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Maria Vitória

Quinta-feira, 23.10.08







Todas as semanas vou ao peixe. É um gosto que tenho desde pequeno. Já criança adorava ver em cima das bancas os pequenos e grandes seres do mar. Cada um representava uma aventura e um mistério trazidos do grande oceano à seca planície. Nessa viagem a minha imaginação galopava frenética ao encontro de caravelas e atlântidas perdidas. Por isso, desde sempre, gostei de ir ao peixe.

Só ontem não!

Quando cheguei à banca já ela lá estava. Pequenina, velha, metida num casaquinho de malha que já fora azul escuro, sendo agora só borbotos e que na sua pobreza parecia ser um ténue escudo contra o mundo. Falava com um dos vendedores. Troquei duas brejeirices com quem me veio atender e comecei a namorar o pescado. Perguntei preços, vi qualidades, fazendo a minha escolha.

Ao lado, o vendedor instava a cliente: Então D. Vitória, o que é que decide.
Olhei para o lado e vi-lhe o olhar doce dançar indeciso entre o carapau e a garoupa. Como éramos os dois únicos clientes o vendedor não pressionava muito mas, começa a sentir-se que já estava a ficar um tanto ou quanto impaciente. Já eu tinha comprado salmonetes, um belo pregado e ia a entrar no imperador quando, uma leve voz ciciou a meu lado:

É que o meu Joaquim está doente. Há duas semanas que só come carapaus! Já começa a estar enjoado. Pese lá duas postas de garoupa.

A garoupa tinha um ar lindo. Seria a minha próxima compra. Já antecipava as postas grelhadas, a quebrarem-se em lascas plenas de sabor e o vendedor a dizer:

Pois, é, D. Vitória. São onze euros!

Ai, meu deus, disse aflita a senhora. Só tenho dez euros e isto é para comermos toda a semana. Desculpe-me, desculpe-me! Onde é que eu tinha a cabeça? Olhando para mim pedia protecção e que a compreendesse. Não me leve a mal, mas não posso levar essas postas. Faça-me o favor, embrulhe-me apenas uma.

Era tão visível o sofrimento e a humilhação da senhora que o primeiro gesto de irritação do vendedor morreu à nascença. Ainda quis fazer uma gracinha dizendo que com aquele dinheiro podia comprar carapau para duas semanas, mas ficou a meio da frase, siderado pela fugaz compreensão daquele mesquinho drama.

Agarrou na posta de garoupa com que iria fazer brilhar o menu do seu doente, pensando possivelmente o que fazer com os cinco euros restantes para os dias que faltavam da semana arrastando-se devagar, só, frágil e humilhada para a porta da praça.

Todos ficámos uns instantes calados! Depois:

Então o que é que vai mais hoje?

Não ia mais nada. Não poderia ir mais nada. A posta de garoupa solitária sobre a banca era uma espinha cravada no meu dia.

Paguei com notas que queimavam os dedos e saí, atordoado, a pensar que a Maria Vitória, de seu nome, somara mais uma derrota, às quantas mais caladas ao longo da parca vida.




Publicado in “Rostos on line”http://rostos.pt/

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publicado por Carlos Alberto Correia às 22:21

Memória 11 - nós limite de dentro

Quarta-feira, 22.10.08
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um estômago americano à
conquista do espaço
o lançamento de uma decepção
a pressão atmosférica da desvalorização da libra

os ingleses lamentam a melhor solução
depois da pesca em águas turvas
reunião em lisboa

atenção implacável no
voleibol das crónicas administrativas
correspondentes em todo o país

ganhei o totobola

a lista dos donativos vai ser publicada
na vala das vítimas com fotografias a dizer

sorria



Guiné, Bafatá, 6 de Junho de 1968

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publicado por Carlos Alberto Correia às 14:14

Sou heterossexual! O que é que eu tenho a ver com isso?

Segunda-feira, 13.10.08
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No passado dia 10 lá foi a votação, na Assembleia da República, a lei sobre o casamento entre homossexuais, apresentada pelo Bloco de Esquerda e pelos Verdes, e, como se sabia, foi chumbada por obra e graça do Partido Socialista.

As coisas têm o valor que têm ou, muitas vezes, aquele que, quem pode, lhe quer dar. Neste caso o PS considerou que o facto era de somenos importância, coisa que consubstanciou liminarmente quando o Primeiro Ministro, cerce e lacónico, sentenciou: “Não faz parte do programa”.

E disse!

Admirável é que uma questão fundamental de liberdade das pessoas tenha de esperar por uma folga programática para poder ser votado por um partido, dito de esquerda, auto-proclamado defensor das liberdades individuais. São coisas estranhas que acontecem no meu mirífico país.

Sei que vivemos na esquina de uma mudança de paradigma económico-financeiro e que as preocupações vão todas para as formas de ajudar os bancos que, em nome do beneficio próprio, nos prejudicaram . São lógicas estranhas as quais, por minha incapacidade, tenho alguma dificuldade em perceber. Nos meus tempos premiava-se o que era de feitura correcta e castigava-se a incapacidade culposa ou causadora de prejuízos. Pelos visto alguma coisa de essencial mudou enquanto eu estava distraído a tentar perceber porque é que os homossexuais deveriam poder aceder ao estatuto de casamento.

A sociedade ocidental tem vindo num caminho de valorização dos direitos individuais. Fazendo o casamento parte inalienável de tais direitos, o mesmo vocábulo tem recoberto diversos conceitos. Assim, o casamento entre nobres era negócio de estado, nas sociedade agrícolas pretendia o emparcelamento de propriedades fundiárias e nas sociedades burguesas o aumento dos cabedais. Nos tempos modernos apontou-se para a união entre pessoas, de sexos diferente, ligadas por laços sentimentais. É claro que, correndo nas profundidades, vai um rio de estratégias nupciais que não se confessa e nem mesmo se aceita. Mas isto são macaquices de cientistas sociais que teimam em não querer considerar, como realidade, aquilo que alguém quer que assim seja considerado, não sendo embora mais que o seu contrário ou a sua diferença.

Confuso, não é?

Não o será tanto se considerarmos que o que muitas vezes é consignado como facto costumeiro ou mesmo natural mais não será que o fruto de um hábito cultural, isto é, de uma escolha feita em determinada conjuntura que pareceu ser, no momento, mais benéfica para o todo que outras escolhas existentes e possíveis. Seria portanto uma situação de alternativa podendo, a qualquer momento, ser trocada por outra objectivamente de maior valor ou pertinência. Só que, quando um hábito se encastra é o diabo para o remover, mesmo que o beneficio dessa mudança esteja mesmo a espreitar à porta.

Assim somos e assim nos vamos entendendo.

No entanto a este fatalismo opõem-se outras forças de sinal contrário. É, como diria Hegel ou Marx, a questão da dialéctica, que intranquiliza o estatuído e remete para o a fazer. Nestes terrenos situam-se as duas formas extrema de entendimento da sociedade: a conservadora e a progressista. Nós, escolhemos o caminho que mais nos apraz sabendo que nunca estaremos inteiramente num ou noutro campo e que iremos, isso sim, situando-nos, predominantemente, mais num que noutro.
Daí as dúvidas e as controvérsias.

Dúvidas tive bastantes sobre a questão do casamento entre homossexuais. Perguntando-me das razões de ser das mesmas, fui descobrindo o quanto de preconceito se escondia sobre aparentes boas razões para negar essa possibilidade. É ou não verdade que aceitamos e defendemos que as ligações tem a sua base no afecto existente entre pessoas? Se assim é, em que difere a afeição ou amor se o objecto de tais sentimentos é do mesmo sexo ou de género diferente? Modifica isso a essência do sentido? O prazer ou a dor causados por uma relação terão intensidade diferente se os actores forem do mesmo sexo? Certamente que não. Então que direito temos nós, ou a sociedade, de determinar que só podem constituir-se, legalmente, em díade, indivíduos de sexo diferente? Não acham que é de um autoritarismo moral a rondar o fascismo sentimental?

Porque assim penso defendo que é da mais liminar justiça que aos casais homossexuais sejam reconhecidos os mesmo direitos que aos heterossexuais. Quando se começa a justificar a retirada de direitos a uma minoria, só por ser diferente, nunca se sabe onde , e como, tal caminho vai acabar. É por defesa dos meus direitos, porque os não quero ver perigar, que defendo os direitos dos outros. Além disso, que mal virá ao mundo se reconhecermos o casamento gay? E quanta infelicidade instituiremos e manteremos se não tivermos coragem para reconhecer a sua dignidade?

Ah! O argumento da procriação, não é? Então que se cuidem os anaspermáticos e as menopáusicas. Segundo este critério, a hipótese de se casarem, mais não será que uma injustificável aberração.

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publicado por Carlos Alberto Correia às 17:28