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O senhor engenheiro

Sexta-feira, 20.01.12

 

 

O senhor engenheiro é um homem pausado, gentil, discreto. Sente-se-lhe na voz um desgosto profundo de cordeiro sacrificial. Pressente que o mundo não o entende e injustificadamente decidiu, por ilegítima maioria, sacrificá-lo. Ele, cordato sofredor estendeu, pacífico, o pescoço à imolação, qual subtil cordeiro pascal. Eis aqui o cordeiro dos senhores e “fiat voluntas tua”.

 

O seu rosto sofrido é impudicamente esmiuçado pelas câmaras da televisão e o sorriso dolorido penetra, perdoativo, mais que nas nossas casas nas nossas consciências. Vós todos me condenais, lê-se nele, mas o perdão já está concedido para quando, muito mais tarde – talvez tarde de mais – chegardes à perceção do vosso tremendo engano. Será tarde demais mas não será demasiado tarde, porque eu, magnânimo, sei das vossas fraquezas, entendo-vos a tibieza mas nada, nada mesmo, poderá desviar-me do caminho da virtude que, de momento, só eu soube pressentir. É o custo da grandeza, pensará humildemente refletindo-se no espelho que, por certo, iluminará, enorme, a entrada de sua casa.

 

Corre de justificação em justificação. Para seres mal-intencionados poderá parecer que tão grande ânsia de justificação revelará alguma inconsútil culpabilidade. Claro que nunca, por nunca ser, na boa alma do senhor engenheiro poderia haver qualquer culpabilidade porque ele sempre agiu na melhor das fés e para os mais superiores propósitos.

 

Ele o afirma perentório. Tudo quando fiz foi para o melhor bem de todos vós. Pode, pelas terríveis circunstâncias do tempo, parecer exatamente o contrário mas quem tiver ouvidos que ouça; quem tiver olhos que veja. Do meu punho guiado por um saber superior brotou a assinatura que a todos, mesmo contra a vossa vontade ou parecer, vos há-de salvar. Cedesse eu a preconceitos mundanos, fenecesse-me a coragem necessária e o armagedão social invadiria destruidor as mais recônditas plagas deste rincão. Primeiro arrancaria os olhos a deixar que tal sucedesse. Sobre mim, engenheiro, recai o terrível peso de vos salvar de vós próprios. Conduzi-vos à vitória sem que vocês percebessem; deixei-me queimar em fogo lento para que os vossos direitos permanecessem; se parece que perderam é apenas porque eu, sabedor de artes imemoriais, convenci os vossos adversários de que ganhavam quando, na verdade, todo o seu ganho seria, posteriormente, traduzido em perdas irreparáveis. Sei que é difícil fazer-vos perceber esta lógica. Por tanto não vos esforceis por entender aquilo que só eu posso perceber. De derrota em derrota levar-vos-ei à vitória. Isso é certo. Basta que confieis em mim.

 

Mas, engenheiro, não é verdade que nos vão tirar dias de férias e feriados?

-É, sim, mas isso na verdade será um ganho vosso.

Um ganho? Replica a plebe ignara nos jogos de alta estratégia. Que ganho pode haver quando se subtrai tempo de descanso e se aumenta tempo de trabalho?

- Simples! Mantereis os vossos postos de trabalho o que não aconteceria se não cedêssemos nesse item. Portanto, tendo isso em conta é uma vitória.

Os despedimentos não irão ser ainda mias facilitados?

- Claro que vão e isso é mais uma grande vantagem das massas trabalhadoras!

Vantagem? Poder ser despedido por dá cá aquela palha é triunfo que se veja?

- Então não estão mesmo a ver que se os patrões puderem despedir à vontade aumenta o número de postos de trabalhos disponíveis?

Não, não conseguimos perceber isso. A única coisa que vemos é o aumento de desemprego, a diminuição do subsídio de desemprego e o corte no tempo em que o mesmo se recebe.

-Exatamente! Mais um grande troféu para a luta do povo trabalhador!

Homessa, então perder é ganhar? Em que mundo é isso possível? Calmo, o engenheiro ensaia um sorriso enigmático e diz: é estratégia. Deixamo-los ganhar tudo e fazemos com que nos prometam retornos e maravilhas para o futuro.

Engenheiro, trocar factos por promessas não é embarcar em enganos? Não, que eu cá estou para vos defender até ao fim dos tempos. O vosso problema é a falta de confiança. Crede que muitas vezes o que parece não é e o que não parece é que é. Só tendes que seguir o que vos digo. Trabalhai, trabalhai bem e sem descanso e repousai em mim a dura tarefa de melhorar, no futuro, as vossas condições de trabalho.

 

Embora relutantes lá partiram os obreiros para as suas tarefas. Eles procuraram os elétricos, os autocarros ou o metro. O senhor engenheiro dos sindicatos esperou que o motorista lhe abrisse a porta de trás do seu BMW de último modelo e lá foi, para mais uma reunião de concertação social defender, estrenuamente, os direitos dos trabalhadores.

 

 

Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

 

 

 

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 22:06

Dama com ferrugem

Quinta-feira, 12.01.12

 

 

 

 

Estavam todos lá. Eu não estava mas fui testemunha “auriocolar”. Eu “ouvivi”. Isto é, ouvi e vi, na SIC Notícias, aquela espécie de concílio dos deuses onde eles, das suas inacessíveis alturas, discorriam e decretavam sobre a vida dos míseros mortais. Ou mais apropriadamente sobre a morte dos mesmo.

 

Estavam presentes Pinto Balsemão, o dono; Manuela Ferreira Leite, a inspirada; António Vitorino, a aspirina; António Barreto, o mefistofélico e Manuel Sobrinho Simões, o curador.

 

Parecia que do sínodo nada de novo iria brotar, conhecidas que são as figuras e o seu posicionamento sobre a já tão debatida questão da sobrevivência do Serviço Nacional de Saúde, tendencialmente gratuito. Eram as taxas moderadoras para aqui, o copagamento para acolá e a certeza de nenhum deles perceber o custo da taxa de sacrifícios e desvantagens desabados sobre a maior parte de nós. Não me parece que Pinto Balsemão tenha de acorrer às urgências de um hospital público, passar pelo rastreio, usar a pulseira da cor que lhe couber e aguardar, recolhido ou em amena cavaqueira com o paciente do lado, as muitas horas necessárias para um atendimento “urgente”. Também não vejo nenhuma daquelas personagens a telefonar, dias a dias a fio, para o posto médico na tentativa de marcar a consulta urgente nunca conseguida, nem a meterem-se, por necessidade e nenhuma alternativa, numa fila de espera, durante a madrugada, para conseguir uma quase impossível vaga para consulta médica, sempre veloz na condicionante do tempo e número de doentes a atender.

 

Também não me pareceu que a Manuela Ferreira Leite, poupada aos sacrifícios de corte de subsídios ou pensões por estar deles isenta (foi funcionária do Banco de Portugal), fosse muito sensível ao problema financeiro de quem, recebendo pouco, é sempre excessivo o corte, para ela pequeno, que lhes possam fazer num rendimento que nem inteiro chega para as primeiras necessidades. Certamente, dentro dela, um pensamento, muito pio e tranquilizador, ressoará, com o costumado encolher de ombros: ora, eles já estão habituados!

 

Foi então que – sequência lógica do era uma vez subentendido neste reconto que de mítico só tem a estranheza – o curador, com o angélico sorriso ostentado toda a noite - houvesse na conversa tristezas ou alegrias – lançou a palavra armadilhada: “racionamento”. Tal e qual e nada mais! Que os atos médicos deveriam ser racionados, decretou. Procurei no dicionário da Academia o significado do termo para não correr risco de, por má vontade, atribuir intenções não havidas. E lá vinha:” Racionamento - Limitação de consumo de bens essenciais…determinadas pela autoridade, em situação de crise social”. Levado pela dúvida de ter entendido bem a palavra pronunciada, ainda procurei a sua vizinha “racionalização” que me parecia poder explicar melhor um esforço de distribuição de bens escassos. Encontrei, como terceira aceção, virada para a economia: “Disposição de um setor, de uma atividade, segundo princípios de eficácia, de otimização de rentabilidade, na sequência de estudos rigorosos de caráter científico”.

 

Esperei que algum dos intervenientes viesse pronto fazer esta distinção e afastasse de mim a azia que me ia invadindo pouco a pouco. Mas não! Todos agarraram nessa palavra e a dama Ferreira, regressando por momentos ao sonho de suspensão da democracia, atacou com veemência preconizando, grosso modo, que além dos setenta anos não deveriam ser acionados meios terapêuticos caros para manutenção de condições de vida desses inconveniente gerontes os quais, pela teimosia em manterem-se ignobilmente vivos, custam um porradão de dinheiro ao Estado. Bem pensado para quem, religiosamente, recusa o direito aos cidadãos de “racionalmente” porem termo à sua vida, quando tal lhe parecer o melhor caminho. Claro, precisou a senhora, isto para quem não poder pagar! Sempre me comoveram os sentimentos dos “bonzinhos”!

 

Nesta altura Balsemão fez que não estava lá. Vitorino acorreu a por água na fervura estendendo uma tábua onde a dama se pudesse agarrar. Inicialmente ela não percebeu e teimou. Depois, esclarecida, percebeu a enormidade da sua afirmação e, canhestramente, lá aceitou a misericórdia de Vitorino. Barreto, apontando para si e para os seus setenta anos entrou numa de autorreflexão da sua intrínseca honestidade para firmar o terreno de salvação da dama e, no mesmo passo, justificar o ato do patrão – família Soares da Costa – nesse esplêndido sacrifício, em solidariedade com aqueles que cabem a cada português, de ter mudado para a Holanda a sede da sua “holding”. Enquanto isto, encantado pela sua obra ou concordando – sabe-se lá – com a derrapagem de Ferreira Leite, o curador continuava alarvemente a sorrir.

 

Levantei-me azedo e mudei de canal. Foi pior a emenda que o soneto. O noticiarista comentava a vária nomeações para as administrações e similares de várias pessoas ligadas ao PSD e CDS. Lembrei-me do discurso de Passos Coelho contra a partidarização da economia, a favor da competência e do mérito pessoal. Como continuo incuravelmente ingénuo pensei serem meras coincidências. No entanto, para prevenir uma noite de pesadelos, achei melhor tomar um Xanax.

 

 

Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 14:44