Declaração
Eu, Belegário da Silva Nepomuceno, cidadão nacional, com setenta e dois anos de idade, na posse de todas as minhas aptidões físicas e intelectuais, venho, por este meio, e para que conste, produzir as seguintes declarações:
1 – Repudio completa e iradamente todas as comunicações, sejam de quem seja, que tentem fazer crer aos cidadão deste país, que alguma vez tenha vivido, ou viva, acima das minhas possibilidades. Pautei sempre os meus consumos, apesar das pressões contínuas de bancos, casas de empréstimos,
vendedores de carros e outros variados bens, pelas possibilidades reais que os meus rendimentos permitiam, tendo ainda o cuidado de reservar uma pequena parte para poder corresponder a despesas inesperadas.
2 – Afirmo solenemente que nunca fiquei a dever nada ao Estado. Ao longo de 45 anos de trabalho descontei regularmente tudo quanto me era exigido para as Finanças e Segurança Social, sendo que esta última me garantia, em contra prestação securitária, na doença ou em acidente tratamento e sustentação económica enquanto não pudesse trabalhar; apoio no desemprego e, finalmente, findo um longo período de trabalho produtivo, assegurar-me-ia um final de vida digno e tranquilo. Eu cumpri. Ela não.
3 – Mesmo quando comecei a ser espoliado em relação aos termos do contrato social, celebrado entre mim e o poder, ainda acreditei que
seria um pequeno sacrifício em prol do bem comum, um perder agora um pouco para assegurar o futuro sem sobressaltos de maior e assenti em, mais uma vez, dar ao país aquilo que ele necessitava para poder progredir e assegurar o bem-estar da
população em geral. Aceitei ser prejudicado – na verdade não tive outro remédio - no modo de formação do montante de reforma, o que me custou um corte de 30% no valor inicial. Senti-me espoliado mas, o que é que poderia fazer? Apesar de ser uma decisão leonina, cometida por um Estado que não respeitando os acordos firmados, não se respeitava a ele, como justificava esta medida com a necessidade de manter a segurança social sustentável por mais cem anos e me deixavam sem outras opções, lá teve de ser. Depois decidiram que o valor de IRS dos reformados deveria ser idêntico ao de quem estava no ativo. Outro corte, mas este muito aceitável. De facto não fazia sentido que, tendo eu um determinado rendimento não pagasse para o Estado a mesma quantia que qualquer outro de rendimento semelhante. Custou-me mais umas centenas de euros. Não refilei. Só que, pouco tempo passado, esquecendo o muito que descontei acharam que tinha dinheiro a mais e, bumba! congelaram-me,"sine die", o valor da pensão. Cortam-me agora metade do subsídio de Natal e, para o ano, graças a Deus, vai todo de Natal e Férias. Agradeço reconhecidamente o empenho que o Governo
demonstra com a minha saúde ao defender-me de, por excesso de sol na praia, vira contrair cancro de pele.
4 – Nunca tive baixa médica em todos os meus anos de trabalho assim como, igualmente desconheço os bons ou maus préstimos do serviço de medicina nos centros de saúde. Só ao fim de dezenas de anos de descontos me foi atribuído médico de família. O mais interessante é que ainda não o conheço. Nunca consegui apanhar uma vaga para, no mínimo, me apresentar ao médico que é suposto ser responsável pela minha saúde e dos meus familiares. Deste modo tenho suportado do meu bolso, todas as despesas da nossa saúde. Pagava a dobrar mas restava-me a consolação de poder descontar uma pequena parte das despesas no IRS. Pronto, já não posso e desconfio que vou continuar sem ser apresentado ao meu médico familiar. Se até aqui ele tinha a seu encargo mil e seiscentos doentes, presumam, com o empobrecimento geral do país, quantos mais irá ter. É claro que, a mortalidade dos gerontes irá crescer exponencialmente (já pensei apresentar, no Tribunal dos Direitos do Homem, queixa, por homicídio negligente, contra o Estado) e, se tiver a sorte de não ser um dos que embarcarão em primeiro lugar poderei, antes de entregar a alma ao senhor, vir a conhecer o técnico que foi, nominalmente, responsável pelo estar saudável dos meus familiares durante tanto tempo.
5 – Aos meus filhos, que durante anos exortei erradamente na necessidade de conhecimento, cultura e ética, peço amargamente perdão pelos erros em que os induzi. Por terem levado demasiado à risca os meus conselhos e práticas veem-se agora, entre os vinte e os trinta anos, cheios de qualificações académicas e profissionais, condenados a contar dinheiro para o senhor da Sonae, sonhando com o dia de saírem do país para poderem dar azo a tudo
o que aprenderam e querem aprofundar e aplicar; vendo, todos os dias, os chicos-espertos fazerem gato-sapato de morais e leis, subir, como foguetões, nas escalas financeira e social.
6 – Aos senhores do Governo, qualquer que ele seja, peço para terem um pouco menos de “coragem”. Sempre que os comentadores apontam para a afoiteza de qualquer primeiro-ministro já sei que vem bordoada forte. Assim, tenho medo da coragem deles e suplico-lhes um pouco mais de cobardia,
acompanhada de alguma competência e, sendo possível, uma réstia de sensibilidade social.
7 – Como sempre fui um empirista obcecado pela prova do real e não gosto de ser apanhado desprevenido, marquei ontem viagem para a Grécia para fazer um estágio “in loco” da forma como, brevemente, passaremos a viver em Portugal. Voltarei com certificado, “curriculum” e experiência. Poderei então montar um curso de formação acelerado que vos ensinará a sobreviver no caos e garantirá – vou deixar de ser contra o nepotismo – oenriquecimento rápido para mim e para os meus filhos. Já aprendi. Os outros que se lixem!
Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt
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Raivar qu'este é outro jogo
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Democracias
Dizer-se que a democracia é a melhor das piores formas de governo é coisa que já não passa
de irónica banalidade. Se, porém, atentarmos melhor nesta afirmação veremos que
nela se expressa uma desconfiança visceral sobre toda a governação, entendida
como mal indispensável, e a submissão a uma inevitabilidade, a qual, como tudo
o que é necessário, tem muita força.
De facto, pese embora todas as frustrações que o exercício possível da dita nos
proporciona, basta-me lembrar o cinzentismo opressivo dos tempos salazarentos
para que a mais desbotada democracia surja como sol brilhante num horizonte de
esperanças. Mas a democracia, ou melhor, as democracias – porque são várias e
de diferentes profundidades – são plantas frágeis passíveis de sucumbir a
qualquer golpe de vento mais desabrido.
Façamos um breve périplo pelos países terceiro mundistas das décadas de 60 a 90 e vejamos
como tantas tentativas democráticas foram estranguladas à nascença por,
imagine-se, a nação “mais democrática” do mundo e pelas instituições por ela
apadrinhadas. Refiro-me, para quem esteja distraído, aos Estados Unidos da
América e, aos seus apêndices liberais Banco Mundial e Fundo Monetário
Internacional.
Nessa época, países afogados pela dívida foram “ajudados” por aquelas instituições de molde
a saírem do subdesenvolvimento e a saldarem a dívida aos países do primeiro
mundo. Os então denominados Programas de Ajustamento Estrutural não passavam de
um figurino a aplicar, de forma semelhante, em todos os países, independentemente
da conjuntura e especificidade de cada um. A coisa passava-se, mais ou menos
assim: ao pedido de “auxílio” seguia-se uma missão que pretensamente estudaria
os entraves e possibilidades daquela economia. Depois do “estudo” o Fundo
avançava com um programa que, no essencial se definia pelo corte de regalias
aos trabalhadores, aumento exponencial do desemprego (normalmente já elevado),
entrega a corporações externas das empresas nacionais, com especial relevo para
companhias de aviação, banca, energia, água, pescas, petróleo, melhores terras
de cultivo e, quando necessário, o país emprestador e as sua corporações não se
coibiam de, em nome do desenvolvimento e da democracia, instaurar ou segurar as
mais ferozes ditaduras e acobertarem, por via do juro e do lucro, as mais
gritantes quebras dos direitos humanos em nome dos quais se apresentavam ao
mundo.
As respostas várias a este estado de coisas passaram por manifestações de massa
sangrentamente reprimidas, rebeliões e guerrilhas que puseram um continente a
ferro e fogo. Destruíram o que restava das indústrias nacionais e impuseram
importações que aumentavam, sempre e cada vez mais, a sacrossanta dívida
constituída em instrumento de dominação política exercida por gente estranha
que ninguém conhecia e em quem ninguém tinha votado. Mas como tudo tem neste
mundo um final um dia a mina sul-americana, por vontade própria ou exaustão de
recursos, tornou-se desinteressante. Quer isto dizer que o esforço
político-militar para manter em submissão esses povos já custava mais que o
lucro retirado. Nas suas esclarecias racionalidades as forças vivas do capital
reconheceram já não valer a pena o gasto de cera com tão ruim defunto.
Mudaram-se para o sul da Ásia onde, a exploração da mão-de-obra barata e sem
direitos aparecia como um novo farol de oportunidades. Como apesar de tudo os
avanços militares, à América do Sul, foram por lá, de uma maneira ou outra,
falhando, inventaram a deslocalização, empobrecendo e levando ao desemprego as
até aí classes médias dos seus países. À baixa de rendimentos que forçaram
responderam, para não se dar logo pela coisa, com facilidades de crédito.
Assim, quem já não ganhava o suficiente para manter o padrão de vida a que se
habituara, iniciou-se na obtenção de empréstimos fáceis e a juro baixo, para
colmatar o quanto lhe faltava em salário.
Entrámos deste modo num torvelinho em que ao conceder crédito a qualquer mortal, qualquer
banco comercial e não emissor, produzia, diretamente e sem suporte material,
moeda em circulação. Bestial! O que é que poderia falhar em esquema tão bem
montado? Crédito atrás de crédito o poder de compra crescia e uma declaração de
dívida a um banco podia ser depositada, como garantia e capital, num outro que,
por sua vez, poderia fazer o mesmo em outro criando valor até quase ao
infinito. O problema foi quando alguém foi ao banco e pediu, dos seus
depósitos, cem euros para comprar uma camisa. Azar dos azares. Não havia
liquidez, isto é, moeda corrente e o vendedor da camisa, teimoso que era,
queria mesmo dinheiro vivo que o banco não possuía. Ao saber-se disto
depositantes e tomadores de ações entraram em pânico e foram ao sistema
financeiro pedir o que eles não tinham para lhes dar: dinheiro forte ou valores
reais. Pânico, escândalo, falta de confiança e… crise do subprime.
Como todos sabemos o mundo ocidental pauta-se pelos valores morais das suas sociedades.
Acabámos com as ditaduras, desenvolvemos as indústrias e as ciências, possuímos
direitos civis e de trabalho bem estruturados e os nossos governos, bons ou
maus, são da nossa inteira responsabilidade, consoante as nossas opções políticas,
assentes no direito ao voto livre e consciente. Aqui, certamente não conseguirá
o FMI e quejandos aplicar os famigerados Ajustamentos Estruturais, nem será
permitido que financeiros sem rosto venham a dominar, pelos seus interesses, os
órgãos e governos livremente eleitos. Tão pouco, ao trazerem-nos a desinteressada
ajuda, que se espera de tão magnânimas instituições, veremos algum ataque, por
mínimo que seja, a direitos sociais. Nem sequer quererão espoliar os países das
suas empresas mais importantes. Disso estamos, felizmente, livres. Sabemos que
o seu único objetivo é, com a solidariedade que os caracteriza, livrar os
países do espetro da miséria e do desemprego, dando-lhes, generosamente, meios
para se desenvolverem no caminho democrático que escolheram. Sabemos que
defendem, até ao limite, a felicidade dos povos e caso tenham de escolher entre
o enriquecimento injusto de uma camada de especuladores e o bem-estar de uma
qualquer população, não hesitarão, pelos seus proclamados sentimentos
democráticos, em ajustar as suas políticas a favor desta última. Não teremos,
deste modo, qualquer receio de que da ajuda, tão solidariamente prestada, possam
nascer dores como as que os sul-americanos passaram. Aqui não irão sustentar
despedimentos, compra de empresas fulcrais, nem exigir juros que nunca podendo
ser pagos, por exagerados, tenham como efeito aumentar apenas a dívida que
seria seu intuito extinguir, provocar recessão e conduzir o país numa espiral
de desespero que possa vir a terminar em oceanos de sangue. Ainda bem que
contamos com o seu desinteressado apoio. Vejam só o que está a acontecer na
Grécia por não ter recorrido aos seus serviços e não quer por em prática o
exercício recomendado de uma austeridade salvadora.
Publicado in “Rostos
on line” – http://rostos.pt