Os lutos de Esmeralda
Quinta-feira, 27.09.07

Pega-se numa palmeira ainda arbusto, retira-se da terra onde cresceu e, com todos os cuidados, transplanta-se para local apropriado. Temos noventa por cento de probabilidades de que a palmeira morra.
Se isto é assim com um vegetal, o que se passará com um ser humano? Provavelmente nada de especial, senão é impossível entender o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra em relação ao Sargento Luís Gomes, quer na substância, quer nos seus termos.
Reafirmando a decisão de primeira instância ordenaram os juízes deste tribunal que a pequena Esmeralda fosse entregue ao pai biológico.
Não duvido que a decisão esteja bem estribada em normas de direito, mas nada me obriga a concordar com tal deliberação. Nem sequer consigo encontrar razões para, neste caso, concordar com o estrito seguimento das leis, neste país onde a delonga no tratamento de processos deixa sem castigo tantos e mais gravosos crimes.
É crime desobedecer ao Tribunal? Sem dúvidas que é. Mas, todas as desobediências têm o mesmo valor facial? Com certeza que não! A sentença de prisão por três anos a que Luís Gomes foi condenado, não é, para a sensibilidade pública, um nítido exagero? A resposta foi veementemente dada, ainda não há muito tempo, por um público emocionado e incrédulo a tanta sanha justiceira em relação a este homem que apenas pretendeu defender a integridade emocional de uma criança a qual, no seu coração, já lhe pertencia.
Ah! Pois! Mas a transacção, no sentido nobre da palavra, não decorrera segundo os preceitos legais. Admitimos que sim mas, no interesse da menina evocado, desde sempre, pelas instâncias judiciais, não seria preferível preservar-lhe o bem-estar, a saúde, quem sabe se a vida, aceitando, de uma mãe sem possibilidades económicas – com a ausência de um não-pai contumaz -, uma criança para agasalhar e mimar? Parece bem que não. Na dificuldade de concertar legalmente e em tempo justo a adopção, esperar-se-ia que a mãe e a criança tombassem de exaustão e fome para então se percorrer o caminho sacrossanto de uma legalidade encerrada sobre si própria. Sinceramente, é desumano!
Como também acho inaceitáveis os termos em que os ” pais afectivos” são descritos na pronúncia. Parece que o pecado original de não ter obedecido à tardia ordem de tribunal para entregar a “sua criança”, a um pai subitamente descoberto, entranha toda a lógica judicativa. Então eles nunca pensaram no bem-estar da Esmeralda? Os anos que trataram daquela criança foram puro egoísmo? O tempo de prisão sofrido, as provas de amor dadas pelo casal é só interesse próprio?
Distraído anda o julgador que tal pensa.
O que eu encontro na acusação e no seu tom é qualquer coisa de conservadorismo social que visa castigar a mãe natural – que parece não existir em todo o processo - pelos seus comportamentos morais, os pais afectivos por porem o amor acima das prescrições sociais, e premiar unicamente o acto biológico masculino de procriar, dando-lhe um estatuto muito superior aos actos sucessivos e permanentes de manter e educar.
Em qualquer sociedade evoluída não é este o pensamento dominante.
Não é preciso, para resolver esta embrulhada, recorrer a psiquiatras – com ou sem pedo anteposto – nem a sofisticadas análises societais. O senso comum diria que, estando as coisas no pé em que estão, o melhor seria permitir a continuidade de permanência da menina com a sua actual família, permitindo o avizinhar da criança aos pais biológicos (a ambos), até que em idade decisória fosse ela a escolher com quem quereria continuar a viver. Fora disto receio bem que, por melhores intenções havidas, na vida da Esmeralda se venha a instalar uma imensa falha conducente a enormes e continuados lutos sem resolução.
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setembros II
Sábado, 22.09.07

I
aguardo agora a passagem da paz sobre o colibri do tempo
tumultuosos de imensidão doem-me os espaços
aqui te espero e me perfaço
alguém me disse
a hora de partir é um inverso sorriso
dolorido no momento
em que prantos morrem por dentro das vozes
tal um substantivo estala lentamente no real dos dentes
e adormece recalcando a luz e o olhar
aguardo calmo o tempo
de parar
II
estudas vagamente o lento traçar das pernas
espontâneas as coxas sobrenadam
recolhidas nas memórias
resides nessa messe subtil e recortas o recôndito do sexo
pleno exercício de perfeccionismo
quando te dás e és meiga generosa e pensativa
encontro-te por vezes no todo onde resisto
lugar de movimentos e recusas
procura imediata de tudo quanto é novo
inocente e pleno e montado na loucura das palavras
setembro avança e as notícias vagamente vão chegando
III
há quanto tempo espero o teu sinal
égua de vento carrossel de chuva
e preparo as imagens que se perdem nos amados Setembros
entre as muitas águas da realidade
dizes-me
em setembro meu amor iremos aos campos
onde as borboletas se amaram com doçura e se extinguiram
pequeno fogo que ilude as madrugadas e o céu é pasto
de mansas estrelas iniciais
pedes-me mudamente que te espere
contas histórias incompletas e heróicas
produzindo os alicerces da minha catedral
porque me falas de setembro
se todas as sombras estão paradas
e desmoronadas pelas frinchas da tristeza
as paredes escurecem em prematuros invernos
vesperais
que nada tivesses dito por setembro
e me fosses interdita meu amor
nem teimasses em parecer possível
ó irrealizável alvorada de azul transparente e completa
tonta gazela que te esvais nos moinhos das palavras
quando desapaixonada comentas
em setembro lembro-me da morte
e fechas os olhos contra a almofada
e calas o medo das tardes
por enquanto doces e doiradas
e do vento fresco nos ocasos
pesados em abismo sobre os olhos
melancólicos e trágicos de nuvens
plantadas à porta dos sorrisos
IV
em setembro longe das promessas por fazer
ou dos sonhos por cortar
construí esta história nas asas dos ventos minerais
em setembro não vieste o sonho desfazia
em setembro entre raivas e esperanças
o tempo por demais se consumia
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setembros I
Sábado, 15.09.07

I
recordo a melancolia dos beijos
suspensos entre o hálito de setembro
e um insuspeito golpe de outono
traduzo o lume brando dessas tardes
os ocasos fortuitos de langorosos sóis
no ruge-ruge de olhos marginais
no incómodo da pele traça a tua mão
arabescos de fogo sobre as malvas
estáticas em tórridos areais
II
soltam-se as primeiras nuvens e os céus
ainda claramente juvenis caem na modorra
dos apressados hábitos
cinzento é acampamento de esperanças
no solitário corte dos umbrais
III
eu sei
não mais cantos de cigarras não mais
somente as ternas sensações pretéritas
remordem em remorsos outonais
eu sei
e por saber estou de qualquer modo
por demais afastado da acção
recordo os lumes velhos
e esmagando rumos ou trovejando camas
procuro no casulo a paz desta estação
dobo a luz afago a natureza
preparo o advento na minha fortaleza
de outros dias grandes e ferozes
onde termine a minha hibernação
IV
o vento largo e fresco amarinha
arrasta as coisas velhas pelo ar
setembro é chegado
a luz caminha
devagar
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Mercado de Rua "Marquês de Pombal": Mercado de Santa Maria / Verderena - Curiosidades...
Quarta-feira, 12.09.07
Mercado de Rua "Marquês de Pombal": Mercado de Santa Maria / Verderena - Curiosidades...
Movimento de Cidadania em prol do Mercado do Marquês. Iniciativa de Cabós Gonçalves a apoiar. Visite o Blogue.
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O fatinho do Franklin
Quarta-feira, 12.09.07

Foi uma estranheza. Um escancarar de boca. Uma autêntica espantação!!!
O meu amigo Franklin, génio maior da defesa do comércio local estava ali, mesmo na minha frente, no mais impossível dos lugares. No centro comercial.
Perguntar-me-ão qual a novidade. Qualquer pessoa vai a uma grande superfície, pelo menos, de vez em quando. Até mesmo os mais renitentes comerciantes tradicionais lá vão fazer umas compritas…
Só que o Franklin fazia gala em nunca ter entrado num centro comercial. Para ele, todos os malefícios da sociedade de consumo, todas as agruras da globalização ali se encontravam, física e simbolicamente, representadas. Se o demónio residisse em algum lugar era nesse antro que, certamente, repousaria os seus metafísicos ossos. A sua Bíblia era a Caverna, de Saramago, a sua caldeirinha de água benta, o abaixo-assinado contra a abertura das grandes superfícies ao Domingo.
Por isso lhe disse: - Oh! Homem, tu por aqui? Mas que grande sacrilégio! Então e o comércio tradicional onde fica agora?
- Nem me fales nesses gajos – explodiu. Que rebentem todos! Nunca mais me vais ver numa loja qualquer. Palavra de honra. Seja eu ceguinho se mais alguma vez caio nessa parvoíce.
Iracundo gesticulava violentamente enrubescendo quase até à apoplexia.
Pensei para comigo que só coisa muito séria levaria o meu amigo a voltar as costas aos aliados de uma vida e tornar-se assim, todo de rompante, para o inimigo.
-Conta lá, pá!
Abriu-se a barragem e o rio desaguou torrentoso pela encosta das palavras.
Era uma vergonha. Não podia ser. Então ele, que fora convidado para um casamento, ao dar a volta ao guarda-roupas não encontrara véstia digna da cerimónia. Decidiu por isso comprar uma sécia catita que estivesse à altura do acontecimento e não envergonhasse a família. A mulher bem o tentou para ir ao centro comercial: - porque lá havia muitas lojas, maior escolha e o preço até poderia ser bem melhor. Por causa da concorrência (esclareceu). Mas ele, nada. Certo da sua razão apostou em comprar o fato numa casa comercial do burgo. Centros comerciais é que não! Logo ele que os considerava um clamoroso perigo de lesa tradição.
Por isso, arrastando uma furibunda esposa, correu seca e meca e lá conseguiu encontrar o fatito que lhe ficava a matar:
- Punha-me dez anos mais novo.
Logo ali o mercadejou e marcou alturas e larguras para que a roupa se lhe ajustasse à figura.
Transacção quase efectuada e eis que surge um problema. A costureira estava sobreocupada e demoraria alguns dias a fazer os arranjos. O Franklin esclareceu a vendedora que embora o fato só fosse necessário no mês seguinte, era imprescindível que estivesse pronto antes do fim dessa semana. É que ele ia de férias e só voltaria na noite da véspera do casamento. O argumento convenceu a vendedora. Prometeu-lhe logo ali que no sábado seguinte, pela manhã, teria o fato arranjado e à sua disposição. No entanto, por precaução, o meu amigo ainda frisou:
-Olhe que não pode falhar! Era para sair no sábado de manhã mas vou adiar a viagem para a tarde para vir buscar o fato.
-Mas por quem nos toma Sr. Franklin, escandalizou-se a vendedora. Palavra dada!
Foi dada mas não foi cumprida. Na manhã de Sábado bem andou o Franklin de volta da loja. O fato não estava, a vendedora idem e o empregado que o atendia não conseguia encontrar sequer a nota de encomenda. Por isso, cheio de cólera e angustiado, partiu o Franklin para férias a pensar que teria de arranjar-se com o que tinha em casa, nada à altura daquele acontecimento social que já assombrava o gozo das suas férias.
Dada a arrelia que lhe ia no coração a sua mulher telefonou para a loja, falou com a empregada que tinha feito a venda e entre raivinhas e desculpas combinaram a antecipação do retorno em um dia para irem buscar o fato que, assegurava a vendedora, estava, mesmo ali na sua frente, arranjadinho de todo. O Franklin anuiu, suspirou e descansou. Estava salva a honra da família!
Voltaram e foram em demanda do ansiado fato. Mas qual quê! Por muitas voltas que dessem a vendedora, ela própria que afiançara a prontidão da roupa, dizia compungidamente, como havia ainda tanto tempo, não se tinha pressa, a roupa não fora logo enviada para a costureira; que ficara à espera de melhor vaga, que tinha havido engano e que por fim, o esquecimento se instalara e agora não havia nada a fazer. Sim, sim, devolveria o dinheiro. Então, era uma casa séria, de porta aberta, em que os clientes podiam ter toda a confiança…
O Franklin explodiu! Antes de partir a loja, foi arrastado para a rua pela mulher, sob o olhar indignado da vendedora, que não percebia como podia haver gente tão mesquinha, capaz de criar confusões por dá cá aquela palha, tão incapaz de perceber a tremenda complexidade da sua tão difícil função.
Esmagado pela tremenda necessidade de ter o fato novo ou de ceder nas suas convicções, o meu amigo deixou-se convencer pela mulher e cedeu. Foi ao centro comercial e teve sorte. Um fato bonito, um empregado a querer subir na vida, a necessidade do cliente a ser ordem e volte cá às nove da noite que tem o fato pronto. E teve.
Por isso agora o Franklin com a mesma força que punha na luta a favor do comércio tradicional luta agora pelo seu total desaparecimento debaixo das grandes superfícies. Quando eu lhe disse: nem tanto ao mar nem tanto à terra, olhou para mim com os seus olhinhos furibundos e rematou:
-São todos uma cambada. É esmagá-lo, Ireneu, é esmagá-los.
Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt