O Pensamento Selvagem
Quarta-feira, 17.11.10
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Em interpretação bastante livre atribui-se ao pensamento selvagem uma abordagem mítica da realidade, a explicação do actual por um anterior dourado, a função mágica da palavra. Mais sucintamente dizer ou desejar poderia ser o suficiente para fazer acontecer.
Recordaram-me estas antigas noções da Antropologia Estruturalista as palavras, ouvidas ainda na cama, ao acordar, de uma intervenção do Presidente Cavaco. Na sua rara eloquência e finamente recortada oratória, com a riqueza de imagens e a criatividade que o caracterizam mais ao seu discurso, dizia ele, de modo enfático, que como forma pessoal de combate à crise iria deixar de utilizar tal palavra nos seus discursos. Passaria, portanto, a referir-se a ela de forma enviesada como “os tempos”. Não me parece que os media tenham dado grande atenção a esta possibilidade de ultrapassagem do mal pela recusa da sua nomeação. Fizeram, portanto, mal.
Fizeram-no quando não perceberam que na incapacidade de diligenciar qualquer coisa de útil para aliviar-nos da dureza da existência, este homem reconhecidamente carinhoso, culto, livre-pensador e de discurso fluente como ribeiro primaveril, elaborou um estrénuo esforço para, magicamente, debelar a dor que nos rodeia. Espírito compassivo, farto de avisar, em vão, os políticos – que ele jura não é, não foi, nem será – para os perigosos caminhos que cegamente vão percorrendo, investido de uma força metafísica proveniente do sacro lugar que ocupa (mais por vontade de entidades sagradas que do votos expressos pelos cidadãos) lança, tonitruante, a sua voz, de preclaro poder emanado de altíssima fonte, como exorcismo capaz de modificar a mais abstrusa realidade. A partir deste momento, a crise deixará de existir. Ao ser solenemente abolida do discurso, por um desejo mais forte que o comum, não teve ela outra escolha que dissolver a sua consabida materialidade.
Este xamã dos novos “tempos”, descobriu, por mero acaso, as suas capacidades mágicas ao entrar em campanha para assegurar por mais cinco anos o seu sacro sacerdócio, a possibilidade de estender a sua bondosa vontade sobre o desditoso povo acima do qual paira e para o qual, nos anos anteriores, nada tinha a dizer, a fazer, ou nunca era o local apropriado para o Presidente se pronunciar fosse lá pelo que fosse. Descobriu portanto, agora a força da palavra. Se antes só se manifestava com veemência quando as coisas o tocavam pessoalmente – ver estatuto dos Açores ou a comédia das escutas – sabe agora que basta fazer os ritos purificantes, conduzir com unção a liturgia e o anátema ou a glorificação nascerão da sua vontade consubstanciada em miraculosas palavras que, de supetão, mudarão só por si, a face visível das coisas.
Há gente assim, com estranhos e maravilhosos poderes! Basta que um lugar - nunca desejado e sempre imposto pelo dever - surja na hierarquia do Estado para que eles surjam com seus poderes encantatórios capazes de, em passe mágico resolverem, de uma só penada, todos os problemas que não só não conseguiram resolver durante todo um mandato com, muitas vezes, foram as causas eficientes para o seu aparecimento.
No entanto, onde o verdadeiro poder do seu pensamento mágico melhor refulge é na certeza que se vai subtilmente instilando de que teremos de aguentar o personagem por mais cinco anos. Isto sim, é pensamento selvagem, é rito, é mito, é a evidência de que continuaremos na nossa triste senda de incapacidade de desenvolvimento e renovação, trocando a árdua tarefa da modernização e democratização dos espíritos e da sociedade por uma qualquer retórica, analógica ou de contiguidade, instituída em actuante feitiçaria resolvente de todos os problemas que afrontam o nosso bom povo.
Votem de novo no homem, votem! E depois queixem-se!
Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt
Em interpretação bastante livre atribui-se ao pensamento selvagem uma abordagem mítica da realidade, a explicação do actual por um anterior dourado, a função mágica da palavra. Mais sucintamente dizer ou desejar poderia ser o suficiente para fazer acontecer.
Recordaram-me estas antigas noções da Antropologia Estruturalista as palavras, ouvidas ainda na cama, ao acordar, de uma intervenção do Presidente Cavaco. Na sua rara eloquência e finamente recortada oratória, com a riqueza de imagens e a criatividade que o caracterizam mais ao seu discurso, dizia ele, de modo enfático, que como forma pessoal de combate à crise iria deixar de utilizar tal palavra nos seus discursos. Passaria, portanto, a referir-se a ela de forma enviesada como “os tempos”. Não me parece que os media tenham dado grande atenção a esta possibilidade de ultrapassagem do mal pela recusa da sua nomeação. Fizeram, portanto, mal.
Fizeram-no quando não perceberam que na incapacidade de diligenciar qualquer coisa de útil para aliviar-nos da dureza da existência, este homem reconhecidamente carinhoso, culto, livre-pensador e de discurso fluente como ribeiro primaveril, elaborou um estrénuo esforço para, magicamente, debelar a dor que nos rodeia. Espírito compassivo, farto de avisar, em vão, os políticos – que ele jura não é, não foi, nem será – para os perigosos caminhos que cegamente vão percorrendo, investido de uma força metafísica proveniente do sacro lugar que ocupa (mais por vontade de entidades sagradas que do votos expressos pelos cidadãos) lança, tonitruante, a sua voz, de preclaro poder emanado de altíssima fonte, como exorcismo capaz de modificar a mais abstrusa realidade. A partir deste momento, a crise deixará de existir. Ao ser solenemente abolida do discurso, por um desejo mais forte que o comum, não teve ela outra escolha que dissolver a sua consabida materialidade.
Este xamã dos novos “tempos”, descobriu, por mero acaso, as suas capacidades mágicas ao entrar em campanha para assegurar por mais cinco anos o seu sacro sacerdócio, a possibilidade de estender a sua bondosa vontade sobre o desditoso povo acima do qual paira e para o qual, nos anos anteriores, nada tinha a dizer, a fazer, ou nunca era o local apropriado para o Presidente se pronunciar fosse lá pelo que fosse. Descobriu portanto, agora a força da palavra. Se antes só se manifestava com veemência quando as coisas o tocavam pessoalmente – ver estatuto dos Açores ou a comédia das escutas – sabe agora que basta fazer os ritos purificantes, conduzir com unção a liturgia e o anátema ou a glorificação nascerão da sua vontade consubstanciada em miraculosas palavras que, de supetão, mudarão só por si, a face visível das coisas.
Há gente assim, com estranhos e maravilhosos poderes! Basta que um lugar - nunca desejado e sempre imposto pelo dever - surja na hierarquia do Estado para que eles surjam com seus poderes encantatórios capazes de, em passe mágico resolverem, de uma só penada, todos os problemas que não só não conseguiram resolver durante todo um mandato com, muitas vezes, foram as causas eficientes para o seu aparecimento.
No entanto, onde o verdadeiro poder do seu pensamento mágico melhor refulge é na certeza que se vai subtilmente instilando de que teremos de aguentar o personagem por mais cinco anos. Isto sim, é pensamento selvagem, é rito, é mito, é a evidência de que continuaremos na nossa triste senda de incapacidade de desenvolvimento e renovação, trocando a árdua tarefa da modernização e democratização dos espíritos e da sociedade por uma qualquer retórica, analógica ou de contiguidade, instituída em actuante feitiçaria resolvente de todos os problemas que afrontam o nosso bom povo.
Votem de novo no homem, votem! E depois queixem-se!
Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt