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Gonçalo Rego

Quarta-feira, 21.09.11

 

 

Hoje morreu o meu amigo Gonçalo. Umpa pequena homenagem.

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publicado por Carlos Alberto Correia às 00:45

setembros I

Domingo, 04.09.11

I

 

recordo a melancolia dos beijos

suspensos entre o hálito de setembro

e um insuspeito golpe de outono

 

traduzo o lume brando dessas tardes

os ocasos fortuitos de langorosos sóis

no ruge-ruge de olhos marginais

 

no incómodo da pele traça a tua mão

arabescos de fogo sobre malvas

estáticas em tórridos areais

 

II

 

soltam-se as primeiras nuvens e os céus

ainda claramente juvenis caem na modorra

dos apressados hábitos

 

cinzento é acampamento de esperanças

no solitário corte dos umbrais

 

III

 

eu sei

não mais cantos de cigarra não mais

somente as ternas sensações pretéritas

remordem em remorsos outonais

 

eu sei

e por saber estou de qualquer modo

por demais afastado da acção

 

recordo os lumes velhos

e esmagando rumos ou trovejando camas

procuro no casulo a paz desta estação

 

dobo a luz afago a natureza

preparo o advento na minha fortaleza

de outros dias grandes e ferozes

onde termine a minha hibernação

 

IV

 

o vento largo e fresco amarinha

arrasta as coisas velhas pelo ar

setembro é chegado

a luz caminha

devagar

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publicado por Carlos Alberto Correia às 13:50

Ricos e Pobres

Sábado, 03.09.11

 

 

 

Estou sentado na varanda do hotel fruindo o pôr de sol. Para trás fica a marina com
as suas embarcações milionárias em amarração tranquila. Daqui a pouco, quando
escurecer, irei procurar um restaurante onde, com os barcos em fundo, e sem ser
rico pagarei por uma refeição pretensiosa e medíocre quase metade do valor
mensal do rendimento social de inserção. Sei também que, antes de chegar à rua
que vira para a marina, sentada no chão, uma sexagenária inválida estende, em
silêncio, uma lata para receber esmola. A multidão que passeia, vê e se senta
nos cafés e restaurantes parece indiferente a tudo quanto não seja o seu prazer
imediato. Eu, claro, navego nestas ondas. Vou distraído a pensar como era este
local quando aqui cheguei, nos anos setenta, com a equipa destacada para a
construção da marina. Chegámos, num dia pleno de sol, à sonolenta Vila de
Quarteira. Havia, na altura, apenas uma pensão, onde ficámos alojados durante a
semana que duraria a nossa atividade, pertencente ao mesmo proprietário do
também único restaurante-café, uma palafita instalado sobre a água da praia.
Era tarde, não esperava ninguém, não tinha almoços. Procuramos e, no largo,
frente ao mercado, uma velhota, numa tasca, fritava linguadinhos num fogareiro
a carvão. Pode almoçar-se? Pode, mas o que tenho é comida de pobre. Não sei se
os senhores quererão, disse ela impressionada pelo Citroën bico de pato parado
frente à sua locanda. Nós comemos qualquer coisa! Serviu-nos um saborosíssimo
arroz de tomate, acompanhado por uma salada de alface que era veludo, mais os
linguadinhos saídos da frigideira para o prato. Foi uma das mais memoráveis e
saborosas refeições da minha vida.

 

Ao grupo que ali estava - o engenheiro diretor da futura obra, o administrador da zona, o
diretor de recursos humanos e eu, responsável pela publicidade da empresa -
competia verificar as condições para alojamento e alimentação das centenas de
trabalhadores que para ali seriam deslocados e, com maior urgência, montar um
stand com os projetos e maquetes das obras para, na semana seguinte, recebermos
o Almirante Américo Tomás, que, a convite da sociedade promotora da obra, iria
visitar, antes de transformado, o local onde a marina nasceria e, com ela, uma
profunda modificação, cultural e social da zona. Éramos, inocentemente, os
transformadores da paisagem rural e da moldura humana. Lembro-me que, no local
onde começaram as escavações para a marina - campo seco e amarelo de ervas
mortas - erguia-se uma vacaria onde, nos dias iniciais, nos fornecíamos de
leite. O dono do estábulo já com o negócio feito dava o leite a quem o
quisesse, esperando apenas que o novo proprietário das vacas o libertasse do
trabalho cansativo de as mungir.

 

No dia aprazado para a visita estava montado o stand e, nervoso, o administrador
tentava saber todos os pormenores acerca da marina para não vacilar em qualquer
pergunta que Sua Excelência o Presidente da República quisesse fazer-lhe.
Tranquilizava-o o presidente da administração do promotor: descanse engenheiro,
se bem conheço o almirante, depois de observar tudo quando expuserem e lhe
digam ele apenas irá perguntar-lhe quais são as cotas das marés. Coisas de
marinheiro, finalizou!

 

Chegada a comitiva, explicados planos e projetos lá saltou a Sua Excelência a sacra
questão: então senhor engenheiro, qual é a cota das marés. Só não saiu
gargalhada porque a solenidade da ocasião o não permitia. Destacou-se então da
comitiva uma personagem pequena e ridícula no seu casaco aberto e nos puxões,
dados ao ritmo da fala, nos seus berrantes suspensórios. É o almirante
Tenreiro, ouvi dizer. Então Sr. Presidente com tanto terreno para o lazer não
me vai dar um bocado para fazer um lar para pescadores? Pois. Pois, senhor
almirante, disse escarninho o Presidente Tomás, dou-lhe um terreno para
pescadores e nasce-me uma fábrica de sardinhas. Sorrindo descaradamente o
almirantezinho retorquiu: claro, senhor presidente, cada qual puxa a brasa à
sua sardinha! Congelada, evidentemente, congelada, concluiu o presidente da
república e foram-se afastando daquele terreno que, no dia seguinte, começaria
a ser esventrado para criar uma povoação para ricos.

 

Ainda não tinha largado estes pensamentos quando voltei ao hotel e, ao contrário do
habitual em férias, liguei-me ao Facebook.
Ia por lá uma discussão sobre ricos e pobres e um dos principais polemistas
perguntava porque é que as esquerdas queriam acabar com os ricos, perguntando
ao mesmo tempo o que era um rico e a partir de quanto se era rico. Não fora o
tom acintoso e não me dispusera a dar-lhe resposta, até porque nunca me
propusera acabar com ninguém. Num relance teclei a minha perspetiva. Disse: Um
rico é aquele que pelos seus excessos de bens obriga os outros à míngua. É
relativo e acontece sempre que a distribuição de bens é injusta, sempre que
alguém, se calhar por direito divino, se considera proprietário de bens que a
todos deverão caber. Enfim, um rico é uma perversão social. Não é preciso ser
de “esquerda” para perceber isto. A social-democracia é pela redistribuição
equitativa e até um senhor chamado Emanuel disse ser mais fácil passar um
camelo pelo buraco de uma agulha, que um rico nos reinos do céu! Portanto, um
rico é, para a igreja militante, um réprobo. Estou equivocado?

 

Parece que estava. O meu interlocutor mandou-se a mim como gato a bofe e foi um vê se te
agarras de chavões e pensamentos mais velhos que matusalém. Se calhar era
melhor estar dos lados dos madraços que em vez de trabalhar queriam viver à
custa do estado. Daqueles que se entregavam aos vícios com o “nosso” dinheiro –
pasmei que vícios poderia alguém pagar com cento e oitenta euros – que
preferiam engordar sem esforço, etc. etc. e etc.. Argumentava ainda que além de
ser o melhor, o capitalismo era eterno, o que me levou a replicar que os
sistemas nascem, crescem e morrem. Todos! Porque tudo é, na vida, transitório e
marcado pelo tempo. Quando um paradigma deixa de responder às necessidades
sociais entra em declínio e é trocado por outro. De modo mais pacífico ou
violento. Depende das forças em presença. Sugeria ao meu interlocutor que não
tomasse por eterno o que era meramente conjuntural e que prestasse mais atenção
às dinâmicas sociais. Reforcei ainda a constatação de que os ricos que ele tão
denodadamente defendia estavam a levar, por pura ganância, o mundo para
confrontações sem precedentes e pretendi mostrar-lhe que, quando elas
acontecessem, nós, os que não somos ricos, sofreríamos igualmente os seus
efeitos fossemos pró ou contra a posse de riquezas excessivas. Cedi, no entanto,
na forma como cada um de nós encararia as catástrofes. Eu, revoltado e bramando
contra tudo o que me levara àquela situação. Ele, certamente, feliz por estar a
receber os frutos do modelo que professava e defendia. O homem não gostou e só
não me condenou ao inferno porque, disse, não era religioso. Mal sabia ele como
estava tão vizinho da teoria da predestinação sagrada que Max Weber outorgou ao
espírito protestante.

 

É quase verdade, o que o vulgo diz, sobre a perene existência de ricos e pobres. Já não
será tão verdade dizer que sempre assim será. É que ser rico ou pobre não está
no ADN de ninguém. Muitos fatores pessoais, sociais e conjunturais se conjugam
para determinar quem será rico e quem será pobre.  Escrevi um dia, sobre os papéis que nos
cabem, um epigrama que transcrevo: numa
rua/ há sempre/ um herói e um bandalho/ depende de quem parte o baralho.

 

Mas, certamente, nada obriga a que seja sempre assim. É possível e necessário que,
um dia, as diferenças sejam menores e que todos possam gozar de quanto
necessitem na sua vida. A produção atual já o permite. Só a injusta
distribuição o impede.

 

 

 

Publicado in “Rostos
on line” –
http://rostos.pt

 

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publicado por Carlos Alberto Correia às 13:17