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Sim, eu estive lá!

Quarta-feira, 17.12.08
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Há coisas que marcam a nossa vida para sempre. De umas, revivendo-as, só nos apercebemos muito tempo depois de acontecerem. Outras mostram-nos logo que estamos a viver um momento especial, assim como se dobrássemos uma esquina. Ambas determinam circunstâncias de fronteira, nódulos onde os nossos destinos se fazem caminho.

Um destes momentos aconteceu no Domingo, 14 de Dezembro, na Cidade Universitária. Sim, eu estive lá! Percorri os vários seminários, detendo-me, sobretudo, nos de Educação e Trabalho. Valeu a pena! Percebi, ouvindo os diversos locutores, que há gente de qualidade a pensar esta Democracia, aparentemente anémica, na realidade, plena de valores esperando apenas que a hora chegue, que o momento se perfaça.

O momento parece chegado!

Quase finda a grande bebedeira neoliberal, exangue a sua economia, falhados os seus pressupostos, oferecendo um futuro trágico e sem propostas onde só espreitam ameaças sombrias para a maior parte dos povos, concitam-se as vozes que se hão-de opor, firme e claramente, ao pré-anunciado cataclismo destruidor de todas as esperanças. Nesse dia, a Faculdade de Letras, primeiro, e a Aula Magna, depois, foram a casa das Esquerdas. Desunidas, quase sempre, rezingonas muitas vezes - diz-se que por natureza - encontraram-se em pleno processo de fraternidade, luminosas na descoberta da força das suas razões e das suas gentes.

Apesar de empolgante o encerramento do Fórum das Esquerdas, na Aula Magna, foi somente o corolário de uma circulação de pessoas e ideias que, todo o dia, fervilhou, em troca intensa, entre os muitos participantes. Percebe-se, por isso, o incómodo generalizado que atacou tantas pessoas e instituições. Umas porque sentem que este movimento ameaça o “status quo” onde se instalaram com algum conforto, outras porque, desviadas da acção que lhe caberia cumprem mandatos que não convêm aos ideários que dizem professar. Por isso se falou em Educação, Economia, Trabalho, Cidades e Saúde numa perspectiva integradora dos direitos e bem-estar das populações, criticando-se soluções estreitamente viradas para o interesse de minorias que, com a crise, foram claramente desmascaradas na sua acção de, enriquecendo, empobrecer o país e as nações.
Da fertilidade das intervenções havidas sobrou, para o exterior, a excessiva simplificação de se pressupor o nascimento de um novo partido político. Não sendo de excluir esta hipótese, aqueles que tanto a acentuam, não perceberam ainda que a força que se congrega procura mais que a ocupação de lugares nos órgão de governo. Que se prepara para se assumir como poder é verdade e é direito que lhe cabe. Mas como foi dito, por todos os participantes, o importante é seguir o processo de estudo, aprofundamentos de ideias e de organização que provoque o advento de teses capazes de inverter o rumo das sociedades, aqui e agora, visando um mundo socialmente mais equitativo e com maiores liberdades individuais. Só enquanto meio para atingir este desiderato o mando é importante. Não nos interessa o poder pelo poder, nem pelas negociatas que nele se fazem e depois dele continuam. A promiscuidade entre governos e grupos económico-financeiros, com especial força destes últimos, provocou danos profundos no tecido moral e económico da Nação. A continuidade de tal estado de coisas só tenderá a aprofundar as crises e a conduzir-nos para o abismo. Veja-se como o Capital Financeiro subverteu, de imediato, a função dos apoios que os governos lhe concederam para ajudar a economia real. Fizeram chegar às empresas os fundos libertados? Não senhor! Capitalizaram-nos de imediato, congelando a circulação financeira e aprofundando a crise.

Dizem quase todos os analistas que estamos a mudar de paradigma. Também acho e, como eles, não sei para onde as coisas se dirigem. O que sei é que não quero ficar como espectador impotente a ver tudo a derruir sem modo de sobre elas actuar. Pretendo ter um papel activo na condução da minha vida e do meu tempo. E, sei, não estou sozinho. O dia 14 veio reafirmar isto plenamente.
Vamos portanto agarrar nas nossas mãos os destinos que são nossos e sabendo de fonte certa que temos razão e força, conseguir a implementação de políticas sociais justas. Deixemos de, em nome do Socialismo, transportar o pesado pendão das direitas. Eles que o defendam e carreguem. É o seu papel. O nosso é que é bem diferente.

Para tal se alcançar basta que o espírito do Fórum das Esquerdas permaneça e se alargue. O resto, seja lá ele o que for, virá por si.

Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

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publicado por Carlos Alberto Correia às 21:52

As revoltas do Sr. Presidente

Sábado, 13.12.08
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Se em alguma coisa este povo está de acordo é na opinião generalizada de que temos, na pessoa do Presidente da República, um cidadão íntegro e acima de qualquer suspeita. A partir daqui quebra-se a unanimidade e é cada um por si.

Apesar disto, por mim, nunca me escuso a mostrar o meu desafecto pelo Dr. Cavaco Silva, em quem nunca votei e, jamais se devendo dizer desta água não beberei, penso nunca votar. É que apesar de a sua honestidade não estar em causa, não consigo esquecer-me de que foi “por acaso” que foi fazer a rodagem do seu carro até à Figueira da Foz, onde “por acaso” decorria o Congresso do PSD e logo, “por acaso” foi eleito para a chefia do partido. Para mim, que creio pouco em acasos e questões de sorte e azar, foram acasos demais e puseram-me de sobreaviso em relação ao modo político de ser do personagem.

Vivi depois a sua maioria, o desenfreado fontismo viário e os tiques autoritários. O homem foi como uma vacina. Se eu já torcia o nariz a maiorias absolutas, ganhei a certeza de que elas são muito perigosas para uma vivência democrática. A essência da democracia – além da liberdade e responsabilidade – assenta na negociação como forma de atingir metas, sem esmagar as várias minorias que não se revêem no projecto maioritário. Para o então primeiro-ministro as minorias eram o verdadeiro entrave à sua visão grandiosa da forma de boa governança. Foram-no efectivamente no buzinão da Ponte 25 de Abril, se bem que já um pouco para o tarde.

 Ao olhar para o Presidente, na genérica rigidez corporal que o domina, na escusa constante a comentar os mais graves factos que assolam o país, na visão conservadora que envolve o secretismo dos seus contactos com o governo e outros poderes da República, percorre-me um arrepio e, mesmo sem querer, não posso deixar de recordar o perigo de, sem uma constante vigilância, decairmos em direcção ao “lago do breu” que um certo “dinossauro excelentíssimo” legou, por demasiado tempo, a Portugal. Também ele dizia querer o bem do povo, era honestíssimo e vivia numa frugalidade exemplar.

No entanto, este homem, que parece pairar acima do correr dos dias da gente vulgar que somos, é, embora por poucas vezes, arrebatado por revoltas intensíssimas. Recordo o caso dos Açores e, ultimamente a sua intempestiva declaração sobre o problema do BNP- Dias Loureiro. Estas duas situações contrastam, de forma notória, com o fugaz comprometimento público quanto a factos e situações cruciais para a boa saúde da sociedade e com a doçura e submissão com que aceitou a destituição da sua dignidade, enquanto Presidente de todos os portugueses, quando, na Madeira, foi o Sr. Silva, do Alberto João, e aceitou não ser recebido na Assembleia Regional. Enfim, critérios!

No entanto, mais uma vez, a sua revolta pareceu-me extemporânea e algo exagerada, mais parecendo defesa antecipada que efectiva resposta a alguma putativa acusação que, quanto sei, ninguém fizera. Volto a frisar: pode não se gostar do homem, mas não se desconfia da sua honestidade material. Então para quê o alarido?

Simples! Ele sabe muito bem que, no decorrer dos seus mandatos foram catapultados para enriquecimento rápido alguns serventuários de estado. Como o fizeram não o sabemos de todo. Há névoas que cobrem muitas utilizações de verbas entradas no país. Ouvimos falar de alguns escândalos. Um por outro deu entrada na Justiça, cedo se perdendo o rasto dos casos e quase nunca se sabendo de conclusões ou sancionamento de culpados. Sabe também do excessivo conluio entre o poder político e o económico-financeiro, permissivo a alternâncias suspicazes e, muito humanamente, não se quer ver metido nesses negócios em que não entra e, creio bem, não aceita, embora não lhe tenha conseguido meter travão. Talvez isso o incomode e lhe faça “saltar a tampa”. Só que não tira as necessárias consequências e em vez de mover céus e terra para se livrar de tão ruins companhias – e nos livrar a nós – enceta a fuga para a frente, toma o seu banho lustral, mostra o enfado que tais personagens lhe causam, mas não age com a força suficiente para se libertar de tais incómodos. Por tanto eles persistem ,multiplicam-se, alastrando como cancro, condenado esta sociedade à incessante menoridade a que nos querem obrigar. É isto que o presidente sabe, é isto que se recusa a ver.

Na verdade, por mais tabus que se estabeleçam, a realidade cai sempre, sem misericórdia, sobre as nossas cabeças.



Publicado em “Setúbal na Rede” http://www.setubalnarede.pt/

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publicado por Carlos Alberto Correia às 02:49

Memória 12 - desafio

Quarta-feira, 10.12.08
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o sonhador
tinha três mãos apontando as oliveiras
raminho de alcatrão flor de pedra
poema do amor

uma das mãos era fumo
as outras eram mulheres
que amo todas em ti

da testa caiam lagos e nadavam patos
alguma coisa para além do aborrecido
dos dias e contas de somar

pernas e braços e peitos supraciliares
dentes nas mãos na boca pregos
martelos e ceifeiras a voar

estrada nos dedos dos pés do alentejo
das formigas e dos olhos
anatomia do acento circunflexo
quase pensamento

perceba o poeta quem quiser



Évora - 1969

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publicado por Carlos Alberto Correia às 14:55

A caneta de oiro

Quinta-feira, 04.12.08
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Há frases e actos os quais, pelo seu peso simbólico, marcam nas nossas memórias um terreno de constante rememoração. Para mim, no referente à primeira situação, está a sentença proferida pelo Dr. Mário Soares do “sou republicano, socialista e laico”. Não me revendo em muitas das públicas atitudes e ideias do Ex- Presidente da Republica, não posso deixar de reconhecer que utilizo bastantes vezes esta frase como forma de identificação.

Quanto ao segundo tema, os actos, recordo-me que um amigo que nada tem a ver com ideologias de esquerda, como facilmente se perceberá, querendo mostrar-me algo concreto que explicasse o seu devotamento a essa desaparecida figura contava-me que, em certo momento do consulado do ditador, numa qualquer efeméride que não fixei, foi-lhe oferecida uma caneta de oiro.

Devia ser bela porque, contrastando com o distanciamento de Salazar perante o objecto, um outro membro do governo, ficou encantado. De tal maneira foi que, ultrapassando o natural recato que seria de bom-tom preservar, atreveu-se a pedi-la ao Chefe do Governo.

Este tê-lo-á olhado com o seu ar de pássaro bisnau retorquindo-lhe:
-Esteja Vossa Excelência descansado que ela ficará guardada até terminar o seu mandato. Quando isso acontecer será sua.
Assim ficaram as coisas. Até que um dia, chegado ao seu gabinete viu, o nosso ministro, a sua secretária deserta de papéis, luzindo de limpa e, no centro, sobre a pasta mata-borrão, refulgia a demandada caneta de oiro.

Foi assim que o ministro soube que chegara ao fim de linha.

Isto, que causava a admiração do meu amigo, para mim, nada mais era que a mostra de desrespeito e cinismo com que o ditador tratava e julgava todos, mesmo aqueles que de mais perto o seguiam. Não via aqui qualquer mostra de elevação de espírito ou a excelsa subtileza reclamada pelo seu admirador. Não via mas…

Com as coisas que se passam no Governo Socialista, mormente no caso da educação, com o escândalo dos falíveis bancos e com as falhas detectadas na sua fiscalização, começo a pensar se não seria bom que o Eng. Sócrates e o Dr. Cavaco Silva começassem a oferecer algumas canetas de oiro a uns quantos personagens notáveis da nossa praça.

Se o fizessem e acertassem nas escolhas, até eu me comprometia a esportular, das minhas frágeis economias, o bastante para comprar duas canetas de oiro que teria imenso prazer em lhes oferecer.

Eu, reconheço, sou mesmo assim. Absolutamente agradecido e generoso!


Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

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publicado por Carlos Alberto Correia às 23:28

Os degraus de Clarisse

Terça-feira, 02.12.08
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O despertador zuniu. O braço lento silenciou-o. Seguiu-se o zumbido do telemóvel. São horas.!
Clarisse procurou acordar o corpo, na aparência, há muito desperto, obsessivamente entretido em listagens de tarefas. Habituado a tal exercício, o cérebro teimava em não se desligar. Foi necessário mobilizar toda a energia anímica para arrastar a perna para fora do colchão, soerguer-se lentamente.
Tem de ser - pensou - e concluiu o gigantesco empreendimento. Levantar-se, após 3 a 4 horas de sono. Já lá iam uns meses nisto … pois, ocupada em longas noites de correcção de exercícios, elaboração de fichas, relatórios, critérios de avaliação, .. a panóplia habitual da docência nos tempos que correm. Nada que pudesse evitar, tudo obrigatório … (esta a firme resposta dada ao marido que lhe pedia pausa, pausa…)
Luz acesa. Olhou-se. A imagem devolvida não merecia parança. O rosto empalidecido, sem fulgor no olhar contornado a negro, não lhe parecia o seu. E se o era, não queria vê-lo. Deter-se nele exigia uma reflexão sobre o estado real da sua saúde, da sua qualidade de vida. Não, não, filosofias a esta hora não! Lá se ia passando o tempo e os relógios não se compadecem com metafísicas. Vamos lá ao plano de emergência: banho quente, escaldando a rigidez dos membros, água gelada afastando a neblina mental, corrida ao roupeiro - bendita moda das calças de ganga. É só trocar a camisola. O casaco pode ser o mesmo. É certo que ando embrulhada nele há uma semana… e depois? Tenho frio… preciso de comprar umas camisolas, um casaco … amanhã. Hoje não tenho tempo. O dia está ocupado com reuniões. . -, iogurte engolido, hesitação sobre o que tragar de seguida – sim, claro, o multi-vitamínico antistresse; o café adiado para o intervalo das 10h, ou, com sorte, para daqui a pouco, se chegar à distância de uma bica na pastelaria.
Decisão tomada, pasta numa mão, chaves do carro no bolso, as de casa na mão já resvalam para o bolso do casaco … (claro que não as posso perder pela segunda vez), bolsa a tiracolo, pasta do portátil ao ombro é tempo de se atirar para o dia fresco. Um espasmo atravessou célere o corpo.
Ai as costas! A fisiatra mata-me. Ou mato-me eu neste ar composto de vendedor ambulante. Anima-te! É só não esquecer o projector, ir buscá-lo e pendurar ao ombro mais esse objecto. Não posso defraudar os miúdos, empenharam-se tanto!

A figura masculina emergiu do corredor, interrompendo a fuga para a rua. Susteve o passo, parada. Todo o seu corpo sugeria movimento, impaciência…
– Olá estás bom, até logo - Um beijo aflorado, só pensado, que a mente estava noutro espaço e tempo.
- Não dormiste outra vez, retrucou a voz masculina.
- Pois que queres, há trabalho para fazer. Se não me despacho… agora não tenho tempo. Adeus.
E lançou-se para o patamar, ouvindo o ríspido «Adeus.» e o que se seguiu: Pensa que um dia não terás de todo tempo. Para ti, para nós, para os miúdos. Ah, esqueceste-te de levar o teu pai ao médico… levei-o eu, telefonou-me aflito
Clarisse autómato, Clarisse de biorritmo alterado, Clarisse em ansiedade permanente nada ouve. Vai pensando na lista de tarefas do dia de trabalho, da semana de trabalho. Alheia a tudo, já está finalmente no carro… e em movimento! UF. Chego a horas de ir buscar o projector e talvez de respirar um pouco.
Olhar distraído pára no retrovisor. Quem és tu que acumulas papéis, funções, despachas obrigações e já te tornaste mãe administrativa, burocrata que delega?
O rodar ( «ó rodas, ó engrenagens r-r-r-r-r-r-r eterno! », ó meu A. Campos!) despertou-a em sobressalto:
os miúdos… não combinaram quem vai buscar o Diogo. O Miguelito fica com a minha mãe depois da escola. Bolas e agora? No intervalo telefono. Como ontem dormiram em casa dos meus pais, nem me lembrei deles… Deus! Não me lembrei dos meus filhos!
Por instantes aflorou furtiva a lágrima. Mágoa acumulada, sobrepondo-se à tralha carregada, Clarisse ainda consegue ligar o telemóvel. Ninguém atende – os meus filhos…, o meu pai … O Tó Miguel tem razão, em nome do quê, de quem pareço uma barata tonta?
8.15 da manhã, passagem pelo portão da escola. Alguns adolescentes caminham sonolentamente. Olhares e sorrisos cruzados. A professora Clarisse gosta de lhes dar uma palavra matinal prazenteira. Já não tem dores, nem pesos na consciência, nem filhos esquecidos, nem pais a suplicar atenção, nem marido relegado.
Stôra requisitou o projector? Hoje mostramos os trabalhos não é? E tem colunas boas? Fizemos um vídeo.
Claro que sim. Vou buscá-lo. Até já.

As vozes luminosas e sorridentes, os passos ensonados em busca do acordar afastam-se, enquanto Clarisse sobe os degraus da escola. Acelerada, acrescenta ao seu “visual” mais um adorno – o projector. E lá vai:

… sobe que sobe
Sobe as escadas
Clarisse é nova
Rosto bonito
Empalidecido

Clarisse pára!
Ai, o livro de ponto! – mais um fardo
E lá vai Clarisse

Anda que anda
Até ao bloco.

Recebe a chave da sala. Hesita sobre o modo de ordenar tantos objectos. Mas começa a escalar:

Sobe que sobe
Arrastando-se…

E nesse instante uma ou duas vozes solidárias, dizem:
- Stôra, nós ajudamos.
- Obrigada meninos.

É deles o tempo até ao final do dia. O sorriso de Clarisse floresce de novo, a atenção dada a cada turma, a cada grupo de alunos não pode diminuir. Clarisse esquece o Miguelito, o pai, a mãe, o marido.
O júbilo da aula, as vozes acesas, implicadas em debate de ideias sabem bem a Clarisse. Como fazer de modo diferente?

13.15 . Passou tão depressa. Tenho de almoçar qualquer coisa rápida … E arruma o portátil, o projector, os cabos, os seus cadernos, as folhas de registo sobre os trabalhos apresentados…
Inicia a descida, após o fecho da sala ( há muito que a revoada de adolescentes se foi… agora menos solidários pois há o almoço e as aulas da tarde), transportando a parafernália indispensável àquela aula. Seria simples se o choque tecnológico fosse real e as salas todas tivessem equipamento pronto a usar. Consola-se, todavia, Por cá até temos bastante material, o pior é que não chega…
O riso, as vozes juvenis fizeram-na pensar nos seus meninos – não os alunos, os seus filhos.
Correu a entregar, projector, depositar livro de ponto, desembaraçar-se do seu portátil. Sentou-se. Ligou o Tmóvel.
- sim sou eu. Não consegui. Trabalhei outra vez até às três…. Pois sai muito tarde …. Como tinhas os meninos…. O Miguelito?.... O quê ? tem febre? Foi para a creche? Sim? Com benhuron… pois… pediatra … sim… sim vou marcar. Beijinhos até logo.Consultou a agenda antes de telefonar para o infantário. Duas reuniões: uma de conselho de turma e outra de Departamento. Lá para as 19 horas estou despachada. Rápida pensou nos sogros. Não, a mãe do Tó Miguel está doente… O meu pai vai buscar o Diogo, eu vou buscar o Miguelito e levo-o ao pediatra.

14.30 – tosta mista e iogurte. Uma peça de fruta. Café para arrebitar.

De novo, planeou o dia. Ligou para o infantário Sim era melhor levar o menino ao médico. Cheio de febre e vómitos! Bolas, Bolas! O Tó Miguel hoje tem reuniões até tarde. Sim vou buscá-lo.

15.00
Não te esqueças que temos reunião de subnível para planificar e afinar as actividades do PAA . Não te esqueceste? Olha e trouxeste o PEE? Tem de bater certo com as metas. É para fazer antes da reunião de Departamento.Agradeceu vivamente à colega ( …. há almas caridosas que recordam.. não fora esta cadeia…, com tanta reunião esquecíamo-nos de metade)

- Claro que não. Tenho o Miguelito doente mas resolvo isso ( por dentro renascia a zelosa profissional e desmoronava-se a mãe… Gizava um plano. Sim ia buscar o Miguelito, mas seria a sua mãe a levá-lo ao médico)

A colega afastou-se, comentando o chato que aquilo era. Chato? Já é assim que nós falamos do que nos é mais querido ( afastou o pensamento… ia conduzi-la ao incumprimento)

Mãe, sou eu,sim já marquei o pediatra . Tenho reuniões não posso faltar. Levas o Miguelito ao médico. Depois vou buscar-vos. A consulta é às 17.30. Como o médico demora sempre….
Pois é…. Vou buscá-lo agora. Até já.

Corre Clarisse, corre que corre.

Leva o menino triste, escaldando. Mima-o, cumula-o de beijos. Miguel não reage. Clarisse explica-lhe o planeamento do dia, acrescentando, manipuladoramente, tu sabes que a mãe tem de trabalhar para termos dinheiro, e a avó gosta muito de ti. Avó é mãe duas vezes.

Miguel deixa-se levar. Calado roda nas mãos um papel que abandona no banco, ao lado do saco da mãe quando Clarisse o deposita em casa da avó.
A rapidez dos beijos, as palavras de carinho fugitivas, as combinações céleres, tão despojadas de afecto, preenchem o coração de Clarisse enquanto se dirige ao carro.
Que fazer??

16.15. Abriu a porta traseira do carro e atirou para lá o saco. Rumou para a escola. Estacionou.
Abriu a porta traseira do carro, novamente. Colado ao saco o papel que Miguelito abandonara. Era um desenho: no centro, diante do computador, rodeada de livros a mãe. Ele, na gigantesca atitude acusatória, colocara-se muito pequenino à entrada do escritório. Entre ele a mãe, ocultada pelos papéis, nada. Um vazio. De costas, a mãe. De frente o pequenito de três anos, representando-se insignificante. Pelo meio nada. O espaço de desolação bem visível!

Clarisse tremeu.


Fernanda Afonso

Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

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publicado por Carlos Alberto Correia às 14:25