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Fundamentalismo Cristão (criacionismo)

Sexta-feira, 29.12.06
Andamos tão preocupados com os fundamentalismos islâmicos que mal nos apercebemos da víbora que cresce nas nossas entranhas sociais.

Começou a germinar-me esta inquietação, na semana passada, quando li na imprensa que, algures no país, iria inaugurar-se um museu criacionista!

Perguntar-me-ão se não é disparatada esta inquietude, uma vez que não só convivemos com a doutrina criacionista durante séculos, como, sem dúvida, foi ela a base e o sustentáculo da nossa civilização. Antes de avançar em mais alargadas explicações, convém ao escrevente esclarecer o que vem a ser isto do criacionismo. Atenho-me, na explicação, apenas à actualidade.

Pois então, os criacionistas defendem que as explicações dadas pelas ciências sobre origem e evolução do universo e da vida são todas falsas, excepto se estiverem avalizadas pela palavra bíblica. Aprofundando um pouco mais: a teoria do Big Bang é errónea, a terra tem apenas cerca de 4.000 anos, o mundo foi criado em seis dias (os registos fósseis devem ter sido um divertimento de Deus para enganar os homens, porque, criados nos mesmo seis dias, revelam à análise alguns milhões de anos de existência), etc., etc.

Como tais afirmações são difíceis de manter perante um público instruído, guardam estas asserções para uma população menos letrada ou já em adiantado estado de conversão. Para os mais críticos ou mais difíceis de convencer, instituíram uma linguagem pseudocientífica apoiada numa teoria designada por “Desenho Inteligente”.

Esta teoria baseia-se no princípio da “Complexidade Irredutível”, isto é, na existência de organismos biológicos complexos que não podendo, na perspectiva criacionista, ser explicados pela teoria da evolução e da selecção natural, exigem, para a sua concepção, um projecto e um ser criador. Não sendo este o espaço nem o momento para maiores explicações direi, no entanto, que os exemplos de complexidade irredutível, apontados pelos criacionistas, estão cabalmente refutados pela esmagadora maioria da comunidade científica mundial.

Onde está então o perigo que estas crenças apresentam?

Enquanto a abordagem científica assenta na investigação, racionalidade, aumento de conhecimentos, confronto de hipóteses, construção de teorias e possibilidade da sua refutação quando novas descobertas aconselham a mudança ou abandono das teorias dominantes, a abordagem criacionista funciona num discurso circular e fechado que somente pretende reafirmar as crenças a que já se aderiu. Qualquer coisa que saia do instituído pelas fontes sagradas é inaceitável heresia que deve ser exterminada. É portanto uma posição que leva aos obscurantismos, ao fechamento ao progresso e à autoridade natural de um ou mais esclarecidos, por sopro divino, sobre todos os outros. È uma atitude cientificamente fechada, obstrucionista e socialmente autoritária.

São disto exemplo vários casos acontecidos, sobretudo, em escolas dos Estados Unidos da América ( ex: Arkansas, 1968), cujos Conselhos Directivos foram sendo gradualmente dominados por criacionistas. Nessas escolas foram imediatamente proibidos os manuais de biologia que se referiam ao Evolucionismo (teoria científica) e foram adoptadas à letra as descrições metafóricas e metafísicas da Bíblia, como se de boa ciência se tratasse. Estas posições foram sendo tomadas, com grandes tensões sociais e prejuízo de conhecimentos, até que o Supremo Tribunal dos EUA se pronunciou determinando a ilegalidade de tais atitudes e a impossibilidade de considerar no mesmo nível crenças e ciências.

Daqui a minha inquietação.

Eles vêm aí de mansinho. Aqui um museu, além uma ajuda económica atempada a comunidades carenciadas e por detrás a manipulação do pensamento através do aproveitamento de fragilidade sociais ganhando insidiosamente posições que, no seu limite, conduzirão a uma nova e obscura idade média, ao fechamento da investigação e do progresso, à fusão dos poderes executivo, legislativo e judicial num único poder religioso e totalitário reagindo violentamente a qualquer tentativa de inconformidade ao modelo único.

Tenho, apesar de tudo, esperanças que ao dominarem as sociedades, mesmo não aceitando a evolução, por necessidades pragmáticas, adoptem métodos de eliminação dos inconformados mais eficientes que o das clássicas lapidações ou fogueiras.

Publicado in “Rostos on line”http://rostos.pt

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publicado por Carlos Alberto Correia às 15:40

O Vítor

Sábado, 09.12.06
Numa tarde de sábado, acerca de dois meses, quando, no estacionamento de um supermercado, acabava de arrumar as compras na mala do carro, fui surpreendido pela manobra de um condutor que travou no lugar ao lado de forma admiravelmente rápida, hábil e sonora.

O desembaraçado chegante desceu o vidro da janela e com o sorriso luminoso e aberto de quem encontra algo desejado, Há muito perdido, disse:

- Olá! Eu sou o Vítor!

Com certeza espantou-se -me na face a admiração porque logo de imediato acrescentou:

- Não te lembras de mim?

Confesso que não reconhecia aquela cara de lado nenhum. No entanto dava tratos à memória para me recordar de algum encontro onde tivesse conhecido aquela pessoa franca e contente que começava a ensombrar-se pelo meu esquecimento.

Vá lá, recorda-te, o Vítor, lembras-te? Então, o Vítor…

Eu não me lembrava coisíssima nenhuma do Vítor e já começava a sentir-me meio culpado. Tartamudeando foi-lhe dizendo que lamentava mas não me conseguia recordar.

- Não te recordas? Mas nós trabalhávamos juntos… e deu-me alguns detalhes que me pareceram condizer com um local onde de facto trabalhara.

- Será de Empresa X? Perguntei, meio aliviado.


- Precisamente…

- De qualquer forma não me lembro.. e fui-me lentamente recordando de um Vítor que tinha trabalhado comigo e que deixara o emprego para terminar a o curso de direito. Perguntei-lhe se era esse Vítor e logo o sorriso reacendeu e aquiesceu entusiasmado.

- Sabia que te havias de lembrar… E continuou desfolhando algumas recordações, em que não me revia, mas que poderiam bem ter acontecido, atribuindo eu à minha má memória o olvido de tais factos.

Eis senão quando me diz ter trocado a licenciatura em direito por um lugar de Comissário de Bordo na TAP e, num gesto largo e generoso põe-me nas mãos um estojo de reputada marca com um relógio para senhora e outro para homem.

Fiquei atrapalhadíssimo. Que não podia aceitar os relógios. Ele, a por o ar de quem recebe grave afronta, reiterando o prazer de me encontrar ao fim de tantos anos para eu estragar tudo recusando a sua oferta.

Contra o seu semblante contrariado consegui por fim entregar-lhe os relógios e já me preparava para entrar no carro quando subitamente, puxando de uma máquina de filmar digital ele disse:

- Olha, para comemorar o nosso encontro é tua por 300 euros…

Olhei para ele e para a máquina. Era da plástico, a lente deveria ser um vidro grosso, made in China ou Taiwan, e aquele Vítor nunca seria o Vítor que eu levemente conheci.

- Não quero máquina nenhuma e você não me conhece de lado nenhum…

- 150 Euros, respondeu-me.

- Desapareça!

- 50 Euros…

Saquei do telemóvel e informei-o de que iria ligar à polícia e lhes daria a matrícula do carro.

Num ápice, com a mesma maestria com que estacionara, fez uma rapidíssima marcha atrás e saiu, em velocidade constantemente acelerada, do parque.

Entrei no carro e fui-me a pensar na lata do tipo e na habilidade com que fora sacando informações para me baralhar na conversa e chegar a fazer-me desejar recordar os factos de reconhecimento que ia inventando.

Ontem, a caminho de Sintra, parei na estação de serviço da Ponte Vasco da Gama. Tinha acabado de atravessar o caminho quando, atrás de mim, dois leves toques de buzina, me chamaram.

Um homem de quarenta anos, bigode bem aparado, um sorriso grande como um largo, descia o vidro do carro e com enorme contentamento dizia:

- Então, não te lembras de mim? Eu sou o Vítor!

Voltei-lhe as costas e fui tomar o pequeno-almoço.

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publicado por Carlos Alberto Correia às 19:51