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elogio dos estúpidos (poema)

Segunda-feira, 30.04.07
I

vejo-os passar no seu ar alheado
parecem-me felizes

meus olhos longos e doces de trabalhar mágoas
recordam paisagens onde habitava a tua companhia

era nesse tempo suficiente e completo
tomava por verdade o que os olhos vêem
e a razão do momento pelo momento da razão

II

como é pesada a vida quando tudo é desconhecido
e nada do que temos é suficiente
e as saudades nos assaltam até às lágrimas
ficando agarrados à possível dignidade
noção vaga inoportuna irreal indemonstrável mas
de tal forma necessária que nos desgarra em contínuas escolhas

atacados da mansa loucura da solidão
procuramos o rosto amigo o peito amante
que venha reaquecer o nosso sol

ninguém entende quanto estamos sós
ninguém entende como esta injustiça universal
cai sobre o fogo sagrado que ardendo em nós
nos faz maiores mais vulneráveis solitários e nocturnos

III

há nesta obsessão da noite neste sentimento de falta
um resto de desejo da tua presença que não quero

tudo está de rastos

terramoto interior que nada poupou
deixou-me sobrevivente de mim
violento e teimoso de pé sobre os
escombros a reconstruir

por isso escrevo para ti estas palavras que não lerás
compor-te-ei ainda versos e não serão teus
habitar-te-ei das minhas palavras fazendo-te bela e
amante como nunca conseguiste e forte da força que não possuis

no entanto tudo isto é insubstancial
a tua imagem descrita nunca
poderá ser molhada pela chuva de outono
ou beijada nas horas em que o fogo anima o coração

dentro de mim é que serás real e estrangeira
dentro de mim continuarei a procurar-te e a banir-te
por plainos longos e monótonos onde apenas
um estático ribeiro chora


IV

o que dizer mais de mim
coração magoado que espera

ó céus que coisa grande é a dor que conseguimos
que pena tenho de nós
não só de mim que sou náufrago
mas também de quem afundou o meu navio

é que tu canhoneira dos meus hábitos
és algoz e vítima deste jogo cósmico que ninguém criou
mas onde todos somos à uma caça e caçador
e nada nos é poupado e a nada somos estranhos

V

é isso sou um erro crasso
apareci na vida pela porta errada
compareci no mundo quando não era a minha vez

p'ró raio que as parta as filosofias requintadas
quero ser estúpido e viver o dia-a-dia cumprindo
a leve obrigação de estar vivo somente porque como
ou ejaculo

quem me dera que eu fosse estúpido
e conhecesse a vida através dos programas de televisão
e pudesse ser feliz por ser o melhor dançarino da "boite"
estar bem visto no emprego
cumprir ordens sem as discutir
ter uma mulher certa matronal estúpida
distantemente carinhosa e de horizontes limitados
à ancestralidade da família

quem me dera puder ser feliz assim

ser o perfeito pai de família dominador
circunspecto que ao domingo sai apascentando as filhas
que ocupa os sábados a dar lustro ao carro
e que tem encontros clandestinos com uma colega
e pensam por isso ter descoberto os limites da aventura
a fronteira onde os homens assumem a divindade
e acabam molhados e langorosos numa ressaca de remorsos
citadina e poluída dizendo foi tão bom e mentindo
por dentro como se mente por fora ímpios enganadores
da morte com máscaras de cartão

quem me dera ser tudo isto que não sou

VI

em vez disso procuro conhecer
as razões de sentir tudo íntima e analiticamente
para com este conhecimento fazer
coisa nenhuma

por isso a mim tudo me dói mais tudo tem a crueza de ser aquilo que é
e não haver razões nem desculpas para ser outra coisa

sim eu que não enjeito culpas
nem atiro às costas do destino
as causas dos meus efeitos
sei que seria mais feliz sendo estúpido

por isso é tão urgente fazer o elogio dos cretinos
daqueles a quem todas as coisas passam mais ao lado
ou reagem instintivamente com violência ou crueldade
e ficam limpos e nada lhes acerta com jeito de ficar
porque se estão nas tintas para todas as culturas
vivendo tão naturalmente como uma glândula
segrega os seu humores

VII

após este elogio aos estúpidos
descarreguei a minha bílis contra
esta ocasião de vida

sinto-me mais aliviado
um pouco mais reconciliado
quase agradecido à pequenez da memória
e à doçura das ondas contornando a praia

mas faço um esforço de vontade
quebro o adormecimento que me embala
e a realidade esmurra-me nas ventas

porque na verdade estou fundamentalmente só
porque na verdade me sinto defraudado
e a vida que eu vivo não é melhor que a dos estúpidos
e aquilo que eu sinto não justifica coisa nenhuma
e o esquecimento que procuro é igual ao de toda a gente

por isso num pôr-de-sol repleto de cansaços
acabo o poema deixo cair os braços

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publicado por Carlos Alberto Correia às 22:35

lúdica e débil a flauta (poema)

Sexta-feira, 27.04.07
I

confusos iniciais
dentro navegámos

a sombra cingia-se de marcas
repentes de barco
na fantástica pátria
das viúvas

pelos caminhos
estremunhado
um filamento
incandescia

II

e os títeres
também por dentro

mas
das fugas

não sei se sabem
dos títeres
lenta marcha
de harpas agitando
nortadas

viradas ao frio
de fora

quando tudo vinha
do fundo da orquestra
com olhos espantados
de fronteiras


III

sim mas os barcos
foram apartados
um tempo além
do permitido

apertados em ventos
em velas
grafia de mundo
no agora externo

olhem para nós

IV

das longarinas
gastámos-lhes as faces

mesmo ao canto do sorriso no comprimento do mundo
a vida dói

qual o sentido
de permanência

que nos corrói

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publicado por Carlos Alberto Correia às 21:57

K I R A - BARREIRO: KEM DIRIA !

Terça-feira, 24.04.07
K I R A - BARREIRO: KEM DIRIA !

Para além de a minha vaidade ter ficado basto satisfeta com a transcrição do "Que Alexandre não me tape o Sol", ( obrigado Kira) vejam os comentários interessantes e cifrados a que o mesmo deu aso.

É só clicar e é remetido para o mundo esotérico e louco da CAEM -Coorporação dos Amigos de Elogio Mútuo !!!

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publicado por Carlos Alberto Correia às 09:46

...

Domingo, 22.04.07
Posted by Picasa

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publicado por Carlos Alberto Correia às 22:12

Os meus quadros do Kira (2) - Silêncio Mordido

Domingo, 22.04.07


O meu segundo quadro do Kira, não é um quadro mas a capa do meu primeiro livro. Para falar dele vou recuperar um texto, publicado no ano passado e que explica racional e emocionalmente o grafismo e as cores fortes que tornam esta capa uma evocação magoada de gentes e tempos, não muito remotos, mas que começam a ser perigosamente esquecido.


NÃO TE ESQUECEREI NUNCA


Farão 33 anos, no próximo dia 25 de Abril, que no meio dos acontecimentos que revolucionaram o País, saiu, discreto, para a luz do dia um pequeno livro de poesia com o nome de Silêncio Mordido.

Foi o meu primeiro livro editado e, no dia da sua saída, ficou por completo abandonado, mesmo por mim, porque aquilo que este livro denunciava e atacava, acabara de ruir sem honra nem glória.

Com o avassalar de acontecimentos quer o lançamento, quer a distribuição do livrinho ficaram muito comprometidos e se despercebido nasceu, despercebido continuou até que um dia, passados muitos anos, um amigo me disse, meio envergonhado, que numa banca de alfarrabista, no Parque Mayer, estavam, a preços da chuva, alguns quilos do meu Silêncio Mordido.

Corri ao alfarrabista e por tuta-e-meia comprei as centenas de exemplares à venda.

E aí lhe fiz correr o destino entregando-o a leitores seleccionados, que sabiam muito sobre as suas circunstâncias.

Explico.

O livro trás a seguinte dedicatória:

“À memória de MANUEL JOÃO

Alentejano. Mineiro em S. Domingos ceifeiro em Baleizão. No dia 7 de Abril morreu. Na linha de Cascais, sob um comboio. NÃO FALOU. “

O Manuel João tinha mais de cinquenta anos nessa altura e estava quebrado pela dureza da vida e pela prisão política. Tinha os cabelos fartos e brancos e uma voz de quem pede desculpa. No entanto espantava tanto por tantas coisas que um dia, um administrador da empresa onde ambos trabalhávamos comentava comigo em jeito de admiração: Sabe que o Manuel João lê o Alves Redol??!! Um contínuo a ler…!!!

Sabia e sabia muito mais. Que dava apoio e guarida em casa a gente perseguida pela PIDE e que, na Sexta-Feira ante da sua morte, ao findar do dia, me revelou uma sua grande preocupação. Tinha sido levado uns dias antes à PIDE. Tinham-no interrogado brevemente e, coisa admirável, deixaram-no sair sem muitos problemas. Do seu saber arcano isto tinha-o feito desconfiar muito e percebeu que continuava a ser seguido. A preocupação que me confiou foi: - Estou velho, tenho medo de já não aguentar o interrogatório e de vir a dizer coisas que não devo.

Confortei-o conforme me foi possível mas com pouco êxito. O Manuel João lá se foi a caminho de casa e do fim-de-semana.

Nunca mais o vi.

Disse-me posteriormente o irmão que pela manhã desse sábado, na estação ferroviária de S. Domingos de Rana, esperava o comboio, perto da mulher, quando se apercebeu que a PIDE o ia prender.

Beijou-a e disse-lhe qualquer coisa como isto – Eu não falo. Adeus!

Atirou-se para baixo da composição, que passava no momento, mordendo, para sempre, os seus segredos.


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publicado por Carlos Alberto Correia às 12:40

QUE ALEXANDRE NÃO ME TAPE O SOL

Terça-feira, 17.04.07
Não há ainda muitos dias, tomando consciência de quantos quadros do Kira tinha em casa e de como alguns marcavam pontos importantes da minha vida, decidi iniciar no meu blogue, uns “posts” aliados a cada um desses quadros. Quando publiquei o primeiro (e por enquanto único) informei o Kira do facto e, no seu jeito irónico e corrosivo, ligando o blogue às publicações que, o mais regularmente possível, venho a fazer no Rostos, insinuou, primeiro que estaria a publicitar-me para candidato a Presidente da Câmara, mais tarde, emendando a mão, vendo a pobreza do que me destinava, lá se dignou considerar-me como previsível candidato a Primeiro-ministro.

Já não era mau de todo!

Mesmo assim, fiquei desiludido. Sempre pensei que, por um lado ele me estimasse mais, por outro me considerasse um ser tão excepcional – como, aliás, eu me considero a mim próprio e vá lá, também a ele – e me futurasse uma Presidência da Europa ou quiçá um Secretariado-Geral da ONU.

Isso é que me vinha a calhar e a ele também porque, sem nepotismo nem favoritismo ou qualquer grau de corrupção (!?), sempre lhe arranjaria um empregosito melhor. Então, é para isso que são os amigos, pois não é?

Visto que ele não me propõe para os cargos que o meu alto desígnio aponta e, sobretudo mereceria, venho proclamar, alto e bom som, que não estou disponível para nenhuma outra posição, ainda que digna e de relevo, em qualquer quadro político local, nacional ou internacional.

Postas as vírgulas nos sítios, avancemos para uma explicação, sumaria e anedoticamente antropológica, das razões em que me fundo para negar-me a tais e tantos aliciantes cargos de poder.

Correndo o risco de vir a ser exautorado e quem sabe mesmo apedrejado na via pública, afirmo que o poder não me interessa, porque, se existindo realmente não é uma mentira, tem razões de ser incontornáveis e faz sentir muito bem o seu peso sobre os viventes, já a sua génese assenta sobre uma fraude social que se vai repercutindo e estilizando aos longo dos tempos e conforme as sociedades crescem e se sofisticam.

Perante as vossas bocas abertas de espanto e o escandalizado ar que ostentam pela enormidade que do teclado me saiu vou tentar credibilizar a minha tese.

Supúnhamos que num tempo tão remoto que não havia história nem chefias, num determinado grupo humano, onde todos eram tão iguais quanto as diferenças pessoais o permitem, um individuo se destacava do grupo por ser quem mais caça conseguia apanhar. Olhando os mais altos interesses desse grupo, uma noite, reunidos à volta da fogueira, alguém sugeriu que o exímio caçador fosse dispensado de todos os outros trabalhos socialmente importantes para se dedicar só e apenas ao acto de caçar.

Sábia decisão. Sendo a vida difícil e frágil perante os perigos dos animais e da fome, estes caçadores recolectores, assegurando o trabalho exclusivo daquele perito, evitavam riscos de ferimento ou morte nos restantes e conseguiam a RMG (refeição mínima garantida).

Espanto da inteligência e racionalidade de que o homem é capaz.

Só que, o raio da vida tem destas coisas, o nosso caçador, gostou tanto do tratamento diferenciado que este estatuto lhe concedia, que já não lhe passava pela cabeça voltar às lides normais do grupo. No entanto, por envelhecimento ou falta de sorte, algumas caçadas começaram a ser menos produtivas e a escassez – que é má conselheira – levou a que algumas vozes dissonantes e isoladas pusessem em dúvida a bondade da solução até aí adoptada. Sentido este estado de alma o nosso caçador puxou do raciocínio e dando a volta ao bestunto, magicou que se conseguisse trazer para o seu lado os dois manos mais fortes do povoado talvez ganhasse algo com isso.

Vai daí, numa lauta comezaina a três, o caçador sussurrou aos Golias que se ficassem do seu lado e o ajudassem, com umas porradinhas, a calar os maldizentes teriam sempre uma melhor parte na distribuição dos alimentos, além de serem os seus melhores amigos com tudo o que isso poderia trazer de vantagens.

Os nossos Golias não eram primos do Einstein, mas não era estúpidos de todo. Aceitaram a incumbência, passaram a usar as peles de modo um pouco diferente dos restantes, amachucaram meia dúzia de cabeças e assim se formou a primeira força pública, a bem da população, autorizada ao uso legitimado da violência.

Esta situação durante algum tempo manteve serena a comunidade. Mas como mesmo no melhor dos mundos há sempre descontentes, houve quem não gostasse de ver o irmão sem dentes ou de cabeça rachada e iniciasse nova onda de protestos. O nosso caçador, mais esperto, ou com mais tempo para pensar, matutou consigo e disse: Bem, os Golias têm-me resolvido o problema. O pior é que o pessoal recalcitrante pode arranjar outros mais fortes ou em maior número e desancarem-me os esbirros. O melhor é pensar numa outra forma de, em conjunto com esta, tirar-lhes da cabeça a ideia de me porem de novo ao nível de toda a gente.

Conhecia o nosso caçador um grande patranhas que passava a vida a tentar enganar os outros vendendo-lhes ervas e decifrando sonhos e futuros a troco de um bife ou de um punhado de cereais bravios. Chamou-o e propôs-lhe que pusesse o seu talento a render a “favor do povo” e não com até aí, egoisticamente, só para ele. O nosso aldrabilhas, que não era nada parvo, percebeu que ou alinhava ou levava uma amarrotadela significativa dos dois Golias. Assim, considerou os ganhos e perdas e tornou-se o FOG (Feiticeiro Oficial do Grupo), com assento ao lado do CHECA (Chefe Caçador) e da FUSP (Força Unida de Segurança Pública). Revelando augúrios e significações legitimou, para sempre, o poder do caçador, como descendente directo – por isso bafejado com os talentos que lhes eram reconhecidos e só ele possuía – dos mais importantes antepassados do grupo. Criou rituais, obrigou a hábitos e normas e legitimou de forma absoluta e divina os inalienáveis direitos do Caçador e da sua descendência.

Com esta brevíssima história penso ter demonstrado porque é que não gosto do exercício do poder, da sua génese e considero ter ratificado a hipótese de todo o poder assentar, algures no passado, senão numa fraude, pelo menos numa rábula de consequências, por vezes, trágicas.

Desta forma, os meus heróis não são os poderosos, nem eu consigo perceber-me em lugares de tal poder. Antes prefiro, como Diógenes, olhar para o poderoso Alexandre Magno e dizer-lhe tão-somente que dele apenas queria que não lhe tapasse o Sol.




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publicado por Carlos Alberto Correia às 19:23

KIRA: 1960 - GALERIA "A TRAVE" - �VORA

Sábado, 07.04.07
KIRA: 1960 - GALERIA "A TRAVE" - �VORA

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publicado por Carlos Alberto Correia às 22:36

Os meus quadros de Kyra

Sábado, 07.04.07
1 – O Peninha

O Kyra conheço-o desde o princípio dos tempos. Das corridas loucas pelas ruas de Évora, aos nossos primeiros amores, vividos com a força das coisas primordiais e irrepetíveis. Muito antes de se iniciar visivelmente na grande pintura que é a sua.

Acordo todos os dias a olhar para um belo quadro a que chamou “Os Noivos” e que está no meu quarto. É uma óptima maneira de enfrentar mais um dia que nunca se sabe como vai correr ou acabar. Mas não é desse quadro que vou falar no momento. Refiro-me a ele, porque hoje, ao levantar-me, olhando-o, tendo em conta outras obras suas que me acompanham em casa, vi, claramente, como cada um deles marca momentos importantes das nossas vivências. Decidi assim, ir, ao longo dos próximos tempos, com os vagares da meditação e do tempo disponível, fazendo um levantamento e dando testemunho deles e das suas circunstâncias.

Assim, o primeiro quadro, que não posso reproduzir aqui para o compartilhar convosco, como gostaria, porque nem sei se ele ainda existe, a que ele chamou “o grito” e eu, por circunstâncias que aduzirei denominei “o peninha”, nasceu em 1966.

Foi assim:

Vivia eu uma desesperada paixão correspondida pela minha musa mas contrariada pela família. Lembram-se do poema do Zeca:

Chamaram-me um dia
Cigano e maltês
Menino, não és boa rês
Abri uma cova
Na terra mais funda
Fiz dela
A minha sepultura
Entrei numa gruta
Matei um tritão
Mas tive
O diabo na mão

Havia um comboio
Já pronto a largar
E vi
O diabo a tentar
Pedi-lhe um cruzado
Fiquei logo ali
Num leito
De penas dormi
Puseram-me a ferros
Soltaram o cão
Mas tive o diabo na mão(…)

Pois ele corresponde inteiramente à forma como a família da minha enamorada me via e me queria fazer sentir. Nesse tempo as diferenças sociais eram bem mais marcadas e marcantes que nos dias de hoje e a minha pretensão mais parecia heresia que coisa de gente com juízo. Mas a juventude é única e alimenta-se dos obstáculos e por isso o nosso namoro continuava afrontando ventos e marés.

Aproximava-se a data de aniversário da minha amada e eu queria dar-lhe uma prenda que a merecesse. Dinheiro não direi que não abundava porque isso era ser demasiado optimista. Na realidade quase não havia. Foi então que eu tive uma ideia fabulosa. Fui ter com o Kyra, então ainda o Gama, com o meu projecto: Eu comprava os materiais e ele pintar-me-ia um quadro para eu oferecer como prenda de aniversário.

Com a generosidade que o caracteriza anuiu imediatamente. Alguns dias antes do aniversário veio o Kyra com a tela – que se me lembro era um contraplacado trabalhado – e eu fiquei maravilhado. O quadro, de uma beleza cromática inexcedível na linha dos laranjas avermelhados, representava um vasto espaço onde a terra e o céu se confundiam, com uma única e mínima figura a perder-se na linha de horizonte onde os tons de laranja-céu e laranja-terra se uniam. Nessa figurinha quase a desaparecer, postada na convergência das linhas verticais e horizontais desse mundo ignoto, pressentia-se um desespero, uma angústia, uma solidão que fazia ouvir dolorosamente o grito irreprimível e reprimido que ameaçava soltar-se-lhe do peito. Nada, para o caso e o momento, poderia ser simbolicamente mais perfeito que essa obra.

Como a figurinha, parecendo esmagada pela forças cósmicas, resistia estoicamente e parecia ter, como um índio, uma pena na cabeça, eu chamei-lhe “o peninha” e assim passou a ser conhecido.

Que foi feito desse quadro? Não sei! Cruzaram-se tempos e guerras, mudaram-se perspectivas e nunca mais eu e ela festejámos, juntos, um aniversário. Mas para lá de tudo o que possa ter acontecido, mesmo que “o peninha” se tenha perdido nos naufrágios da vida, ele existe e estará sempre presente pendurado nas paredes dos meus sentimentos. E é e será para sempre o meu primeiro quadro do Kyra.

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publicado por Carlos Alberto Correia às 22:13

Uma questão de equilíbrio

Quinta-feira, 05.04.07
Ele há coisas que parecem mentira.

Esta semana, fui acometido, por um surpreendente síndrome vertiginoso que me fazia parecer um ébrio a querer andar em linha recta. As coisas, estranhamente, pareciam todas fugir da sua vertical e bambolear-se ao ritmo de imaginárias ondas de mar. Assim descrito pode parecer poético mas, na verdade é apenas desesperante e patético. Ainda por cima para mim que, por ser Balança e intelectualmente estruturado pelas Ciências Sociais, procuro desesperadamente a comparação e equilíbrio dos eventos.

Dirão, os que tiverem pachorra para acompanhar este arrazoado, por que carga de água está este tipo a sobrecarregar-nos com os seus problemas pessoais? Ou se pensa muito importante ou julga que nada mais temos que fazer na vida que aturar os seus problemas. E seria muito bem dito se fosse só isto o que eu viesse ao mundo virtual comunicar.

Mas não! Outras coisas hão de “mor espanto”!

Trabalha há muitos anos, em minha casa, uma mais que empregada, amiga, que, por motivos de saúde, teve que ser hospitalizada por longo tempo. Não, não vou dizer mal do sistema de saúde nem atacar o ministro. Esta explicação tem somente a ver com o facto de ter tido que me socorrer, temporariamente, de uma outra pessoa para assegurar o asseio suficiente da casa.

E lá está ele, dirão, a continuar a maçar-nos com a sua vida particular. Grande engano! O que se passa é apenas um engodo para levar o leitor, inicialmente desconfiado e reactivo, a abrir as guardas com estas confissões pessoais, a fazer de si um amigo de trato longo e confiado, para melhor lhe vender o meu peixe, quando o momento for azado.

O motivo de trazer à baila a empregada substituta e o meu síndrome vertiginoso (o nome é um espanto, não é?) prende-se com o tempo mais largo que tive para conhecer a senhora. Numa conversa, não muito longa, contou-me que tinha estado a ler um livro que a impressionara imenso. Recordo o título de cor: ”Deus chorou no Afeganistão”. O seu espanto derivava, segundo me disse, não tanto do relato dos acontecimentos, porque gostava muito de ler livros de história e devorava tudo sobre a Segunda Guerra Mundial, mas porque o que lia nesses livros, por horrível que fosse, era passado e o que lia sobre o Afeganistão estava ainda a decorrer. Rematou na ignorância do síndrome que eu sofria:

- O que falta no mundo é equilíbrio!

Nada mais precisaria de ser acrescentado a esta sentença. No entanto lá fomos falando de como a riqueza do mundo estava mal distribuída; como se a ganância fosse moderada ninguém teria de passar fome, de ser condenado a morte por doenças que se podem curar num ápice e que matam uma grande parte da humanidade; que quantas mais riquezas existem nos países – referia-se ao dito terceiro mundo – maior é a miséria do povo, que não havia razão para as pessoas serem desapossadas da sua dignidade pela miséria e que o mundo, desta forma, não chegaria a bom porto. Rematando: - e no entanto bastava um pouco de equilíbrio!

Foi por isso que eu cometi o risco científico da analogia. Entre o meu estado vertiginoso e o mundo que nos rodeia havia algo de similar. Se eu, diagnosticado o sintoma procurara e conseguira uma terapêutica que tudo parece indicar ser de eficácia suficiente para me repor em condições normais, não poderia mandar o mundo ao médico para que ele lhe receitasse umas pílulas que, ao menos, lhe atenuasse a tentação do abismo?

Levantei-me, cheio de boas intenções, disposto a mostrar ao mundo a sua insanidade e vertigem, certo de que conseguiria despertar algumas boas consciências para este obra fundamental de equilibrar toda a gente que busca equilíbrio e zás! tropeço no noticiário da rádio que me enviou, de novo e rapidamente, para um síndrome vertiginoso, o qual nada tendo a ver com este, pessoal curável a comprimidos, mais parecia raivosa cascata de ignoto oceano a precipitar-se no espaço vazio, nas fronteiras imaginadas do mundo de Quinhentos.

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publicado por Carlos Alberto Correia às 13:27

Nem Ota… nem desota

Domingo, 01.04.07
Depois que Heisenberg destruiu as certezas das ciências duras com o princípio da incerteza – estranhas coisas da Física Quântica –fiquei com muito receio das grandes convicções e das pessoas que parecem nunca ter dúvidas de coisa nenhuma. Aliás, parece-me melhor ser algo indeciso que fanático exemplar. Lembremo-nos só como as verdades absolutas e inquestionáveis trouxeram enormes dores à humanidade.

De qualquer modo eu tenho duas coisas razoavelmente certas. Uma é de que o Aeroporto deverá sair da Portela; a outra é que defendo, com unhas e dentes – embora não venha neste momento explicar porquê - um comboio de alta velocidade.

Expliquemo-nos!

Sempre gostei, basbacamente, de ver descolar aviões. É caso que muito me espanta esse milagre quotidiano, milhares de vezes repetido, de algo enorme e pesado desprendendo-se da terra e como ave surpreendentemente leve demandar o mais alto do céu. É pecha minha, mas que querem, gosto mesmo de ver. No entanto, nunca consegui esquecer-me de que a Portela está no meio de Lisboa e que, longe vá o agoiro, seria coisa assaz desagradável que um Boeing, de não sei quantas toneladas, falhada a pista, se despenhasse sobre as habitações de Lisboa. Poderia acontecer e, não sei mesmo quantas vezes, não teria estado iminente esse risco.

Por isso, quanto à minha humilíssima mas determinada opinião o aeroporto tem mesmo de mudar de sítio.

O busílis da questão está, no momento, na escolha do local onde o mesmo se quedará. A discussão, como todos sabem, vem já do distante ano de 1969, quando Marcelo Caetano desenhava fragilmente os contornos de uma primavera apenas anunciada. Duas localizações eram possíveis: Ota e Rio Frio. Por razões de ordem ambiental a opção Rio Frio foi extinta e, muitos anos depois, parece que avançará a escolha da Ota.

Como cidadão preocupado com o risco do aeroporto da Portela até nem achei mal de todo. Que estava bastante distanciado de Lisboa era verdade mas, sabemos bem que muitos dos aeroportos mais importantes do mundo ficam a uma hora ou mais de distância das suas cidades. Desde que houvesse acessibilidades fáceis poderia ser uma situação um tanto desconfortável para nós que habitamos por estes locais, mas não seria nada demasiado grave e inultrapassável.

E bem-disse a decisão de mudar o aeroporto.

Só que entretanto, por motivos mais ou menos claros, vieram à tona oposições várias. Li, reli, presenciei debates, recebi “mails” e a subtil dúvida foi-se insinuando. Era então verdade que o aeroporto tinha condicionantes de expansão? Ficava numa zona de risco de ventos e corredores aéreos? O terreno era alcantilado e pantanoso fazendo crescer os custos de construção de modo assustador? No enfiamento da pista, a muitos poucos quilómetros, existia um perigosíssimo depósito de gás? Havia novas alternativas, melhores, menos dispendiosas, mais bem posicionadas e que não comprometiam os prazos de construção?

Perante as exposições apaixonadas e coerentes de muitos técnicos reputados o meu bem-dizer estilhaçou-se. Hoje sou um desesperado cidadão à espera que alguém explique as razões de escolha da Ota e por que motivo não se encaram outras localizações antes que uma escolha definitiva nos leve para outro elefante branco, como os muitos, que boa parte das obras públicas mais propaladas, vieram a demonstrar ser.

Que Nossa Senhora dos aviões nacionais venha em meu auxílio que já não sei o que pensar. Isto assim está pior que Alqueva – a tal barragem feita para introduzir a cultura de regadio no Alentejo pondo-o mais verde do que o verde Minho – onde nós gastámos o dinheiro e, segundo dizem, os espanhóis estão a colher os frutos. Se a construção do aeroporto avançar para a opção indicada que claramente nos sejam expostas razões coerentes e que afastem qualquer vestígio de falta de transparência na escolha. É que assim, quem escolhe, fica com o papel de mulher de César e pagará, necessariamente custos vultuosos num futuro, não muito distante, nos votos de qualquer de nós.

Porque isto assim, repito, não Ota nem desota!




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publicado por Carlos Alberto Correia às 11:55