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notícia sobre o achamento destas ilhas (poema)

Quarta-feira, 28.02.07
I

como movimentos nascidos da emoção
as palavras ecoam transitórias
venho por isso a meu rei dizer
que por cavados caminhos as ilhas
estão achadas

permitam-nos os tempos ir mais para diante

aquilo que no mar assusta
é o que atrai
descobrir é caminho
para o total dos olhos
portanto antes de aqui chegar
no minuto anterior às novas do achado
trarei as tempestades desses dias
salpicados de sal
em que nos fomos de busca
e de glória

II

o rio é o abraço que se lança ao mar

absortos esperam na amurada os homens
soltar-se a quilha do acaso no vento dos navios
de anil reflectem-se perturbadas as vozes das tensões

repartamos o saque pelo preço do sangue
cobremos na coberta os ventos passageiros

cresce o tédio quando se esfuma o sonho
o retorno esquece a rota desejada
no perigo no momento no nada
neste risco das ilhas se perderem
por ventos que rujam nas ideias

deus é somente vaga que dentro se levanta

III

trago-vos pois as esperadas notícias do achamento destas ilhas
com adoçada memória relembro sob os pés
as danças dos mares desses inícios
porque senhor achar é como ser achado
e navegar é um longo caminho para o interior de nós

sabei ainda que por mais velozes que as naves sejam
é sempre igual o tempo da viagem
tudo se expande
todas as ilhas se afastam à velocidade síncrona da nave

é certo que sempre alcançaremos a ínsula a que nos propomos
mas certo é também que o tempo se medirá
pela justeza do esforço
também vos digo tudo é mar em movimento
os rios que correm para um deus das águas
são pequenezes de espírito
que nós sabemos senhor
tudo ser mar por descobrir
ou carga por levar a um porto
sempre diferente daquele que se espera

também sabeis que as ilhas que anunciamos
primeiro que nós outros as tocaram
porém é sempre novo o achamento e daí
a urgência da notícia
equadores há de factos excessivos
obstáculos de calor
mas vós senhor mandaste o avanço
e tal dizer é tremulina no corpo do deserto

IV

vejo que em vosso rosto se expressa a incredulidade do instante
parece-me vos contaram os baixos ventos
e as derrotas impossíveis de seguir

mas senhor se duvidais do mandado
é porque em vós duvida o mandador

tendes porém um ponto de razão

todo quanto é ordenado percorrer-se
na demanda destas ilhas
traz mais desperto e longo o seu olhar

os pés que a ti me trazem
trazem senhor o pó dos descampados
onde o silêncio dos homens é total
e se atende o fundar de um só grito

mandai agora as palavras semear
tereis então o trigo requerido

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publicado por Carlos Alberto Correia às 19:16

Os Provedores

Sábado, 24.02.07
O dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia de Ciências de Lisboa define o provedor como: “Entidade ou personalidade independente dos serviços onde se encontra instalada e à qual se pode recorrer em caso de dúvida ou litígio, ou para emitir um parecer.”

As palavras-chave desta definição são, portanto, independente, recurso e parecer

Assim, os vários provedores que foram nomeados – Justiça, leitores, telespectadores, etc. – introduziriam, num determinado corpo, um olhar lúcido, crítico e capaz de produzir um discurso auto-correctivo.

Desta forma as instituições permitiriam a formação de uma consciência crítica, partindo do seu âmago e decisão, que poderia ser justaposta e tenderia a antecipar posições menos controladas do exterior. Teríamos, assim, a autodefesa canalizada através de um corpo mediador o qual, detentor de um aparente poder de transformação funcionaria, pela canalização da fúria, como prudente almofada para amortizar impactos mais destrutivos, por menos controlados.

Escolhem-se para tal posição pessoas altamente competentes, prestigiadas e inatacáveis, ostentando-se aos utentes a verificação da abertura das instituições ao exterior demonstrativa de uma democraticidade a toda a prova.

Estas personalidades, de integridade incontestável, recolheriam as críticas, sugestões e opiniões dos cidadãos e transformá-las-iam em pareceres coerentes, objectivados e funcionais, utilizados para o melhoramento, ou mesmo transformação, das organizações e dos serviços prestados.

Não contestando a boa-fé e a vontade de servir dos vários provedores tenho sempre presente a sensação de que a sua utilidade se esgota nos estreitos limites entre a produção do discurso e a possibilidade de actuarem, com eficácia, em qualquer coisa que atinja os equilíbrios dos poderes que os nomearam.

Assim sendo, estaríamos perante mais uma demonstração do discurso “esquizofrénico” que vem invadindo a realidade social manifestado na diferença entre o enunciado e o verificado, entre valores e materialidade, bem-fazer e desenrascanço, ser e ter, ou realidade e aparência.

No entanto os provedores existem para além das minhas dúvidas e a melhor forma de lhes outorgar poder e deixá-los testar as fronteiras que os inibem é, quanto a mim, colaborar com eles comunicando-lhes as nossas posições e verificar posteriormente qual a sua eficácia.

Assim fiz, enviando, em 21 do corrente mês, o texto abaixo inserido, ao Prof. Paquete de Oliveira, Provedor do Telespectador, na RTP1.

O programa que me leva a entrar em contacto consigo enquanto Provedor do Telespectador é o “Grandes Portugueses”.

Uma primeira observação geral para o objectivo do próprio programa: -Eleger o maior português de sempre!?

Tarefa, penso eu, impossível sem que o campo seja segmentado por áreas ou tempos. Há grandes portugueses em muitas áreas e eras, não será possível escolher um em absoluto. Enfim, é a minha opinião, possivelmente isolado ou minoritária. Além disso, este programa não passará de um jogo…

E que importância tem ou poderá adquirir um jogo na nossa sociedade? Melhor que eu o Professor dará resposta adequada.

Por isso, passemos à crítica na especialidade.

Ontem, Terça-feira, dia 20 de Fevereiro, passou na RTP1 o programa dedicado a Fernando Pessoa. Sendo ele um dos eleitos do citado concurso pressupõe-se que haverá a intenção de chegar às “massas”, isto é, de ter a maior penetração possível nos variados grupos sociais que compõem os espectadores do canal. Por outro lado, fazendo o poeta parte do conteúdo programático do ensino secundário teria bastante interesse que esse programa fosse acessível ao maior número possível de jovens.

Parecem-me pressupostos razoáveis.

No entanto, o programa foi para o ar já passava muito da meia-noite. Não posso precisar se no horário programado (00,10) mas presumo que muitos minutos depois.

A minha questão é se há bom senso neste tipo de programação. Repare-se! Em Portugal a Quarta-feira de Cinzas não é dia de trabalho? Os portugueses não têm necessidade de um sono de cerca de oito horas por pessoa? A sua deslocação para os locais de trabalho não os obrigam a levantar-se pelas seis da manhã? E não têm direito a ver um programa – que embora concurso - pertence à área do cultural e por isso mesmo ultrapassa o efeito distractivo e soporífico do pão e circo? Só o futebol é que pode alterar a ordem normal de programação para ser transmitido em directo?

Se olharmos para a programação do dia, a partir das 21 horas, ficamos a perceber a razão da apresentação, a horas tardias, do documentário sobre Fernando Pessoa. Ele pode lá competir com o José Mourinho!!!

Agradecendo a atenção para o meu desabafo cumprimento-o, mais uma vez, desejando-lhe os maiores êxitos.”



Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

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publicado por Carlos Alberto Correia às 20:22

tipos (poema)

Quinta-feira, 15.02.07
I

é necessariamente diferente o meu estar

por ser árvore banco outono certo
nesse longo vento dos sentidos
notícia de passos até à exaustão
da aventura
não cessam meus olhos de notar
as diferentes fadigas do cansaço
sabor de sede onde tudo é árvore
aço
algemas desta fala
afrontada por enganos do dizer

o meu caminho desfaz o meu cuidado

II

na força dos castelos é que vês
a luz das estrelas de outras eras
indiscretas e vagas em devoção
de palavras dementadas
na acidental opacidade do poder
híbrida e sensual máquina onde
impreterivelmente te referencias
obcecada pela árvore
língua digestora no rompimento
dos líquenes da estrada

III

ponho óculos à cor do meu luar
véspera de multidão saúdo o vértice
das cinzas das camélias

fabrico a nave do desejo
desmesurado náufrago do vitríolo
acordo em marte de morte consumido
enrolado no forte coração da máquina

calco o acelerador introduzo a raiva
na briga-brisa que me beija
expludo à tua volta equação de
fumos e riscos acrescentada à
fome do teu ser

IV

antes que a noite caia voltemos às árvores
a cada raio de sul juntemos o instante da
plaina da justiça os verdes que se despem
nos campos intermináveis do teu corpo

resplandece e habita o segundo inominável em que cada célula se perfaz e te persegue
na impossibilidade da tua combustão

no mutismo centenário essa árvore
arranca o vento à depredação

deixo ciclicamente da invernia posar
a volúpia no âmago da flor como quem
descobre o sepulcro ou a ressurreição

deposta a raiva desabitas a angústia
e num tecido breve de cidade
abres os lúpulos à fermentação

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publicado por Carlos Alberto Correia às 19:57

Gisela do quotidiano – uma estória de sempre

Sexta-feira, 09.02.07
Conto esta breve estória no papel de marido da Margarida Gentil, já falecida, que se estivesse viva militaria, com certeza, num movimento de apoio ao SIM no referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez.

A mãe de Gisela trabalhava a dias, desde há muitos anos, na nossa casa. Conhecemos a Gisela desde o nascimento e afeiçoámo-nos profundamente à menina tornando-se ela a companheira, por excelência, da nossa filha nascida dois anos depois.

Cumprindo o ritmo natural da vida a Gisela foi bebé, criança e chegou à adolescência numa fugaz passagem do tempo. A sua relação connosco foi-se mantendo e reforçando no decorrer dos anos tornando-se cada vez mais familiar.

Andava pelo 15º aniversário quando um dia, de olhos inchados e o nervosismo a rebentar por tudo o que era corpo, pediu atrapalhadamente à Margarida para falar a sós com ela.

Estava grávida do namorado, de igual idade, e também estudante. De angustiada não sabia o que fazer. Falar com a mãe, não! Nem saberia como começar. Encarar o pai? Nem pensar nisso nem na sova que levaria mal tivesse aberto a boca. O namorado ficara em pânico quando lhe contara a situação e agora evitava encontrar-se a sós com ela e mal lhe falava. Estava infeliz, desamparada e ameaçava pôr termo à vida. Toda a sua angústia expressava-se numa única interrogação:

- O que vou fazer da minha vida?

Contou-me Margarida que, tanto quanto foi possível, a tentou tranquilizar. Informou-se sobre quanto tempo pensava ter de gravidez prometendo que, no dia seguinte, voltariam a conversar sobre o assunto. Nessa noite contactou algumas pessoas e entre elas uma amiga psicóloga que se prontificou a falar com a Gisela, caso ela quisesse.

A Gisela quis.

Não conheci o teor da conversa. Sei que Margarida me pediu para, num certo dia, as acompanhar a um determinado hospital onde, sob uma qualquer denominação cirúrgica, a Gisela iria ser submetida a um aborto que oficialmente nunca o seria.

Abro um parêntesis para esclarecer que tanto eu como a Margarida sentíamos, em relação ao aborto, uma certa incomodidade. Ética e teoricamente defendíamos a sua possibilidade mas, quando em conversa transpunhamos a sua realização para um possível filho nosso, concordávamos que seria uma opção que talvez nunca fossemos capazes de tomar.

Parêntesis fechado.

Gisela ficou nessa noite, sob vigilância, em nossa casa e felizmente, como foi bem assistida, depressa de recompôs.

O tempo continuou a passar e Gisela fez uma licenciatura em Direito, casou, teve filhos, ganhou estatuto social. Esta estória só não acaba completamente bem porque, alguns dias atrás, depois de, pelas voltas da vida, passarmos muito tempo sem contactarmos, a encontrei na Baixa Lisboeta.

Eu distribuía panfletos apoiando o Sim ao referendo, ela, olhando-me um pouco comprometida, ostentava uma vistosa pancarta defendendo voluntariosamente o Não.

Sem negar à Gisela do ano 2007 o seu direito a uma opinião própria, não me foi possível deixar de reverter àquela desesperada Gisela que procurou a Margarida, no já distante ano de mil novecentos e sessenta e nove.


Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt/

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publicado por Carlos Alberto Correia às 00:05

compre o novo televisor (a cores) - poema

Sábado, 03.02.07
I

atenção queridos consumidores
acabou de chegar o novo gadget
atenção atenção muita atenção
corra imediatamente ao seu fornecedor
adquira-o o mais rápido possível

a partir de amanhã já será tarde
a partir de amanhã já você estará classificado
ao lado dos párias dos desintegrados dos irrelevantes sociais

e tudo por não ser razoável
e tudo por não ter querido comprar o novo gadget
e tudo por não ser proprietário desta maravilha técnica
da nova televisão a cores

II

comprometa-se hoje mesmo comprando o televisor
quem não tem um terá que ter
grandes facilidades de pagamento basta assinar de cruz
não é preciso fiador

existimos para o servir
você é o nosso prazer
o nosso fim absoluto

mas compre o televisor


III

se o não fizer vai-se arrepender
vai deixar de ser visitado pelo seu cunhado
feliz possuidor de um carro convertível
e de um seguro de vida maior que o valor da sua vida

- dizem que se vai suicidar dentro de dois anos
quando da próxima queda de valores na bolsa -

se não comprar o televisor será marginalizado no emprego
as suas opiniões serão postas em causa
e ninguém ousará recomendar
um cidadão incapaz de adquirir um objecto
tão conforme à racional utilização dos seus lazeres

IV

é melhor comprar já um televisor a cores

quem o avisa seu amigo é
escute a sabedoria popular
vá lá compre o televisor
tudo está estudado
vai ver a satisfação que ele lhe vai dar

vai ver a vida toda colorida
as locutoras mais bonitas e até
as coxas da vedeta serão mais reais
bem na sua casa tão na sua cama

durma impunemente com a sua vedeta
todas as noites
em cores naturais
no horário marcado

faça parte do grande adultério colectivo
sinta-se irmanado na grande sociedade
dos fornicadores do pequeno écran

faça tudo quanto dizemos vá
você não é mais que os outros ouviu
compre a merda do televisor ou ainda se lixa

V

olhe que tudo está cientificamente estudado
o aparelho é bastante caro para poder ser
objecto de prestígio
facilita-se imenso o pagamento
para que muitos o possam ter - ao menos
como objectivo - democratiza-se a máquina
sem a deixar cair na demasia da posse
para que tê-la seja estar um pouco acima
possui-la seja pertencer ao grupo
adquiri-la seja conseguir a admiração nocturna
dos amigos não possuidores

VI

vá depressa não seja anjinho compre o televisor
não seja palerma não deixe que o seu irmão
lhe coma as papas na cabeça
recorde-se que foi ele quem primeiro comprou
a iogurteira automática que faz iogurte sem leite

já tinha sido ele quem adquiriu
primeiro que todos
um andar na moderna zona residencial
do esgoto-à-porta

já foi ele quem primeiro teve um filho
já foi esse filho quem primeiro ganhou o concurso
do bebé mais nestlé do ano rechonchudo

e você que faz

não seja palerma
não se deixe ficar para trás

VII

então seu cabrão
compra o televisor
ou não

VIII

últimas notícias do rádio conta-dores

foi hoje fuzilado ao alvorecer
por um pelotão de bons consumidores
o senhor fulano de tal
indivíduo perigosamente associal
que se negou a comprar
um novo televisor a cores
sistema pal

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publicado por Carlos Alberto Correia às 19:37