o que sei de abril em nós
Quarta-feira, 23.04.08

I
não há razões perfeitas nem este é um mundo completo
desconheço amor onde o afecto igualmente se mantenha
nem sei de horários sempre desejáveis
o que sei é um saber de coisas por saber lançadas na minha
descoberta
por isso hoje em abril na escola alfredo da silva
com a arma das palavras e o sentido da cantiga
recordo o tempo em que esperava ver surgir esta nação
II
viemos expor-nos nas palavras e traçar o quadro do percurso
meteoritos descendo sobre a terra e produzindo rápida claridade
viemos de passagem falámos da viagem
nem todas as fontes iniciam rios mas todos os rios nascem de uma
fonte
importante é que deixem no seu rasto de águas renovadas
o caminho vegetal da alegria
assim em abril as coisas acontecem além das intenções e
pensar que é possível parar o movimento é como
tapar com panos pretos as janelas
para cortar o dia
que a revolução é sentimento de mudança
há muito arquitectada no coração das gentes
mais que um corpo é paixão
mais descoberta que sempre
quero dizer
fazer a revolução é diferente de criar uma liturgia
que em abril semente de actos novos em campos de imprevisto
não se admitem tréguas nem hipóteses
mas um corpo de mulher por sobre as ondas
para o qual as nossas vidas tendem
III
suponhamos que num acaso que nada deve ao acaso
se abriam nas janelas rasgos de verdades e deslumbrados
nos olhos surgia uma cidade que sendo a mesma outra transparecia
pensemos um dia em que por cima do sorriso
os homens prolongassem em festa a primavera que andava recolhida
e súbita rebentasse em seiva de flores
por sobre os aços
imaginemos o momento de tudo ser possível
mesmo a bandeira do vento no rubro da paixão
então
era uma vez um povo com um rio carregado de tristeza
era uma vez uma pátria de marinheiros e sem navios
que plantara uma praia inteirinha de viúvas com olhos de gaivotas
e coração de rocha
era uma vez um povo com a noite sobre a nuca
era uma vez um frio
IV
não há razões perfeitas nem este é um mundo completo
e estamos de passagem
só o povo flui constantemente se conserva e é diferente
nós somos uma parte da viagem
um porto a encontrar
juntos aqui em abril tentemos
o novo passo a dar
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“Pré(k)ários” a verde
Sexta-feira, 18.04.08

Hesitei bastante sobre o tema desta crónica. Dois assuntos ressaltavam da massa de acontecimentos deste período. Um era a visita do Presidente da República à Madeira tendo, como pano de fundo, as subtis declarações do inefável Alberto João, o outro seria a angustiante situação de tanta gente que não só ganha pouco, como não dispõe de qualquer protecção social porque trabalha a recibos verdes.
Ponderações feitas ponho de lado a viagem à Madeira. As razões não são difíceis de explicar embora sejam difíceis de perceber. Não votei, nem votarei em Cavaco Silva. Para além disso ele legitimou-se como Presidente da República Portuguesa e, desde aí, não passando eu a gostar mais dele, aceito-o, democraticamente, na sua função e no respeito que, pela mesma, lhe é devido. No entanto, o Sr. Alberto João veio demonstrar cabalmente que, quem se deslocou à Madeira não foi o Presidente mas sim o Sr. Silva. Portanto para mim o assunto ficou arrumado. O Sr. Silva, que aceitou este estatuto conferido pelo Sr. Alberto, não é o meu Presidente porque não soube assumir o seu lugar menorizando-se - mais um - perante o incomensurável e misterioso poder do Sr. Alberto.
Passemos, por isso, a assuntos mais sérios.
Na legislação de trabalho – inscrita na sua maior parte no Código de Trabalho – consagram-se os seguinte tipos de contrato:
- Contrato sem termo, isto é, os efectivos permanentes da empresa;
- Contrato a termo incerto, determinado para realizar trabalhos bem definidos e temporários mas de que não se conhece a data de término;
- Contrato a termo certo, utilizado até três anos (em casos especiais podendo alargar-se até seis anos), estabelecidos para postos de trabalhos não permanentes e com indicação expressa de tipo de trabalho e do início e fim do contrato, que deverá ter a duração do trabalho a executar. É claro na lei que não poderá ser contratado a prazo um trabalhador que vá ocupar posto de trabalho de características permanentes.
Assim, se uma determinada função é para ser executada continuadamente para a prover não poderá ser contratado ninguém a prazo. Para um lugar permanente terá de ser concedido ao trabalhador um contrato sem prazo.
Olhando para as definições e permissões destes tipos de contratos parece-nos que não existe qualquer iniquidade na letra da lei, sobretudo se for tido em conta que o trabalho a prazo deve ser encarado como a excepção e não a regra de contratação. É de fácil entendimento que se uma empresa precisa de um aumento temporário da força de trabalho para uma situação de aumento temporário de trabalho, ou para uma obra ou tarefa perfeitamente delimitada, não se veja obrigada a estatuir contratos de cariz permanente. Seria pouco racional e criaria bolsas internas de subemprego. Mas o contrário também é verdade e racional. Se a tarefa ou função forem de necessidade permanente não fará sentido contratar a prazo alguém que irá permanecer longo tempo a desempenhar essas funções.
No entanto é isto que acontece.
Aproveitando a fraca, ou quase inexistente, fiscalização fazem-se contratos a prazo para situações onde liminarmente a lei tal não permite. As justificações dadas pelas entidades patronais vão desde a inflexibilidade das leis laborais – entenda-se a dificuldade em despedir – às questões da produtividade.
Isto é puro blá-blá.
Efectivamente a lei proíbe o despedimento “sem justa causa”, não impedindo porém que o mesmo se faça quando essa causa existe, e é provada em processo disciplinar. Por outro lado, o argumento de que a empresa tem que alargar ou contrair os seus quadros de pessoal, conforme as solicitações do mercado, sendo de considerar, não passa muitas vezes de mera desculpa. Primeiro porque a gestão da empresa, para ser competente, terá que ter uma previsão do desenvolvimento do mercado e criar estratégias para isso e, segundo, porque a lei lhe permite nesses casos – se tudo o mais falhar – o recurso ao despedimento colectivo.
Só que o despedimento colectivo, além de uma carga razoável de burocracia e necessidade de prova das situações invocadas, tem, normalmente, um impacto desagradável na comunidade e fortalece a solidariedade entre trabalhadores e o papel dos sindicatos. Por estes factos as empresas evitam tal medida e, na falta da requerida flexibilidade para despedir, recorrem aos contratos a prazo excessivos e aos recibos verdes.
Se o exagerado número de contratos a prazo indevidos cria já precariedade, tem, no entanto, sobre os recibos verdes uma vantagem para o trabalhador e uma “desvantagem” para o empregador. Exigem os pagamentos para a Segurança Social. O remédio? Recibos verdes.
No entanto, esta forma de pagamento, que não consubstancia por si um contrato, foi idealizada como prova de prestação e recebimento de serviço liberal. Pretendia-se com ela fazer fé, perante o fisco, que um determinado acto fora pago e deduzidos os respectivos impostos. Assim, estariam neste caso os actos médicos livres, o apoio jurídico e qualquer prestação de serviço que não implicasse subordinação jurídica à entidade pagadora. O simples facto de a pessoa neste caso ter um gabinete fixo no local de trabalho, poderá implicar não ser reconhecido como trabalhador liberal, logo ser considerado um falso prestador de serviços livres.
Hoje, muitas empresas recorrem a este tipo de relação para evitarem os encargos sociais e aumentarem a mobilidade dos seus trabalhadores. As vítimas mais frequentes são os jovens, licenciados ou não, e os trabalhadores acima dos quarenta anos que tiveram o azar de perder os seus empregos.
A facilidade em, deste modo, torpedear a lei está a causar graves distúrbios na sociedade. A organização de vida e independência da juventude tornam-se impossíveis, a instabilidade acentua-se em todas as dimensões desde as económicas às afectivas, as perturbações psicológicas e sociais sucedem-se e mesmo a propalada necessidade de aumento de produtividade fica, pela instabilidade, inexperiência e desmotivação, completamente comprometida.
E no entanto era tão fácil resolver o problema. As leis existem e são claríssimas. Bastava vigiar o seu cumprimento e, como elas determinam, todos os contratos a prazo e recibos verdes que não obedecessem ao legalmente estatuído passarem a contratos sem termo. É apenas por em campo a fiscalização e usar as bases de dados da Segurança Social e das Finanças. É difícil? Deixem-me sorrir levemente e permitam-me que desconfie que alguém, que não devia, quer deixar as coisas assim, talvez porque de si parta o mau exemplo.
Quem for Estado e quiser enfie a carapuça.
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falenas I
Terça-feira, 08.04.08

por dentro do rumor
habitual do silêncio
é que existe o rumo
a chamada o calor
do corpo onde desfolho
minhas falenas de amor
com lentidão sigo a rota
clara de uma borboleta
subtil reminiscência
do branco onde me assumo
como rouxinol de fumo
no canto da tua ausência
falenas
onde se doem os prantos
deste corpo quase etéreo
nomes das breves passagens
percursos de uma viagem
ou abrir de outra janela
falenas
no meu corpo se distendem
na memória apreendem
as brevidades da vida
asas de sombras esguias
tapetes de fantasia
na zona do inconcreto
falenas
imersas na claridade
meus sonhos de uma cidade
povoada de paixão
meus amores minhas idades
hipnoses de saudades
perto da sua extinção
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Casamentos, divórcios e bispos
Sexta-feira, 04.04.08

De um ponto de vista antropológico não há casamento, há casamentos. De facto cada grupo social institui, conforme as suas vivências e conveniências, a forma de ligação homem/mulher que melhor serve os intuitos do agregado. Uma das poucas regras sociais com aceitação quase universal é a da proibição do incesto. A cedência de uma mulher de um grupo a outro estabelece uma relação de aliança fortalecedora de ambos os conjuntos.
Desta forma o casamento é, sem sombra de dúvida, um acto contratual.
Por isso o casamento dos nobres era uma questão de estado. Igualmente, quando a Revolução Industrial se implantou, o casamento dos filhos da indústria seguia estratégias nupciais de aprofundamento do poder económico-financeiro. Bom casamento era aquele que acrescentava património às famílias.
E o amor? Onde entra nesta história?
Bem, o amor-paixão é uma invenção romântica da civilização ocidental. Não sendo, muitas vezes, possível satisfazer necessidades afectivas com os casamentos contratuais, e não deixando os seres humanos de perseguir afectos, começa a enaltecer-se, na literatura, a transgressão, como acto de superação do simples registo de interesses económicos ou nobiliárquicos, através da exacerbação de uma sentimentalidade arrebatadora, a raiar o irracional e, quase sempre, com desfecho trágico. (Vide, Tristão e Isolda; Romeu e Julieta).
Não deixando de, nas sociedades modernas, existirem estratégias nupciais mais ou menos subterrâneas, o valor declarado e fundador nas nossas ligações é o afectivo. Um casamento faz-se por amor, isto é, por escolha mútua de onde, presume-se, estará afastada qualquer noção de ganho económico ou social.
O meu amigo Belegário não acredita muito nisto. De tal maneira descrê que, ainda não há muitos dias dizia-me, referindo-se à experiência pessoal observada no microcosmo da empresa onde trabalha:
- Olha, Carlos, eu não tenho dúvida nenhuma que as pessoas se casam por amor. Aliás, tenho visto isso, com alguma frequência na minha empresa. As pessoas contactam-se, conhecem-se, namoram-se e casam-se. Nada disto seria excepcional se não fosse o caso das raparigas da empresa se apaixonarem sempre por doutores ou engenheiros. Não conheço um único caso em que se tenham apaixonado por contínuos ou motoristas.
Mistérios que o Belegário encontra os quais, no essencial, não mudam as observações até agora expendidas.
Temos portanto o casamento como um contrato, uma vez que institui direitos e deveres, mas como um contrato especial fundado no afecto entre os cônjuges. Hoje nem o mais empedernido conservador ousa dizer que o casamento segue linhas de interesse contrárias à livre escolha sentimental dos nubentes. Nem mesmo quando isso é claramente visível.
Aceitamos portanto ser no casamento a livre escolha das pessoas que o institui e o torna aceitável em termos sociais. Não percebo, assim, haver tanta dificuldade em, seguindo a lógica da opção, aceitar que quando um dos componentes da díade considera já não ser possível ou desejável a continuidade da ligação seja obrigado a continuar numa convivência que se tornou penosa ou, no mínimo, desagradável. Sou pois, indefectivelmente, pela manutenção da escolha livre tanto para a celebração como para a dissolução de qualquer relação conjugal. Quanto a mim, basta um elemento do casal querer por termo ao vínculo e ele deverá poder dissolver-se sem complicações de maior. Aliás, de facto, é isto que acontece. Quando o amor acaba termina a relação real mantendo-se, embora, a mesma por arrastamento do cadáver contratual.
Em Portugal, nos tempos da outra dama, o domínio da Igreja Católica obrigava toda a gente a manter os casamentos até à morte de um dos cônjuges. A infelicidade e os prejuízos causados às pessoas e ao tecido social, por tal imposição, são por demais conhecidos para que valha a pena estar a tratá-los em pormenor. Ressalta apenas a sempre conhecida propensão da Igreja para dominar a vida social, não apenas dos seus seguidores – com todo o direito – mas mesmo daqueles que lhe são desafectos e sobre os quais nenhum direito lhe assiste, a não ser o direito de abuso, sempre reivindicado.
Apesar de ser altamente privilegiada no nosso país a Igreja Católica, pela voz autorizada dos seus bispos, vem de vez em quando carpir mágoas à boca de cena. Se tivermos em conta o que reza a constituição em termos de igualdade de tratamento das religiões verificaremos estarmos em falta grave para com todos os outros cultos. A existência do pretenso estado do Vaticano permite-lhe reivindicar o tratamento preferencial de estado a estado, ultrapassando o múnus cultual, intrinsecamente da ordem da consciência, passando de relações de culto a relações políticas. Se já isto é mau, esquecem-se com frequência os mesmo bispos que, além de deterem uma rádio, de nível nacional, com várias antenas emissoras, já possuíram um estação de TV a qual, de moto próprio e com interesses comerciais, alienaram no mercado e, escandalosamente, ainda emitem, duas horas todos os domingos, na nossa rádio principal, benesse que nenhum dos outros cultos possui.
Não estão no entanto satisfeitos porque a sociedade civil lhes diz diariamente que se mantenham nos limites traçados para a sua instituição. Mas eles querem mais. Querem manter o monopólio de serviço religioso nos hospitais, no exército, nas escolas. E querem que o Estado lho reconheça e lhes pague por isso. Como não vão obtendo o desejado fazem pressão sobre o Primeiro-ministro para que coarcte a liberdade legislativa da Assembleia da Republica e para restrição da actuação libertadora daquilo a que ousam chamar “ Estado ateu”. É, senhores bispos, a completa perda de vergonha. O vosso papel é aquele que a Constituição reserva para os credos religiosos e mais nenhum. Como nenhum outro direito vos deve ser reconhecido e, deixem-me lembrar que Jesus Cristo, que dizem seguir e evocam como fundador da vossa religião, disse acerca de dois mil anos: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” e, aprofundando: “ o meu reino não é deste mundo”.
Só respeitando este ditames podereis olhar para quem ainda em vós acredita e, como na Bíblia, proclamar com legitimidade e a plena voz: “Quem tem olhos que veja, quem tem ouvidos que ouça”. Caso contrário, como pessoalmente penso que acontece há muitos anos, não estareis a dar a Deus o que lhe pertence por demasiado interessados em fruir completamente tudo o que vem ou é de César.
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Memória 5
Terça-feira, 01.04.08

descobri
numa estante
da velha biblioteca
um livro raro
não era um livro
de capas bordadas a oiro
nem tinha folhas
de pergaminho
era um livro velho
e amarelo
abandonado há muitos anos
que ficou p'ra'li sozinho
na lombada tinha o título
"em busca da perfeição"
em nota do autor
tinha "solidão"
eu senti carinho
pelo livro que ninguém lia
...se era o meu retrato
que antevia
Évora, 1956