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A Consulta

Terça-feira, 21.09.10
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Despejou-se como um saco de vento na cadeira. A pequena mesa do café estremeceu com a violência da abordagem e aquietou-se com o último Uff!! do Belegário.

- Sou uma besta! Um ingénuo inveterado. Só mesmo eu! Parvo, parvo, parvo!

- Então homem, que desatino é esse? Deixa de tratar mal, na minha frente, o meu amigo Belegário. Que mal te fizeste para estares assim?

- Maldito voto entregue de mão beijada àquele patranhas. Eu já sabia que o melro era assim, porque é que me deixei cair, de novo, na sua conversa mole? Merecia que me rachassem a cabeça. Mas o pior é que não sei para onde me voltar. Tu sabes que eu sempre defendi o Estado Social. É uma coisa bonita. Limpa. A gente sabe que paga mas tem a certeza que quando está à rasca, lá tem a rede de protecção a minorar o desespero das más horas. E essas, até o mais pintado as tem. Pois ando rabeado com as ideias do Passos Coelho de destruição dos apoios sociais e da entrega de todo o futuro aos privados. Nem sei como ele, com os exemplos desta crise, não cora de vergonha ao fazer tais propostas. Entregar tudo nas mãos de quem pode especular e, num ápice, reduzir a cinzas as economias de tantos cidadãos deveria merecer punição criminal. Não se diz a ninguém, com seriedade, para ir pôr o pescoço na guilhotina porque o carrasco é de confiança. Que ele tal defenda não aceito mas compreendo. É lá a ideia dele. Não vou nela mas, ao menos, ele não me engana. Se lhe der o meu voto sei ao que vou e se me acontecer algum mal, fui eu que, de certo modo o escolhi. Agora, ouvir alguém dizer, de praça em praça, contrariando o discurso do Passos Coelho, que defende o Estado Social, fazer continuadas juras de amor a esse Estado e a seguir proceder de modo a estrangulá-lo, por falta de vontade e meios, isso é que já não aturo!

Parou para respirar, bebeu um gole da minha água pelo meu copo, enxugou os lábios com as costas da mão e disparou:

- É tal a minha ingenuidade que, tendo o meu médico de clínica geral passado à reforma, disse cá para mim: Belegário, tu descontaste toda uma vida para a Segurança Social. Nunca utilizaste o seu serviço médico. Por comodidade sempre preferiste a medicina particular; aproveita agora a reforma do teu médico assistente e vai ao posto marcar uma consulta de rotina. Simples, não é? Como eu até sou dos felizardos que têm médico de família estava convencido que eram favas contadas. Peguei no telefone e informei-me. Elementar! Disse-me o funcionário do outro lado da linha. Amanhã, entre o meio-dia e as duas da tarde, telefona para este número e marca a sua consulta. Vituperei logo ali quantos, por pura maldade, eu pensava, diziam mal dos esforços de modernização dos serviços públicos. Vejam só, tão fácil. Um simples telefonema e lá ficava garantida a minha consulta. Nada das longas filas de espera para não se conseguir nenhuma consulta apesar da permanência, das cinco às nove da manhã, em condições degradantes. Isto era o progresso. Isto sim, era bom serviço.

No dia seguinte, pelas treze horas, telefonei para o posto. Tenha paciência, respondeu-me a voz da impotência. Para amanhã já estão as consultas todas preenchidas. Certo! Já fui tarde. Amanhã telefono mais cedo. E telefonei, no outro dia, mesmo em cima das doze horas para um telefone que durante quarenta e cinco minutos moldou a irritante intermitência do sinal de impedido. Um quarto para a uma. O telefone, finalmente, chama. Espero cinco minutos e nada. Ninguém atende! Aguardo mais cinco minutos, o mesmo resultado. Se calhar enganei-me no número. Marco outra vez. Mais cinco minutos de espera e, por fim, uma voz cansada retira-me a esperança. A agenda está cheia. Tente amanhã. Se eu for aí pessoalmente posso marcar a consulta para outro dia qualquer? Isso é com o meu colega. Nada sei da Agenda de longo prazo. Pode ligar-me ao seu colega para me informar. Não, não posso. Tem que vir mesmo ao posto. Para quê, pergunto eu que só queria uma informação. São regras! Pronto! Enganei-me, afinal as mesmas iníquas regras ainda se mantêm. Para a Segurança Social não sou um cidadão que recebe o que por direito merece. Eles fazem o favor de me concederem o que eu paguei já, antecipadamente, com milhares de euros. Para conseguir a consulta vou ter de me humilhar e sofrer. Só depois é que, cristãmente, serei merecedor da esmola que o Estado me concede. Não! Não aceito isto. Amanhã vou ao posto e vão ter que me marcar a consulta.

Fui ao posto. Identifiquei-me e disse ao que ia. Nada a fazer elucidou-me o funcionário. A agenda de longo prazo está fechada. Já tem marcações até Novembro e não aceitamos mais. O que é que eu faço? Amanhã, entre as 12 e as 14 horas telefone para este número para marcar consulta para o dia seguinte. Isso já eu estou a fazer há um ror de dias. Pois é, encolheu os ombros, cada vez temos menos médicos e mais doente. Assim as coisas não funcionam. Mas o que é que eu posso fazer para marcar a minha consulta? Já telefonei. Não consigo. Venho aqui e fico na mesma. Isto parece-me um círculo vicioso. O que é que se pode fazer mais? Nada, disse o funcionário voltando a encolher os ombros. Cada médico tem mil e seiscentos doentes, o que é que se pode fazer? Está bem, disse, posso ao menos extravasar a minha fúria fazendo uma reclamação. Não ganha nada com isso. Não é para ganhar, é só para desabafar. Porque é que não vem cá amanhã pelas oito e meia e tenta falar com o médico?

Tentei.

Para além do pessoal com consulta marcada mais dez indigentes, como eu, esperavam para falar com o médico. Como outrora tinham acampado, pela madrugada, à porta do posto tomando vez para conseguir a consulta. Afinal nada tinha mudado. A modernização era aparente, a desburocratização era uma treta. Como sempre a paciência do indígena era posta à prova e só os mais perseverantes, ou necessitados, aguentavam aquele ritual punitivo.

Então o que fizeste?

Ora, o que é que havia de fazer. Perante tamanha impossibilidade desisti da consulta, não fiz a reclamação e vim-me embora. A propósito, conheces algum bom clínico geral a quem possa comprar uma consulta?


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publicado por Carlos Alberto Correia às 21:13

Oh, God! Que nojo!

Terça-feira, 07.09.10
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Como Vossas Excelências muito bem sabem o homem é um animal de hábitos. Quer isto dizer que vai construindo a sua vida sobre uma série de costumes, adquiridos ou transmitidos, que se colam à sua pele e, no decorrer dos tempos, passam a definir o que é “natural” e o seu contrário. Deste modo, o “outro”, o que tem hábitos distintos, é sempre um ser estranho e, por tal, muitas vezes ameaçador. É nestes julgamentos primários que repousa a génese do etnocentrismo e, quando muito ampliado, chega-se ao mais refinado racismo.

No entanto uma convivência mais próxima leva-nos a ganhar compreensão pelos modos do outro e, muitas vezes, apoderamo-nos de alguns dos seus comportamentos os quais passarão a fazer parte da nossa panóplia de usos e assim integrados ganharão o estatuto de naturais. Como tudo na vida a contaminação cultural pode ter aspectos positivos e negativos. Consideram-se positivos quando enriquecem o conteúdo das nossas vidas ou representações, passam ao grupo contrário na situação inversa.

Toda esta divagação vem a propósito de um episódio de férias bem ilustrativo das contaminações culturais e da forma como as gentes as vêem e interpretam. Conto, para ilustrar, o que aconteceu no restaurante de praia onde almoço regularmente.

Apeteceu-me naquele dia deliciar-me com uma bela cataplana algarvia. Cauteloso, porque já me escaldara várias vezes, perguntei à simpática dona do restaurante se por acaso ela punha natas na cataplana. Tranquilizou-me de imediato o seu ar, mais que de espanto, de completa incredulidade:

-Natas na cataplana? Oh, God! Que nojo!

Logo ali estabeleceu a genuidade da sua cozinha tradicional exaltando a qualidade do peixe e marisco utilizados – vindos do pescador – do azeite da melhor qualidade, dos tomates e cebolas provenientes de horta própria. Descansou o meu coração perante tais mostras de genuidade e antevi-me no gozo pantagruélico daquele cozinhado lento em que os ingredientes se misturam numa química de sucos deliciosos e, como elucidado fui, de grande qualidade. Para não estragar o sabor e o apetite decidi passar o tempo de espera sem tocar em aperitivos ou entradas, totalmente livre para os esperados sabores. Entretive-me a olhar o mar e aguardei por um tempo infinito que a comezaina se aprontasse. Quando o desespero já me fazia pensar se devia ou não forrar o estômago com qualquer coisita chega, triunfante, a famosa cataplana. Devo dizer que ao ser aberta os odores inebriantes se fizeram sentir de imediato transformando em verdades intransponíveis a propaganda da senhora. Mas, pecado dos pecados, sobre a rescendência e as cores brilhantes do conteúdo, uma horrível mancha amarela destruía toda a cataplana. Em cima, nadando no molho, uma imensidade de batatas fritas coroava impudicamente o meu prato de eleição. Percebendo a desilusão que se me estampava na cara, onde eloquentemente transparecia um outro Oh, God! Que nojo, atalhou a minha hospedeira antes que eu pudesse dizer qualquer coisa: É assim que os estrangeiros querem!

Tive de fazer uso de toda a minha capacidade de análise antropológica para não dizer uma asneira das grandes.



Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

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publicado por Carlos Alberto Correia às 16:00