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Burquinis e outras analepses

Domingo, 28.08.16

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Quando, há alguns anos atrás, estalou em França a polémica sobre o uso de lenços por alunas muçulmanas em escolas oficiais, estive, de coração aberto, a favor dessa medida. Considerava, e ainda considero, que num estado laico as religiões se devem manter afastadas dos centros de poder republicanos, devendo, o mais possível, ater-se à condução espiritual das almas, de molde a atribuir a cada uma, consoante os méritos demonstrados, um pedaço maior ou menor de paraíso post-mortem. Considero ainda que qualquer indivíduo, seja ele quem for, enquanto permanecer num país estranho estará, para o melhor e para o pior, sujeito às leis desse país. Aquilo que um cidadão precavido deverá fazer, caso não aceite leis ou comportamentos locais, é não ir a esses sítios. Se, porém, optar por ir ou permanecer deverá aceitar os usos e costumes locais, evitando quaisquer choques culturais.

 

Nisto me baseava de boa-fé para suportar, em muitas discussões com amigos de opinião contrária, a bondade da norma francesa.

 

Porém, sujeitando-me a alguma crítica etnocêntrica, comecei a verificar a unidirecionalidade da medida, bem como as inúmeras exceções que a mesma comportava. Observei, por exemplo que aos cristãos não era proibido ostentar crucifixos em nenhum lugar; que os budistas podiam, sem qualquer receio, passear-se por onde quisessem, no açafrão dos trajos e que ninguém se opunha ao chapéu e melenas dos ortodoxos judaicos.

 

Aqui chegado os meus critérios começaram a vacilar. Cada vez se me afigurava mais ser uma medida apenas virada contra os islâmicos e isso era, eticamente, inaceitável. Como dizia um ex-governante – de quem não sou um fiel – a quem usurpei esta bela frase englobante, sou republicano, socialista e laico, como tal defensor acérrimo da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Não poderia, assim, sem grande desconforto de alma, aceitar algo que, parecendo correto, conduzia a uma discriminação contra um grupo particular. Vejam lá se me consigo fazer entender. Continuo a não aceitar teocracias (ai Vaticano), sou contra a subordinação das mulheres, contra burcas e quejandos medos do corpo, sempre instituídos por morais criadas por grupos dominantes para conseguirem, sem revoltas lúcidas, a submissão dos outros.

 

Deste modo passei a considerar injusta tal lei a não ser que fosse aplicada igualmente a todos os credos e seus símbolos.

 

Como toda a gente com um mínimo de humanidade revoltei-me contra os atos terroristas, não apenas os acontecidos na Europa, mas os de todo o mundo, e gostaria de ver presos, julgados e condenados por tribunais internacionais, os perpetradores de tais crimes. Não que eles sejam mais pesados que aqueles cometidos à sombra de políticas, sempre bem-intencionadas e com bastante aceitação popular, que levam a pobreza, o desemprego, o desespero, a humilhação, etc. a tantos lares deste mundo, apenas para que um punhado de fulanos seja cada vez mais rico e cada vez lucre mais com a miséria dos povos, criando esta guerra de intermitência globalizante que justifica todos os excessos em nome de excessos anteriores.

 

Suficientemente demonstradas razões e posições, retomo o tema que intitula esta crónica.

 

Gozava de um modestamente requintado bem-estar termal quando a notícia da proibição do burquini me entrou pelo quarto dentro. O jornalista explicava como em Nice, lugar de sofrimento recente por ato de terrorismo, tais peças de vestuário atentavam contra o sentimento dos franceses e eram um ato de discriminação feminino. Pois claro! Tinha toda a razão. Apesar da sensualidade revelada por alguns modelos, envoltos em tais trajos, era uma ofensa aos bons costumes pôr-se uma mulher tão vestida em lugar onde obrigatoriamente devia desnudar-se. Além de um contrassenso era manifesta falta de gosto, já sem falar na ofensa à moral pública. Por isso as autoridades foram lépidas e mandaram – cá volta o domínio político sobre o corpo de cada um, definindo o que é lícito ocultar e obrigatório mostrar – proibir tal trajo nas exíguas areias das suas tão reputadas praias.

 

(Abro aqui um parêntesis para recordar aos mais novos a renhida luta que a moral salazarenta travou contra o biquíni e que levou muito cabo de mar, de metro em punho, não só a verificar se o fato de banho da senhora tinha saiote, mas se o mesmo estava na medida preconizada, como a verificar se os calções de banho dos cavalheiros eram decentes e se tinham os centímetros de perna obrigatórios.)

 

 O exemplo de Nice pegou e foi como fogo em mata seca a expansão de tal interdição noutras praias francesas. Com tal força se vinculou esta ideia que me foi permitido ver – ó ironia – em nome da moral, uma senhora, possivelmente muçulmana, além de multada, ser obrigada a despir-se em plena praia. Até onde não consegui perceber porque a reportagem, por pudica, não deu azo a que cevasse a minha lubricidade.

 

O que porém me deixou um tanto ou quanto preocupado é o que poderá acontecer a qualquer compadre ou comadre provençais, idos de excursão a ver o mar, querendo, com toda a tranquilidade, passear-se de calças arregaçadas ou saias levemente repuxadas - quiçá o cabelo protegido por um lenço - pela orla da praia. O que lhes poderá acontecer? Para além da multa, quanto os mandarão despir? Na falta de fato de banho as cuecas serão aceitáveis? E, ó pensamento do diabo, se forem à praia, gozar da aragem salina, um grupo de castas freiras? Já estou a ver o Vaticano em fúria a declarar guerra à França.

 

Ou estarei enganado e qualquer não muçulmano pode estar, na praia, com lhe aprouver?

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 17:36