se o meu caro leitor fosse o senhor do rebanho, não faria coisa diferente do feito pelo desiludido lavrador. Tenho ou não fundamento? Claro que sim, responder-me-ão. É por isso que me espanto por, na vida real, não ser este o procedimento comum.
Então vejamos!
Parece-me meridianamente claro que quando alguém se propõe ao governo de um país, traz implícito nesse desejo, a vontade e a capacidade de indicar soluções e resolver problemas. Não sei para que serviria governação desistente, incapaz de equacionar as dificuldades e encontrar-lhe a terapia adequada. É para solucionar as questões gerais que todos abdicamos de parte da nossa autonomia a favor de um grupo de poder que nos convence, melhor ou pior, ser o apropriado, no momento, para a manutenção do bem comum e capaz de acrescentar progresso onde outros não vislumbram possibilidades. Isto é boa governança e merece o sacrifício de alguma liberdade individual para que mais altos destinos se produzam. Sem este acréscimo não vale a pena manter governantes. Um desistente nunca deverá ter autoridade para, em vez de encorajar, disseminar o desânimo pelos outros. E que fazem, a nosso favor, os governantes, após nos secarem de lã e leite? Nada, ou pior, convidam-nos, qual ovelha tresmalhada a procurar outro rebanho porque no nosso, por sua incapacidade, não se nos arranja lugar.
Então para quê o sacrifício da vontade própria, do nosso trabalho, dos escassos bens ainda possuídos? Para, onde procuramos soluções, ouvir um desavergonhado, emigrem!? Um secretário de estado, um centro de emprego, e fantástico, um primeiro-ministro - a quem competiria apresentar soluções - desistem e aconselham parte importante do povo a emigrar? Que estão estes indivíduos a fazer no lugar que ocupam? Porque é que o senhor – isto é, a vontade popular – não faz o que deve e despede o mau pastor? Estamos à espera de quê? Que nos espoliem ainda mais? Que, impudicos, tripudiem sobre as nossas vidas a seu bel-prazer e cuspinhem sobre as nossas melhores expectativas?
Seremos, um dia, eu tenho a certeza, capazes de dizer o BASTA que urge e mandar, para a escatologia que merecem, tão maus servidores, em insensíveis mandadores arvorados. Convictos destruidores das condições de vida dos pequenos, serventuários untuosos dos grandes poderes financeiros; gente sem alma nem lei com rapaces corações vendidos, a baixo preço, à hidra da alta finança apostada em desfazer tudo o que foi conquista, civilização, solidariedade, equidade e confiança no futuro.
De que estamos à espera para despedir tão maus pastores que, por inconfessados interesses próprios e notável desamor nos oferecem, como moeda, aos lobos?
Como, a seu tempo, disse Lopes Graça: ACORDAI!
Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt